Fundamentalismo e nacionalismo ameaçam o cristianismo. Entrevista com Tomáš Halík

O presidente da República, Jair Bolsonaro, assiste ao culto na Igreja Batista Atitude, acompanhado da esposa, Michelle Bolsonaro e o pastor Josué Valandro. (Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil)

22 Junho 2022

 

O acompanhamento espiritual, o papel dos capelães, a escuta de quem que não se reconhece nem na fé institucional nem no ateísmo: o futuro da Igreja na análise do filósofo e teólogo tcheco que proferiu uma conferência na Pontifícia Universidade Gregoriana.

 

A reportagem é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por La Stampa, 17-06-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Hoje o sonho de uma Europa unida que respira com os dois pulmões, como escreveu João Paulo II, o Oriente e o Ocidente, "está ameaçado pelos perigosos tumores do nacionalismo, do populismo e do fundamentalismo em ambos os pulmões”. Filósofo e teólogo tcheco, um homem que desafiou o totalitarismo sem ficar preso nas recriminações, Monsenhor Tomáš Halík acredita que a prioridade para o cristianismo atual seja evitar as instrumentalizações políticas e os identitarismos confessionais e se reinventar como fonte de acompanhamento espiritual para mulheres e homens em busca.

Tomáš Halík. (Foto: Vit Simanek | Wikimedia commons)

Nascido em Praga em 1948, Halík formou-se em Sociologia, Filosofia e Psicologia em sua cidade na década de 1960, foi ordenado sacerdote clandestinamente na Alemanha Oriental em 1978, colaborou com o Cardeal Frantisek Tomasek na época da “Igreja do silêncio” tchecoslovaca e, depois da queda do Muro de Berlim, com o então presidente da República Tcheca Vaclav Havel. Só depois de 1989 pôde lecionar na universidade do seu país. Atualmente leciona Sociologia na Faculdade de Filosofia da Universidade Carolina em Praga e é reitor da Igreja do Santíssimo Salvador para a pastoral com estudantes universitários e presidente da Academia Cristã Tcheca. Recebeu o Prêmio Templeton em 2014 e um doutorado honoris causa da Universidade de Oxford. Recentemente foi convidado da Pontifícia Universidade Gregoriana para uma conferência internacional e interdisciplinar organizada pelo Instituto de Psicologia para celebrar o 50º aniversário de sua fundação. Uma oportunidade para refletir, entre outras coisas, sobre as perspectivas da formação sacerdotal.

 

“Vejo o acompanhamento espiritual muito promissor para o futuro”, explica Tomáš Halík à margem do encontro da universidade jesuíta romana. “Acho que se deve diferenciar os diferentes tipos de papéis do padre: há o pároco, há o missionário, e penso que exista uma terceira via que considero muito promissora para o futuro, o acompanhamento espiritual. Entre as pessoas de nossa sociedade há muitas que não se identificam com as igrejas, que se definem como pessoas não religiosas, mas espirituais, pessoas em busca. O número de pessoas totalmente identificadas com religiões institucionalizadas diminui, o número de ateus convictos também diminui, enquanto há um grande número de pessoas que em seus corações e mentes são meio a meio, com uma mistura de crença e não crença, de fé e de dúvida, e eu penso que precisamos nos comunicar com essas pessoas, não da maneira tradicional missionária, não as empurrando para as estruturas institucionais existentes, mas abrindo essas estruturas. Devemos conversar com essas pessoas, caminhar com elas, com respeito: podemos aprender algo com o tesouro de nossas tradições e espiritualidade, mas também podemos aprender algo com elas. Na minha opinião, um papel importante, deste ponto de vista, pode ser desempenhado pelos capelães, os capelães nos hospitais, nas prisões, no exército, nas universidades: os capelães estão ali para todos, não apenas para os devotos. Eles podem ouvir, discutir, descobrir. Em muitos de nossos países os confessionários estão vazios, as pessoas não se reconhecem no clássico espelho do confessionário, e há também a dúvida sobre o que é realmente o pecado, qual a sua responsabilidade, o quanto se é determinado pela própria cultura ou quanto se tem responsabilidade pelas próprias ações..."

 

"Tantas questões sobre as quais as pessoas precisam poder falar e discutir, e eu penso que por isso o acompanhamento espiritual é muito importante. Por exemplo, sou padre há mais de 43 anos, ouvi milhares de confissões, mas nos últimos anos sempre ofereço a possibilidade de um simples acompanhamento espiritual: e as pessoas vêm. Ampliei o grupo de colaboradores também para leigos, irmãs, com experiência em psicoterapia e aconselhamento, colaboradores que podem acompanhar as pessoas. Acredito que seria um serviço muito importante para a igreja no futuro. E também seria importante criar centros para esse acompanhamento. As pessoas dizem que a República Tcheca é o país mais ateu do mundo, mas na minha paróquia em Praga batizo mais de três mil adultos por ano, e a cada ano aumentam. Portanto, também é possível no mundo secularizado. Mas, justamente, devemos oferecer não só liturgia, pregação, mas também escutar as pessoas, dar-lhes a possibilidade de encontrar centros para a vida espiritual. As pessoas vêm para os retiros espirituais que às vezes também são muito criativos: por exemplo, uma semana de silêncio, com a possibilidade de assistir a dois filmes por dia e depois passar um tempo meditando, contemplando o sentido do filme, como ele incide na própria interioridade. As pessoas vêm de boa vontade para renovar sua vida espiritual, mesmo em tempos de crise. Na minha opinião, este pode ser o caminho para o futuro”.

 

Eis a entrevista. 

 

E o que você acha do identitarismo, uma tendência que corre o risco de reduzir o cristianismo a uma bandeira a ser agitada, mas que em nossos tempos está se espalhando e não pode ser ignorada pelos pastores? O que dizer a quem busca refúgio, uma identidade forte no cristianismo, na liturgia, na doutrina?

 

É verdade, há uma necessidade de identidade, e isso pode ter vários motivos. Na minha opinião, uma razão é a crise da família: a família deveria ser o ambiente natural que cultiva a identidade da criança, mas quando a família está em crise, há divórcios ou os pais estão ausentes e colocam seus filhos em frente da televisão, se criam pessoas que não têm uma identidade pessoal e, portanto, buscam uma identidade coletiva. E podem encontrá-la no radicalismo político, de direita ou de esquerda, assim como em alguns fundamentalismos religiosos: o perfil psicológico desses grupos é muito parecido! É um fenômeno muito perigoso porque com uma perspectiva que vê tudo em preto ou branco, não se pode entender o mundo real. Essas pessoas acabam tendo medo de um mundo colorido, de um mundo que muda, e principalmente nessa conjuntura de grandes mudanças buscam algo forte. Mas dar-lhes a fé como uma forma de ideologia significa dar-lhes pedras, não pão. O psicólogo estadunidense Gordon Allport já na década de 1950 destacava a diferença entre religiosidade intrínseca e religiosidade extrínseca: intrínseca quando a própria fé é o motivo, extrínseca quando a religiosidade é instrumento para outra coisa, por exemplo, uma posição na sociedade, uma defesa forte contra o mundo. Essa religiosidade extrínseca está ligada a uma atitude rígida, ao autoritarismo, a uma mentalidade fechada. Não é saudável, é típica de pessoas que se sentem perdidas, em perigo, assustadas no mundo. Esse fundamentalismo é como uma doença infantil.

 

Você vem de um país onde o cristianismo foi perseguido, tem uma experiência pessoal nesse sentido: você experimentou pessoalmente a tentação do identitarismo?

 

Lembro que quando me converti, na década de 1960, tive a oportunidade de viajar para o Ocidente: havia a possibilidade de um intercâmbio cultural com a universidade católica na Holanda. Eu tinha grandes expectativas. Cheguei no tumulto que seguiu o Concílio do Vaticano II (1962-1965). Eu tinha apenas um livro de Maritain, perguntei se eles tinham mais alguma coisa dele, e eles me responderam que ninguém mais lia Maritain há anos, que os alunos que inicialmente deveriam se tornar padres agora haviam se casado, que se manifestavam contra o bispo... e fiquei totalmente chocado!

 

Especialmente no mundo pós-comunista, o efeito do choque cultural estava presente. E quando voltei para casa após esse choque cultural, encontrei católicos ultraconservadores que me disseram que aqueles eram os frutos do Concílio, falaram de dúvidas em relação à Maçonaria, aos judeus ... e eu vivi alguns meses nessa atmosfera de tradicionalismo. Graças a Deus chegou a primavera de Praga, em 1968, e conheci padres maravilhosos que passaram muitos anos nas prisões de Praga e me mostraram um catolicismo aberto, sonhavam com uma Igreja sem triunfalismo, pobre, uma Igreja que serve, e nas prisões havia um ecumenismo espontâneo com cristãos protestantes, e assim me introduziram ao espírito do Concílio Vaticano II. Mas muitas pessoas nos países pós-comunistas tinham vivido em isolamento e depois de 1989 sofreram um choque cultural. Alguns deles ainda estão nessa mentalidade de bunker sitiado, "devemos nos defender dos inimigos". Nas sociedades pluralistas e democráticas não somos aceitos por todos, mas é uma situação absolutamente diferente em relação ao comunismo totalitário.

 

Mesmo em países pós-comunistas, como no Ocidente, hoje o cristianismo é frequentemente usado pela política para exacerbar divisões nacionalistas. Como você escreveu na revista "América", "a linguagem secular muitas vezes não é capaz de mobilizar emoções fortes em situações de crise e, consequentemente, os termos religiosos aparecem espontaneamente na linguagem dos políticos, mesmo aqueles que estão muito distantes da fé pessoal e da ética religiosa, quando invocam imagens sugestivas do inconsciente coletivo da sociedade”. É algo que também estamos vendo na Rússia nas últimas semanas...

 

Alguns ditadores e líderes de regimes autoritários exploram deliberadamente a religião em nível político. Quando Stalin percebeu que os povos do Império Soviético, especialmente a Ucrânia, não estavam prontos para lutar pelo comunismo quando as tropas de Hitler chegaram para invadir, definiu o conflito como a "grande guerra patriótica" e os padres ortodoxos, ícones nas mãos, marcharam à frente das tropas do Exército Vermelho. Hoje, também Putin, que é um grande admirador de Stalin, diz que a Grande Rússia precisa de um impulso espiritual e, portanto, procura instrumentalizar a Igreja Ortodoxa Russa. Alguns líderes da Igreja, além disso, são seus ex-colegas da KGB. A propaganda russa visa em particular os cristãos conservadores que poderiam estar em sintonia com Putin e o representa como o novo imperador Constantino, que salvará o cristianismo da influência do protestantismo e do liberalismo ocidental.

Vladimir Putin e Patriarca Kirill, líder da Igreja Ortodoxa Russa. (Foto: Reprodução | Wikimedia commons)

Mas esta aliança com o nacionalismo prejudica ainda mais o cristianismo do que o comunismo, segundo Tomáš Halík: “Existe uma forma de cristianismo no mundo de hoje que pode ser fonte de inspiração moral para uma cultura de liberdade e democracia? Devemos procurar uma forma que não seja uma imitação nostálgica do passado, mas que respeite o fato de que nosso mundo não é, e nunca será, religiosa ou culturalmente monocromático, mas sim é radicalmente pluralista."

 

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