O trigo bloqueado ameaça o mundo

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24 Mai 2022

 

Não poderiam ser mais claras nem alarmantes as palavras do secretário geral das Nações Unidas Antônio Guterres durante a reunião de líderes mundiais convocada para discutir a escalada da crise de segurança alimentar: "Os níveis de fome no mundo - disse - estão prestes a atingir um novo pico máximo". A guerra, acrescentou, "ameaça levar dezenas de milhões de pessoas a uma condição de desnutrição e carestias, agravando uma crise que provavelmente durará anos". Guterres parte dos números que deixam pouco espaço para ambiguidade.

 

A reportagem é de Francesca Mannocchi, publicada por La Stampa, 22-05-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Em menos de dois anos, o número de pessoas que enfrentam uma grave insegurança alimentar dobrou, de 135 milhões antes da pandemia a 276 milhões hoje. Uma crise que começou como resultado da epidemia global e foi agravada pelo conflito na Ucrânia. "Há alimento suficiente para todos no mundo", disse Guterres. "O problema é a distribuição e está profundamente ligado à guerra na Ucrânia.”

 

A guerra no celeiro do mundo e o agravamento da crise alimentar em países já atravessados por instabilidades políticas, econômicas e sociais estão interligados, as consequências do conflito na Ucrânia estão se irradiando para fora, desencadeando uma onda de fome que se alastra pelo mundo. É o efeito borboleta da invasão russa e da estratégia do Kremlin - que fica cada vez mais clara com o passar das semanas - de atingir no coração a economia ucraniana e, ao despencar, causar consequências alarmantes nos países em desenvolvimento que dependem das exportações de grãos do país.

 

Mas vamos por ordem, começando pelos números da maior organização humanitária do mundo, o Programa Mundial de Alimentos, que é a agência das Nações Unidas que trata da assistência alimentar e atua em 81 países. A agência estima que, se o conflito continuar, o número de pessoas que vivem em situação de fome aguda aumentará em 47 milhões, quase 20% a mais do que os níveis anteriores à guerra. O conflito na Ucrânia causou abalos nos mercados globais de alimentos e energia, e os preços crescentes de alimentos e combustíveis estão colocando milhões de pessoas em risco de não ter garantida a nutrição básica.

 

Aumentaram os preços dos alimentos, do combustível, ampliando de consequência a inflação e os custos da energia e isso influencia a capacidade do Programa Alimentar Mundial de alcançar os destinatários da ajuda, o aumento dos preços dos alimentos e do petróleo está fazendo aumentar os custos operacionais mensais da organização para US$ 71 milhões por mês. Aumentos que - na gestão diária das ajudas - significam não poder operar e atender os necessitados, pois 70 milhões de custos fixos - transporte, combustível - equivalem às rações alimentares fornecidas a quatro milhões de pessoas.

 

Traduzido, significa que quanto mais a guerra continuar a causar um aumento no preço do gás e do petróleo, mais as organizações humanitárias terão que decidir com que prioridade alimentar as pessoas. Precedência e gravidade que David Beasley, diretor executivo do Programa Mundial de Alimentos, resumiu na frase "tiramos o alimento de quem tem fome para dar a quem morre de fome". Como resultado da guerra, mais de 20 milhões de toneladas de grãos estão bloqueadas em silos ucranianos, pois os bloqueios russos impedem que navios que transportam grãos, milho e outras exportações zarpem.

 

Juntos, Rússia e Ucrânia respondem por mais de um quarto do fornecimento global de grãos, segundo estimativas das Nações Unidas, 36 estados no mundo dependem da Ucrânia e da Rússia para mais da metade de suas importações de grãos. A lista inclui alguns países como República Democrática do Congo, Líbano, Somália, Síria e Iêmen, entre as populações mais vulneráveis do mundo, abrindo cenários terríveis para o futuro.

 

"Se as pessoas não podem alimentar seus filhos e suas famílias, devemos esperar conflitos políticos”, disse o diretor executivo do Programa Mundial de Alimentos David Beasley percebendo potencial de “revoltas, carestias, desestabilização e, consequentemente, migração em massa por necessidade". É precisamente para tentar conter, prevenir a crise e buscar uma mediação com a Rússia que foram realizados encontros nas Nações Unidas na semana passada. O objetivo era fazer com que a Rússia permitisse a abertura de corredores terrestres, ferroviários ou marítimos para que as exportações da Ucrânia chegassem aos seus destinos o mais rápido possível.

 

Beasley disse, à margem do encontro nas Nações Unidas: "Peço ao presidente Putin, se ele tiver um pouco de coração, para abrir esses portos, para alimentar os mais pobres entre os pobres e evitar a fome, como fizemos no passado, quando as nações nesta sala se uniram”. Busca a mediação olhando para a geopolítica. Líbano e a Tunísia importam metade dos cereais de que necessitam da Rússia e da Ucrânia, Líbia e Egito, dois terços. Não encontrar uma solução para o bloqueio dos portos significa acelerar o retorno de um fantasma do passado. Era 2010 e foi justamente a crise do preço do trigo que alimentou as revoltas que arrastaram milhões de pessoas para as ruas, dando origem à época das Primaveras Árabes e dos conflitos - como o sírio - que passados onze anos ainda geram vítimas.

 

Por esta razão, unidos com o propósito comum de enfrentar a emergência, os líderes mundiais e os representantes das Nações Unidas concordaram que desta crise não se pode sair sozinhos. Guterres convidou os países a doarem mais para organizações humanitárias e, para aqueles que dispõem de reservas significativas de grãos e fertilizantes, para que se posicionem rapidamente. Os russos, no entanto, rejeitaram os pedidos. Segundo o embaixador de Moscou nas Nações Unidas, Vasily Nebenzya, o aumento do preço dos alimentos foi causado pelas sanções ocidentais contra a Rússia e não pela guerra na Ucrânia.

 

A Rússia não aceitou nenhuma proposta de negociação para facilitar o embarque de grãos do porto de Odessa ou de outros portos ucranianos. O Wall Street Journal informou que Guterres e autoridades dos EUA estão explorando uma rota alternativa para as exportações de grãos da Ucrânia que passe pelo norte com a ferrovia da Bielorrússia até o porto lituano de Klaipeda. Em jogo está um dos principais aliados de Putin, o líder bielorrusso Alexander Lukashenko, pelo que as autoridades estão considerando um incentivo: uma isenção de seis meses das sanções contra a indústria dos fertilizantes de potássio do país. No entanto, dizem os especialistas, mesmo que o acordo com Lukashenko se concretize, as rotas terrestres e fluviais não seriam suficientes para movimentar os milhões de toneladas de grãos exportados da Ucrânia todos os anos.

 

Alimento como arma, portanto. Alimento como moeda de troca diplomática. É a última etapa, a mais extrema, que segue as dezenas de ataques a armazéns de alimentos, centros de armazenamento de mercadorias, empresas de alimentos congelados, campos cultivados, silos. Estes estiveram frequentemente entre os primeiros lugares a serem atingidos nas cidades cercadas pelos russos. Isso demonstra que a fome não é consequência da guerra, mas parte da estratégia bélica.

 

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