“Solução para Ucrânia depende da China”, diz Celso Amorim

Para ex-ministro das Relações Exteriores de Lula, sanções do Ocidente são um "desastre" e China é único país com capacidade de persuadir a Rússia. Além da guerra, extrema direita é grande ameaça para humanidade, afirma.

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27 Abril 2022

 

Em reação à invasão da Ucrânia pela Rússia, potências ocidentais vêm impondo uma série de sanções econômicas ao governo de Vladimir Putin. Para o ex-chanceler Celso Amorim, que chefiou o Ministério das Relações Exteriores nos dois governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 – 2010), a invasão é condenável e um "problema muito sério para o mundo", mas a adoção de medidas desse tipo pelo Ocidente é equivocada.

 

Em entrevista à DW Brasil, o ex-ministro argumenta que as sanções levam a uma piora generalizada dos indicadores sociais nos países afetados.

 

"Primeiro, há uma ilusão de que são sanções econômicas. É preciso ter clareza: sanções matam. Eu dirigi um comitê sobre sanções durante a invasão do Iraque. Naquela época, eram sanções autorizadas pela ONU. Não é o caso agora, o que torna a situação ainda mais grave", afirma.

 

Amorim, que completa 80 anos em junho, iniciou sua carreira diplomática em 1965, há quase seis décadas. Experimentado nas mesas de negociação internacionais, o ex-chanceler defende enfaticamente que sejam conduzidas negociações para frear o avanço da guerra na Ucrânia. E, em sua avaliação, esse processo só irá adiante se envolver a China.

 

 

"Quem tem capacidade de fazer um Plano Marshall hoje em dia não são os EUA nem a Europa, mas a China. Logo, é preciso envolver a China nisso, pois é quem tem as melhores condições de coordenar ou ajudar, pelo menos, em um processo de paz por uma negociação rápida. Isso vai exigir do Ocidente a compreensão de um fato real: o mundo, independentemente da guerra, já estava mudando. A solução dessa guerra depende muito da China", avalia.

 

Ante o avanço da guerra na Ucrânia, o país asiático tem adotado uma postura de cautela. Ao mesmo tempo que evita condenar a Rússia, Pequim tem buscado demonstrar preocupação com a situação ucraniana.

 

À DW Brasil, Amorim falou também sobre o cenário eleitoral no Brasil. O ex-chanceler, que tem acompanhado Lula em viagens internacionais, vê com bons olhos a aproximação do ex-presidente com Geraldo Alckmin (PSB), que será candidato a vice em sua chapa.

 

"Daqui até as eleições, vai haver muita turbulência, sobretudo nas redes sociais, com esse culto do ódio, da retórica do inimigo, que são o oposto do que o Lula representa. Ele convidou o Alckmin, que era de outro partido e foi o rival dele na última eleição que o Lula disputou. Portanto, é uma política de conciliação, de pacificação. Eu, como diplomata, sou defensor da paz interna e externa, então considero a vitória do Lula muito importante", diz.

 

Para o ex-chanceler, a extrema direita é uma grande ameaça para a humanidade. "Ela mente e se vale de maneira totalmente inadequada dos meios tecnológicos. É um processo irreversível, as redes estão aí. Superar esse problema envolve muita educação – que é diferente de doutrinação. As pessoas têm que entender melhor qual é seu lugar no mundo e o que é a política."

 

A entrevista é de João Pedro Soares, publicada por Deutsche Welle, 22-04-2022.

 

Eis a entrevista.

 

No contexto da guerra na Ucrânia, o senhor tem sido muito crítico com relação às sanções impostas à Rússia. Por quê?

 

Porque as sanções são um desastre. Primeiro, há uma ilusão de que são sanções econômicas. É preciso ter clareza: sanções matam. Eu dirigi um comitê sobre sanções durante a invasão ao Iraque. Naquela época, eram sanções autorizadas pela ONU. Não é o caso agora, o que torna a situação ainda mais grave. Mesmo naquele contexto, já se via que o efeito das sanções não é imediato, como uma bomba que vai e destrói. Mas, se você olhar o efeito das sanções em sete, oito anos, tempo em que acompanhei esse assunto, todos os indicadores apresentam piora: mortalidade infantil, abastecimento de água, qualidade de vida, educação, expectativa de vida, entre outros. Russos morrerão por causa das sanções, não há ilusão sobre isso.

 

Há também um efeito pérfido sobre a economia mundial. Se o Brasil quiser comprar fertilizantes da Rússia ou de Belarus, não pode, não passa pelos Países Bálticos. Ao mesmo tempo, a Europa continua comprando gás e petróleo da Rússia. Nós, que não temos nada a ver com o conflito diretamente, estamos sendo fortemente atingidos por essas sanções, enquanto a Europa está com o seu interesse fundamental preservado. Isso é um absurdo. A Embraer, uma companhia brasileira, não pode prestar assistência, se quiser, aos aviões russos civis. Não me refiro aos militares. Tudo isso é muito discutível.

 

 

Há um grande temor com relação a uma crise energética, e os preços da energia já estão sendo afetados no mundo inteiro. Porém, mais grave que isso é o risco de uma crise alimentar. Juntas, Rússia e Ucrânia são responsáveis por cerca de um terço das exportações mundiais de cereais, ou pelo menos de trigo e cevada. Por conta do cenário atual, pessoas morrerão de fome em Guiné-Bissau, em São Tomé e Príncipe, no Haiti. Quem tem dinheiro para comprar o alimento irá encontrar, mas os preços sobem. Eu me recordo que, quando houve uma crise de abastecimento global envolvendo o arroz, aconteceram golpes de Estado imediatamente em São Tomé e no Haiti, por conta da escassez alimentar nesses países. Quando falamos em crise gerada pela guerra, só estamos olhando para o capital financeiro. Eu estou pensando nas pessoas que comem e vão deixar de comer, vão ser desempregadas.

 

Como o senhor tem visto o avanço da guerra na Ucrânia?

 

Eu estou muito preocupado, é um problema muito sério para o mundo. Quero dizer o seguinte: negociações já, negociações imediatas. Para isso, sem dúvida, países como Alemanha e França são muito importantes, mas a China é fundamental. Para você influir, tem que ter poder de persuasão. A China tem isso. Talvez outros países em desenvolvimento, não pelo peso econômico, mas pelo lado político, também tenham algum poder de persuasão. Não é o caso do Brasil hoje, mas talvez a Índia, ou a Turquia.

 

Tenho ficado muito incomodado com opiniões que leio na imprensa europeia. Em um jornal francês, um colunista escreveu que a Rússia é intrinsecamente expansionista, com raízes históricas. Ora, não foi Nicolau 1º que esteve em Paris, mas Napoleão que esteve em Moscou. E tanques alemães estiveram a 40 quilômetros da cidade.

 

Eu acho a ação russa condenável, e a Ucrânia vai precisar de apoio, inclusive econômico. Quem tem capacidade de fazer um Plano Marshall hoje em dia não são os EUA nem a Europa, mas a China. Logo, é preciso envolver a China nisso, pois é quem tem as melhores condições de coordenar ou pelo menos ajudar em um processo de paz por uma negociação rápida. Isso vai exigir do Ocidente a compreensão de um fato real: o mundo, independentemente da guerra, já estava mudando. A solução dessa guerra depende muito da China.

 

O acordo de livre comércio Mercosul-União Europeia ganhou nova relevância com o início da guerra na Ucrânia. O senhor vê com bons olhos essa possibilidade?

 

No governo Itamar Franco, eu fui a primeira autoridade brasileira, com o apoio do presidente, a me interessar por um acordo entre Mercosul e União Europeia, em 1994. Junto com os outros três ministros do Mercosul, fui ao gabinete do Jacques Delors [ex-presidente da Comissão Europeia], e assinamos um primeiro protocolo de intenções. Portanto, eu vejo de maneira muito positiva um acordo Mercosul-União Europeia, de modo geral.

 

Não creio que haja um oportunismo em razão da guerra, mas alguns pontos talvez precisem ser reforçados. Possivelmente, a parte ambiental e a de direitos humanos, até pela experiência que nós estamos tendo agora no Brasil. Porém, é preciso a União Europeia compreender que, para a América do Sul ter estabilidade, é necessário criar empregos. Não se pode fazer um acordo de livre comércio só na base do neoliberalismo. Deve-se compreender também o interesse do desenvolvimento industrial e tecnológico da América do Sul. Agora, eu acho estratégica uma relação entre América do Sul e Europa e pude ver essa sinalização nas conversas do Lula com o Emmanuel Macron e outros líderes europeus.

 

Eu poderia dizer mais amplamente que tanto a América do Sul quanto a Europa não têm interesse em uma nova Guerra Fria, muito menos em uma "guerra quente" como a que está ocorrendo agora. Isso é muito ruim para a humanidade, e os riscos são enormes.

 

Do ponto de vista do Brasil, defendo o seguinte: negociações já. Não dá para esperar mudar a correlação de forças, não dá, pode ser tarde demais. Os países, assim como as pessoas, às vezes agem por impulso. Eu não apoio de maneira nenhuma a ação de Vladimir Putin. Pelo contrário, sou crítico. Além de ter quebrado um princípio das Nações Unidas, foi um erro político do ponto de vista da Rússia. Eu critiquei o ataque à Sérvia, que foi uma violação do princípio da integridade territorial dos Estados, portanto não posso deixar de condenar a ação do Putin. Mas eu acho que a solução tem que ser buscada multilateralmente, com a participação de mais países. É preciso levar em conta as mudanças que já ocorreram no plano mundial. Quanto antes se fizer isso, melhor. E isso não é possível sem a participação ativa da China, único país que tem capacidade real de persuasão sobre a Rússia.

 

Falando agora sobre o cenário interno no Brasil, no caso de vitória do Lula na eleição presidencial, o senhor teme que possa ocorrer um episódio semelhante ao da invasão do Capitólio nos Estados Unidos?

 

Se eu for confiar na palavra do presidente Jair Bolsonaro, embora eu não confie, vai ser Capitólio, ele já disse no passado. O primeiro ensaio foi no 7 de Setembro, e não deu certo, então é possível que isso tenha algum efeito. Temos que estar muito atentos. Daqui até as eleições, vai haver muita turbulência, sobretudo nas redes sociais, com esse culto do ódio, da retórica do inimigo, que são o oposto do que o Lula representa. Ele convidou o Alckmin, que era de outro partido e foi seu rival na última eleição que disputou. Portanto, é uma política de conciliação, de pacificação. Eu, como diplomata, sou defensor da paz interna e externa, então considero a vitória do Lula muito importante.

 

Não acredito que o Bolsonaro tenha êxito em um plano desse tipo, nem que haja um golpe militar para mantê-lo no poder. Agora, eu acho que pode haver tentativas, como no 7 de Setembro. Ali, não chegou a se materializar, mas é preciso estar muito atento.

 

Seria muito bom que a guerra na Ucrânia fosse resolvida, dentre outros motivos, para que a Europa possa prestar um pouco de atenção ao que ocorre aqui. O Brasil é o quinto maior país do mundo, o sexto em termos de população, e sempre esteve entre as dez maiores economias do mundo – agora não, porque está lá embaixo. É uma nação com muita influência no mundo em desenvolvimento. Seria um erro a União Europeia fazer uma aposta imediatista em um governo Bolsonaro, como fez no passado.

 

Um dos temas que mais ganhou visibilidade no governo Bolsonaro foi o avanço do desmatamento. Como esse assunto será enfrentado por um eventual governo do PT?

 

O governo Bolsonaro foi a época de maior desmatamento, ao contrário dos governos Lula e Dilma Rousseff, quando diminuiu substancialmente. Eu não sou dirigente do PT, mas participo de alguns conselhos e converso com pessoas do partido. Eu diria que, em todos os movimentos de esquerda que apoiarão a candidatura do Lula, há uma consciência hoje sobre a necessidade de estar atento ao aquecimento global e ao meio ambiente. Portanto, esta será uma pauta prioritária, bem como a questão de gênero e raça, muito importantes no Brasil.

 

Parece haver uma mudança em curso na América Latina. O Chile tem um presidente progressista, que representa uma nova geração, enquanto a Colômbia pode eleger o primeiro governo de esquerda em sua história. A eleição brasileira, em outubro, é a mais importante para o continente. Olhando para as experiências anteriores desse campo político na região, quais são os desafios colocados para quem vier a ocupar o poder no ano que vem?

 

Do ponto de vista dos desafios estruturais, eles são os mesmos, sobretudo o combate à desigualdade. No governo Lula, o índice de Gini, que mede a desigualdade, diminuiu pela primeira vez desde que o indicador é aferido. O Brasil se tornou menos desigual. Também de forma inédita, o Brasil saiu do mapa da fome da ONU – já no governo Dilma, como consequência de políticas implementadas pelo Lula e também na gestão dela. Agora, voltamos para o mapa da fome, e o desemprego aumentou. Esses são os grandes desafios, sociais e econômicos, que incluem a questão da igualdade racial, de gênero, e a pauta ambiental.

 

Mas há, ainda, um desafio político: como fazer isso e evitar que se repita o golpe brando movido contra Dilma, bem como o lawfare aplicado contra o Lula. Acho que nós aprendemos alguma coisa nesse sentido, como a importância de ter uma narrativa para acompanhar a execução de políticas públicas. Por exemplo, muitas pessoas que se beneficiaram do Minha Casa Minha Vida, do Bolsa Família, atribuíam isso à justiça divina, ao mérito pessoal, que também faz parte, mas não explica tudo. Portanto, é necessário mostrar para a população que essas conquistas se devem a políticas públicas.

 

Quanto ao diálogo com outras forças políticas, ninguém pode negar que o Lula manteve boas relações. Eu fui ministro das Relações Exteriores durante todo o governo Lula, ministro da Defesa do governo Dilma, e nesse período não houve nenhum conflito sério com governadores, sendo que muitos eram de outros partidos. Agora, existe uma direita subterrânea, com apoio internacional, encarnada na personalidade do Steve Bannon, que é o mentor. Eles dizem que o Lula é a maior ameaça ao mundo, que ele é comunista e perigoso. Nós precisamos ter clareza sobre essa ameaça que também está presente na Europa. É uma realidade na Alemanha; na Espanha, com o Vox; na França, com a Marine Le Pen. O mesmo se observa na América Latina.

 

Supondo que nós consigamos resolver o problema da guerra na Ucrânia agora, pela negociação, a grande ameaça para a humanidade é a extrema direita. Ela mente e se vale de maneira totalmente inadequada dos meios tecnológicos. É um processo irreversível, as redes estão aí. Superar esse problema envolve muita educação – que é diferente de doutrinação. As pessoas têm que entender melhor qual é seu lugar no mundo e o que é a política. Não é possível mover-se por uma lógica do amigo e inimigo, que a extrema direita usa. Durante a ditadura militar no Brasil, os esquadrões da morte cantavam músicas que exaltavam a amizade, mas era a amizade entre eles, contra os outros. Essa lógica tem que ser superada. Precisamos de muito debate, cultura, intercâmbio e, sobretudo, respeito.

 

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