Por que as vítimas e testemunhas de abusos se recusam a testemunhar na África? Entrevista com a irmã Josée Ngalula

Josée Ngalula (Fonte: YouTube)

26 Abril 2022

 

A irmã Josée Ngalula é a primeira mulher africana a integrar a Comissão Teológica Internacional. Religiosa de Santo André e professora de teologia dogmática em vários institutos teológicos da África, ela também presta, há 20 anos, apoio pastoral às vítimas de abusos sexuais em contexto africano, bem como às instituições que as supervisionam.

 

A entrevista é de Lucie Sarr, publicada por La Croix Africa, 19-04-2022. A tradução é do Cepat.

 

Nesta entrevista concedida ao La Croix Africa, ela explica por que, no contexto africano, especialmente em áreas rurais e entre as famílias pobres, é muito importante prestar atenção a outras evidências, em vez de apenas esperar a palavra explícita das vítimas.

 

Eis a entrevista.

 

Uma pesquisa do La Croix Africa revelou a dificuldade na África para as vítimas denunciar abusos sexuais nas famílias e nas Igrejas. Em uma conferência que acaba de dar e que se baseia em 20 anos de estudos que você realizou com vítimas de abusos sexuais e as instituições que as supervisionam, você menciona os principais motivos para a recusa das vítimas e das testemunhas de abusos sexuais a depor. A quem se destina este relatório e qual é a sua finalidade?

 

Este relatório foi feito a pedido das instituições eclesiais ansiosas por explorar os conhecimentos existentes para melhor ajudar a Igreja no acompanhamento das vítimas de abusos sexuais nas famílias, na sociedade, nas paróquias e em outras estruturas eclesiais.

 

Quais são, segundo este relatório, os motivos da recusa?

 

Existem 8 principais razões pelas quais as vítimas e testemunhas de abusos sexuais cometidos na África, principalmente nas áreas rurais, por pessoas em cargos de qualquer autoridade, são impedidas de falar quando é necessário denunciar os agressores. É importante discuti-los para encontrar soluções que lhes permitam testemunhar em completa serenidade e segurança.

Uma das razões é que a questão da virgindade provoca o medo de falar.

Com efeito, do ponto de vista cultural, a virgindade da jovem ainda é um valor sagrado, sobretudo nas zonas rurais. Consequentemente, uma jovem de família estritamente cristã ou consagrada que perde a virgindade é estigmatizada, e nem nos perguntamos em que circunstâncias isso acontece. É considerada automaticamente como “suja”. Por causa disso, algumas congregações expulsam sistematicamente uma religiosa quando descobrem que ela perdeu a virgindade. E isso provoca muito medo nelas: denunciar que foi vítima de toque ou estupro é fazer chegar aos ouvidos da sociedade que ela perdeu a virgindade. Por medo de serem estigmatizadas e expulsas da família (para a jovem) ou do convento (para as freiras vítimas de abusos sexuais), não denunciam e sofrem em silêncio.

Por outro lado, os abusadores pervertidos optam por estuprar essas categorias de jovens e mulheres assim assustadas, porque têm certeza de que nunca farão a denúncia, por medo de serem expulsas da família ou do convento. Conclusão: os abusadores continuarão cometendo crimes sexuais com total impunidade, pois no momento do julgamento serão inocentados por falta do testemunho da própria vítima.

Mas os abusadores devem saber que a partir de agora isso não funcionará mais: as várias autoridades já estão cientes e tomaram providências para encontrar outras evidências além do depoimento oral das vítimas.

 

Mas as mesmas situações também acontecem com mulheres casadas…

 

Sim, porque muitas vezes em nossas sociedades, ser estuprada é o mesmo que praticar adultério. Uma mulher casada vítima de estupro é automaticamente repudiada, mesmo que haja provas objetivas de que ela realmente foi vítima (em situação de guerra, por exemplo). Consequência: as mulheres casadas vítimas de abusos sexuais não denunciam, por medo de serem repudiadas e serem desprezadas pela própria família. Isso faz com que os abusadores pervertidos optem por estuprar mulheres casadas, para ter certeza de que não serão denunciados. No entanto, as várias autoridades estão bem cientes hoje: os abusadores não serão mais inocentados porque uma ação importante foi realizada em várias dioceses para que a vítima seja chamada vítima e protegida: os agressores não podem mais ser inocentados.

 

Seu relatório destaca que as questões tribais e étnicas às vezes são instrumentalizadas pelos abusadores...

 

Sim, acontece. Geralmente no meio rural, quando se denuncia o mau comportamento de uma autoridade qualquer, as pessoas de sua família e de sua tribo se unem contra o denunciante, acusando-o de querer tirar seu “irmão” para que sua família ou tribo “perca o poder”. O menor esforço para buscar a justiça e o estado de direito é assim tribalizado. Isso acontece até mesmo em ambientes cristãos. Consequentemente, quando um padre ou pastor se comporta mal (em qualquer área) e os cristãos se atrevem a denunciar, estes últimos enfrentam insultos e até ataques físicos de membros da família e da tribo do pastor ou do padre.

No caso dos abusos sexuais, aquelas e aqueles que ousavam denunciar eram ameaçados e, às vezes, até agredidos fisicamente pela família do padre ou do pároco. Nesse contexto, tanto as vítimas quanto as testemunhas vivem com um medo muito profundo dessas represálias e preferem nunca contar a verdade dos fatos. Preferem ficar em silêncio, para sempre. No entanto, um grande trabalho está sendo feito em muitos ambientes judiciais para proteger as vítimas e as testemunhas, para que possam testemunhar com toda segurança por suas vidas.

 

Você também menciona o uso de drogas pelos abusadores. Algumas vítimas de abusos sexuais são drogadas?

 

Sim. Isso resulta em uma falta de rastreabilidade. De fato, alguns abusos sexuais ocorrem em um contexto em que o agressor droga a vítima. Aqui na República Democrática do Congo, conheço vários casos em que pastores, profetas e sacerdotes que recebem jovens cristãs em acompanhamento espiritual, oferecem-lhes um suco (ou outra coisa) para beber, no qual colocam um pouco de pó para dormir. A jovem adormece de repente por duas ou três horas e, ao acordar, descobre que foi desnuda e depois mal vestida, às vezes até sangrando. Nesse contexto, é impossível acusar o padre de estupro com provas objetivas, pois nos julgamentos pedem para contar exatamente o que aconteceu: a vítima não consegue descrever as palavras e os gestos do agressor porque estava sob a influência de uma droga. Foi assim que vários padres, pastores e profetas saíram inocentes do tribunal eclesiástico: a vítima não pode provar que era realmente ele.

Portanto, não há rastreabilidade do ato de agressão. Esta situação humilha profundamente a vítima e seus advogados. As jovens vítimas que sofreram esse tipo de situação preferem ficar caladas, em vez de acusar e sofrer essa humilhação uma segunda ou terceira vez. No entanto, as autoridades civis, eclesiais e familiares foram suficientemente conscientizadas. Para que a vítima seja chamada de vítima e seja protegida, os agressores não podem se esconder, porque atualmente existem vários mecanismos para que sejam encontrados.

 

O consagrado é considerado por muitos cristãos africanos uma figura sagrada. Essa imagem pode representar uma dificuldade para denunciar um abusador que acaba se apresentando como um “servidor de Deus”?

 

Sim, esse é um dos motivos destacados no relatório. Na mente de muitos cristãos congoleses, a pessoa do “servidor de Deus” é “sagrada”: quando há um toque em um contexto positivo (sacramentos e sacramentais), saímos dele abençoados por Deus; por outro lado, quando há um toque em um contexto negativo, as pessoas estão convencidas de que recebem automaticamente uma maldição divina, independentemente das circunstâncias. É neste contexto que as vítimas (homens e mulheres) dos abusos sexuais por parte de pastores, profetas e sacerdotes estão profundamente convencidas de serem amaldiçoadas por Deus e de terem traído a Igreja: mesmo que sejam vítimas, o simples fato de ter tido contato negativo com o corpo do “servidor de Deus” as convence de que Deus não está feliz com isso, de que há traição da parte deles.

Portanto, em vez de denunciar o abusador, denunciam-se a si mesmas como “pecadores”, com uma culpa muitas vezes mórbida. É por isso que se recusam a denunciar ou testemunhar: estão totalmente focadas nessa culpa, e denunciar publicamente um “servidor de Deus” é provocar danos adicionais à Igreja e a Deus. Se é um “servidor de Deus” que tem um alto cargo na Igreja, é ainda pior: estão convencidas de que acusar é fazer o mal ao próprio Jesus Cristo! No entanto, a legislação vigente na Igreja Católica não inocenta de forma alguma os clérigos, e várias medidas são tomadas por nossa Igreja Católica para que a vítima se sinta à vontade para chamar o mal pelo nome e denunciar. Em outras denominações cristãs, também há um grande despertar sobre essa questão, para que as vítimas abram a boca e denunciem à polícia.

 

Você também menciona a questão da catequese promovida em torno do perdão em nossas Igrejas na África e que não facilita a denúncia dos abusos...

 

Em quase todos os ambientes cristãos da República Democrática do Congo, diz-se às vítimas que na Bíblia Deus pede para perdoar seus algozes: portanto, devemos “esquecer” e não acusar o abusador. Geralmente, são os advogados que incentivam a fazer a denúncia, mas não os cristãos devotados. Ao ouvir que um “verdadeiro cristão” deve perdoar, as vítimas quase se envergonham de denunciar e testemunhar os abusos sexuais cometidos tanto na família como nas estruturas da Igreja.

Felizmente, a doutrina social da Igreja Católica alia o perdão e a justiça: perdoar no coração não significa limpar o mal e o pecado. Vários documentos do magistério insistem nisso. Quando foi feita uma tentativa de assassinar o Papa João Paulo II, ele perdoou seu inimigo e até o visitou na prisão várias vezes; mas, ao mesmo tempo, deixou que a justiça da Itália fizesse o seu trabalho: o senhor foi julgado de acordo com a lei do país e punido como previsto, para que tomasse conhecimento da gravidade do erro que cometeu e não cometesse isso de novo. É também para proteger potenciais futuras vítimas.

 

Um dos principais problemas quando se trata de abusos é o consentimento. Como você aponta no seu relatório, às vezes é manipulado…

 

Sim, o consentimento às vezes é arrancado por trapaça e manipulação da consciência das vítimas.

De fato, em um contexto familiar, muitos pais ou anciãos cometem estupros incestuosos manipulando suas vítimas recorrendo ao delicado assunto da obediência ou dos pais: “Você realmente recusaria algo ao seu pai?” É uma manipulação da consciência. Isso também acontece no contexto eclesial: certos sacerdotes, pastores e profetas obtêm o consentimento de suas vítimas com dois tipos de manipulação.

Em primeiro lugar, às jovens de extrema piedade, os clérigos perversos explicam-lhes insistentemente que são “esposas” de Jesus com base na manipulação de 2Cor 11, 2, e que uma “boa esposa” não recusa nada ao esposo. Num segundo momento, o sacerdote, pastor ou profeta apresenta-se como o representante físico de Jesus na terra: Cristo se “servirá” do corpo do seu servidor para demonstrar o afeto à sua “esposa”. Nesse contexto, as jovens sem muito discernimento e pensamento crítico se empolgam, convencidas de que têm um favor que muitas mulheres não têm.

O segundo tipo de manipulação diz respeito às pessoas que têm um medo extremo do mundo invisível, dos feitiços e de outras coisas do gênero: os “servidores de Deus” pervertidos explicam-lhes que precisam de uma libertação física que consiste em uma “massagem espiritual” com unção com óleo sagrado. Eles conseguem “convencer” as jovens sem discernimento de que para sua libertação não é apenas necessário ungi-las com óleo externo sobre seu corpo completamente nu, mas que essa unção deve ser realizada dentro do corpo, através de um ato sexual.

E em ambas as situações, quando as jovens percebem que houve abuso sexual e se queixam, o pervertido “servidor de Deus” responde que elas “consentiram”. E é impossível que as vítimas demonstrem que houve manipulação, porque elas não têm argumentos sólidos. E é muitas vezes nessas duas situações que as jovens se encontram em escravidão sexual, porque o “servidor de Deus” multiplica as sessões de “libertações” que ele afirma serem “necessárias” para a salvação da jovem.

No entanto, isso não funcionará mais porque há vários anos uma grande ação tem sido realizada em um contexto pastoral para dar às cristãs e aos cristãos pontos de referência para que descubram as interpretações das Bíblias que estão sendo instrumentalizadas a serviço da maldade humana e do pecado.

 

Em alguns casos de estupro, os familiares são corrompidos pelos abusadores  ou instrumentalizados pela situação para enriquecer?

 

Em alguns casos de estupro, já aconteceu de familiares gananciosos aproveitarem para chantagear o “servidor de Deus” que cometeu o abuso sexual. Eles geralmente são apoiados por advogados ou juristas que conhecem a lei. O sofrimento da mulher abusada torna-se seu negócio para extrair dinheiro do abusador, em troca de seu silêncio. E como chantagem, geralmente se exige dinheiro em espécie; mas houve casos em que se exigiu uma indenização mais pesada pela perda da virgindade e da honra da família/tribo, por exemplo exigindo que a jovem fosse educada no exterior, que se comprasse um terreno para a família, que lhe fosse dada uma posição de poder, etc. Às vezes a própria vítima entra nesse jogo de chantagem, às vezes se escandaliza e se afasta das negociações. E quando o abusador cedeu a essa chantagem, não há nenhuma denúncia: tanto a família como a vítima se recusarão a testemunhar, ou testemunharão abertamente pela inocência do abusador.

 

Soma-se a esses fatores o grande pudor das nossas culturas africanas...

 

Nas culturas africanas há muito pudor em relação à intimidade do corpo humano. Por conseguinte, é muito grosseiro e indecente dar detalhes sobre gestos e fatos relativos à sexualidade humana. Assim, no caso dos abusos sexuais, tanto as vítimas (homens e mulheres) como as testemunhas se recusam a dar detalhes do que aconteceu, por falta de boas maneiras nessa área (geralmente chamada em línguas africanas de “vergonha”). No entanto, a divulgação amplamente midiatizada da Lei do Estado congolês sobre as violências sexuais nos últimos vinte anos está dando frutos: as vítimas começam a superar o pudor e a falar, mesmo nas áreas rurais.

 

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