Ataques impiedosos ao Papa Francisco, “um justo entre as nações”

Foto: Mazur | Flickr CC

29 Março 2022

 

"Ergo minha voz em defesa do Papa Francisco a partir da periferia do mundo, do Grande Sul. Comparemos os números: na Europa vivem apenas 21,5% dos católicos, 82% vivem fora dela, sendo que 48% na América. Somos, portanto, vasta maioria. Até meados do século passado a Igreja Católica era do primeiro mundo. Agora é uma Igreja do terceiro e quarto mundo, que, um dia, teve origem no primeiro mundo. Aqui surge uma questão geopolítica. Os conservadores europeus, com exceção de notáveis organizações católicas de cooperação solidária, nutrem um soberano desdém pelo Sul, notadamente pela América Latina", escreve Leonardo Boff, teólogo, filósofo e escritor.

 

Eis o artigo.

 

Desde o início de se pontificado há nove anos, o Papa Francisco está sob furiosos ataques de cristãos tradicionalistas e supremacistas brancos quase todos do Norte do mundo, dos Estados Unidos e da Europa. Fizeram até um complô, envolvendo milhões de dólares, para depô-lo como se a Igreja fosse uma empresa e o Papa seu CEO. Tudo em vão. Ele segue seu caminho no espírito das bem-aventuranças evangélicas dos perseguidos.

 

 

Várias são as razões desta perseguição: razões geopolíticas, disputa de poder, outra visão de Igreja e o cuidado da Casa Comum.

 

Ergo minha voz em defesa do Papa Francisco a partir da periferia do mundo, do Grande Sul. Comparemos os números: na Europa vivem apenas 21,5% dos católicos, 82% vivem fora dela, sendo que 48% na América. Somos, portanto, vasta maioria. Até meados do século passado a Igreja Católica era do primeiro mundo. Agora é uma Igreja do terceiro e quarto mundo, que, um dia, teve origem no primeiro mundo. Aqui surge uma questão geopolítica. Os conservadores europeus, com exceção de notáveis organizações católicas de cooperação solidária, nutrem um soberano desdém pelo Sul, notadamente pela América Latina.

 

 

A Igreja-grande-instituição foi aliada da colonização, cúmplice do genocídio indígena e participante do escravagismo. Aqui foi implantada uma Igreja colonial, espelho da Igreja europeia. Ocorre que ao longo de mais de 500 anos, não obstante a persistência da Igreja espelho, ocorreu uma eclesiogênese, a gênese de um outro modo de ser igreja, uma igreja, não mais espelho mas fonte: incarnou-se na cultura local indígena-negra-mestiça e de imigrantes de povos vindos de 60 países diferentes.

 

Desta amálgama, gestou seu estilo de adorar a Deus e de celebrar, de organizar sua pastoral social do lado dos oprimidos que lutam por sua libertação. Projetou sua teologia adequada à sua prática libertadora e popular. Tem seus profetas, confessores, teólogos e teólogas, santos e santas e muitos mártires, entre os quais o arcebispo de San Salvador Arnulfo Oscar Romero. Esse tipo de Igreja é fundamentalmente, composta por comunidades eclesiais de base, onde se vive a dimensão de comunhão de iguais, todos irmãos e irmãs, com seus coordenadores leigos, homens e mulheres, com sacerdotes inseridos no meio do povo e bispos, nunca de costas para o povo como autoridades eclesiásticas, mas como pastores junto deles, com “cheiro de ovelhas" com a missão de serem os “deffensores et advovati pauperum” como se dizia na Igreja dos primórdios.

 

Papas e autoridades doutrinárias do Vaticano tentaram cercear e até condenar tal modo de ser-Igreja, não raro, com o argumento de que não são Igreja pelo fato de não se ver nelas o caráter hierárquico e o estilo romano. Essa ameaça perdurou por muitos anos até que, em fim, irrompeu a figura do Papa Francisco. Ele veio do caldo desta nova cultura eclesial bem expressa pela opção preferencial, não excludente, pelos pobres e pelas várias vertentes da teologia da libertação que a acompanha. Ele conferiu legitimidade a este modo de viver a fé cristã, especialmente em situações de grande opressão.

 

 

Mas o que mais está escandalizando cristãos tradicionalistas foi seu estilo de exercer o ministério de unidade da Igreja. Não comparecia mais como o pontífice clássico, vestido com os símbolos pagãos, assumidos dos imperadores romanos, especialmente a famosa “mozzeta” aquela capazinha branca cheia de símbolos do poder absoluto do imperador e do papa. Francisco logo se livrou dela e vestiu uma “mozzeta” branca, despojada, como aquela do grande profeta do Brasil, dom Helder Câmara e com sua cruz de ferro sem qualquer joia. Negou-se a morar num palácio pontifício, o que faria São Francisco sair do túmulo e conduzi-lo para onde ele escolheu viver: numa simples casa de hóspedes, Santa Marta. Aí entra na fila para servir-se e come junto com todos. Com humor podemos dizer: assim é mais difícil de envenená-lo. Não calça Prada mas seus velhos e gastos sapatões. No anuário pontifício no qual se usa uma página inteira com os títulos honoríficos dos Papa, ele simplesmente renunciou a todos e apenas escreveu Franciscus, pontifex. Disse claramente num de seus primeiros pronunciamentos que não vai presidir a Igreja com o direito canônico mas com o amor e a ternura. Um sem número de vezes repetiu que queria uma Igreja pobre e de pobres.

 

Todo o grande problema da Igreja-grande-instituição reside, desde dos imperadores Constantino e Teodósio, na assunção do poder político, transformado no poder sagrado (sacra potestas). Esse processo chegou à sua culminância com o Papa Gregório VII (1075) com sua bula Dictatus Papae que bem traduzida é a “Ditadura do Papa”. Como diz o grande eclesiólogo Jean-Yves Congar, com este Papa se consolidou a mais decisiva virada da Igreja que tantos problemas criou e da qual nunca mais se libertou: o exercício centralizado, autoritário e até despótico do poder. Nas 27 proposições da bula, o Papa é considerado o senhor absoluto da Igreja, o senhor único e supremo do mundo, tornando-se a autoridade suprema na campo espiritual e temporal. Isso nunca foi desdito.

 

Basta ler o Canon 331 no qual se diz que “o Pastor da Igreja universal tem o poder ordinário, supremo, pleno, imediato e universal”. Coisa inaudita: se riscarmos o termo Pastor da Igreja universal e colocarmos Deus funciona perfeitamente. Quem dos humanos, senão Deus, pode atribuir-se tal concentração de poder? Não é sem significado que na história dos Papas houve um crescendo no faraoismo do poder: de sucessor de Pedro, os Papas se entenderam representantes de Cristo. E com se não bastasse, representantes de Deus e até sendo chamados de deus minor in terra.

 

Aqui se realiza a hybris grega e aquilo que Thomas Hobbes constata em seu Leviatã: “Assinalo, como tendência geral de todos os homens, um perpétuo e irrequieto desejo de poder e de mais poder. A razão disso reside no fato de que não se pode garantir o poder senão buscando ainda mais poder”. Pois esta foi a trágica trajetória da Igreja Católica às voltas com o poder que persiste até os dias de hoje, fonte de polêmicas com as demais Igrejas cristãs e de extrema dificuldade de assumir os valores humanísticos da modernidade. Ela dista anos luz da visão de Jesus que queria um poder-serviço (hierodulia) e não um poder-hierárquico (hierarquia).

 

Disso tudo se afasta o Papa Francisco, o que causa indignação aos conservadores e até reacionários bem expresso no livro de 45 autores de outubro de 2021: ”Da paz de Bento à guerra de Francisco” (From Benedict’s Peace to Francis’s War) organizado por Peter A. Kwasniesvski. Nós faríamos a retórquio assim: "Da paz dos pedófilos de Bento (encobertos por ele) à guerra aos pedófilos de Francisco (condenados por ele)". É sabido que o Papa retirado Bento XVI foi indiciado culposamente por um tribunal de Munique devido à sua leniência com padres pedófilos.

 

Há um problema de geopolítica eclesiástica: os tradicionalistas rejeitam um Papa que vem “do fim do mundo” que traz para o centro do poder do Vaticano um outro estilo mais próximo à gruta de Belém do que dos palácios dos imperadores. Se Jesus aparecesse ao Papa em seu passeio pelos jardins do Vaticano, seguramente, diria: “Pedro, sobre estas pedras palacianas jamais construiria a minha Igreja”. Essa contradição é vivida pelo Papa Francisco pois renunciou ao estilo palaciano e imperial.

 

 

Trava-se, com efeito, um embate de geopolítica religiosa, entre o Centro que perdeu a hegemonia em número e em irradiação mas que conserva os hábitos de exercício autoritário do poder e a Periferia, numericamente majoritária de católicos, com igrejas novas, com novos estilos de vivência da fé e em permanente diálogo com o mundo especialmente com os condenados da Terra, tendo sempre uma palavra a dizer sobre as chagas que sangram no corpo do Crucificado, presente nos empobrecidos e oprimidos.

 

Talvez o que mais incomoda os cristãos engessados no passado é a visão de Igreja vivida pelo Papa. Não uma Igreja-castelo, fechada em si mesma, em seus valores e doutrinas, mas uma Igreja “hospital de campanha” sempre “em saída rumo às periferias existenciais”. Ela acolhe a todos sem perguntar por seu credo ou sua situação moral. Basta que sejam seres humanos em busca de sentido de vida e sofredores pelas adversidades deste mundo globalizado, injusto, cruel e sem piedade. Condena de forma direta o sistema que dá centralidade ao dinheiro à custa de vidas humanas e da natureza. Realizou vários encontros mundiais com movimentos populares. No último, o quarto, disse explicitamente: "Este sistema (capitalista), com sua lógica implacável, escapa ao domínio humano; é preciso trabalhar por mais justiça e cancelar este sistema de morte". Na Fratelli Tutti o condena de forma contundente.

 

 

Orienta-se por aquilo que é uma das grandes contribuições da teologia latino-americana: a centralidade do Jesus histórico, pobre, cheio de ternura para com os sofredores, sempre do lados dos pobres e marginalizados. O Papa respeita os dogmas e as doutrinas, mas não é por elas que chega ao coração das pessoas. Para ele, Jesus veio nos ensinar a viver: a confiança total ao Deus-Abbá, viver o amor incondicional, a solidariedade, a compaixão para com os caídos nas estradas, o cuidado para com o Criado, bens que constituem o conteúdo da mensagem central de Jesus: o Reino de Deus. Prega incansavelmente a misericórdia ilimitada pela qual Deus salva seus filhos e filhas, pois Ele não pode perder nenhum deles, frutos de seu amor, “pois é o apaixonado amante da vida”(Sab 11,24). Por isso afirma que “por mais que alguém esteja ferido pelo mal, jamais está condenado sobre esta terra a ficar para sempre separado de Deus”. Em outras palavras: a condenação é só para esse tempo.

 

Convoca os pastores todos a exercerem a pastoral da ternura e do amor incondicional, resumidamente formulada por um líder popular de uma comunidade de base: ”a alma não tem fronteira, nenhuma vida é estrangeira”. Como poucos no mundo, se empenhou pelos imigrantes vindos de África e do Oriente Médio e agora da Ucrânia. Lamenta o fato de os modernos terem perdido a capacidade de chorar, de sentir a dor do outro e, como bom samaritano, socorrê-lo em seu abandono.

 

Sua mais importante obra foi a preocupação pelo futuro da vida da Mãe Terra. A Laudato Sì expressa seu verdadeiro sentido no subtítulo: “sobre o cuidado da Casa Comum”. Elabora não uma ecologia verde, mas uma ecologia integral que abarca o ambiente, a sociedade, a política, a cultura, o cotidiano e o mundo do espírito. Assume as contribuições mais seguras das ciências da Terra e da vida, especialmente, da física quântica e da nova cosmologia o fato de que “tudo está relacionado com tudo e que nos une com afeição ao irmão Sol, à irmã Lua, ao irmão rio e à Mãe Terra” como diz poeticamente na Laudato Sì. A categoria cuidado e corresponsabilidade coletiva ganham tanta centralidade a ponto de na Fratelli tutti dizer que “estamos no mesmo barco: ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”.

 

Nós latino-americanos somos-lhe profundamente gratos por haver convocado um Sínodo sobre a Amazônia, para defender esse imenso bioma de interesse para toda a Terra e como a Igreja se incarna naquela vasta região que cobre nove países.

 

Grandes nomes da ecologia mundial testemunharam: com esta sua contribuição, o Papa Francisco se coloca na ponta da discussão ecológica contemporânea.

 

Quase desesperado mas mesmo assim cheio de esperança, propõe um caminho de salvação: uma fraternidade universal e um amor social como os eixos estruturadores de uma biosociedade em função da qual estão a política, a economia e todos os esforços humanos. Não temos muito tempo nem sabedoria suficientemente acumulada, mas este é o sonho, e a alternativa real para evitar um caminho sem retorno.

 

O Papa caminhando sozinho na praça São Pedro sob uma chuva fina, em tempos da pandemia, ficará como uma imagem imorredoura e um símbolo de sua missão de Pastor que se preocupa e reza pelo destino da humanidade.

 

Talvez uma das frases finais da Laudato Sì' revela todo seu otimismo e a esperança contra toda esperança: ”Caminhemos cantando que as nossas lutas e a nossa preocupação por este planeta não nos tirem a alegria da esperança”.

 

Precisam ser inimigos de sua própria humanidade, aqueles que condenam impiedosamente as atitudes tão humanitárias do Papa Francisco, em nome de um cristianismo estéril, feito um fóssil do passado e um recipiente de águas mortas. Os ataques ferozes que fazem a ele, podem ser tudo, menos cristãos e evangélicos. Os cardeais, bispos e outros que escreveram o citado livro são cismáticos e segundo o sentido antigo do termo, são hereges, porque dilaceram a unidade corpo eclesial.

 

O Papa Francisco a tudo suporta imbuído da humildade de São Francisco de Assis e dos valores do Jesus histórico. Por isso ele bem merece o título de “um justo entre as nações”.

 

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