Elogio do não exemplar: a guerra e a ‘pietas’. Artigo de Marcello La Matina

Foto: Wikimedia Commons

04 Março 2022

 

Em seu blog Come Se Non, 02-03-2022, o teólogo italiano Andrea Grillo escreve: “Quando os eventos se tornam grandes demais, é precisamente então que é preciso predispor com urgência um pensamento corajoso e forte. Pensar o fundo escuro da guerra é um exercício fatigante e necessário. Marcello La Matina contribui com um texto muito articulado, que será publicado em quatro partes. Agradeço-o por este seu ‘de bello’”.

 

La Matina é filósofo italiano e professor de Semiótica e Filosofia da Linguagem na Universidade de Macerata, na Itália.

 

A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o artigo.

 

Elogio do não exemplar. Pequena reflexão sobre violência e pessoa (Parte 1)

 

por Marcello La Matina [1]

 

0. Prelúdio

 

A guerra, que muitos bons propósitos e algumas ações concretas tentaram evitar, voltou às portas da Europa. Ou, melhor, está alocada no próprio limiar que conecta a Europa à Ásia, naquele cadinho de histórias que deveríamos chamar mais corretamente de Eurásia.

 

O vínculo que unia dois impérios e dois mundos – em certos tempos paralelos e em outros tempos contíguos – agora se rompeu, o cursor se soltou. E a violência, real e simbólica, vem à tona sem véus, como uma pergunta indomável. Violência que não é apenas o acidente de uma região, a crise de uma época, mas um acontecimento planetário sobre o qual pairam razões políticas, religiosas, mercantis e até metafísicas.

 

Essa violência provoca reflexão. Qual é, por exemplo, o ponto de insurgência (Entstehungspunkt), para usar uma expressão cara a Nietzsche, dessa violência? É isso que queremos nos perguntar nestas páginas, instigados também por uma curiosidade que nasce da investigação filosófica do vínculo entre linguagem e violência, entre fúria taxonômica dos predicados e incerteza dos substratos.

 

 

Porque sempre há violência na linguagem e na razão; e a Razão, ao refletir sobre si mesma, deve sempre deixar algo de lado, como um resto que não entra no cômputo; algo que fere a sua exemplaridade e que, ainda que só por isso, merece uma atenção especial.

 

A. A guerra e a pietas

 

1. Uma espiral imparável?

 

O terceiro milênio começou com a derrubada das Torres Gêmeas; com um evento, portanto, arquitetônico em si mesmo, tão precisa foi a sua escansão e bem estudado o seu projeto. Arquitetar o colapso não requer menos ciência do que construir. O golpe, aquele voo de aviões que parecia um voo voraz de falcões, foi arquitetado como uma fortaleza voadora, porque, já no seu desenho arquitetônico, apareceu visível uma mensagem de violência sábia e impetuosa [2]: um oxímoro, na bem da verdade.

 

Desde então, o real e o simbólico são cada vez mais finamente caracterizados na violência contemporânea, mesmo naquela da qual normalmente não tomaríamos conhecimento. Nesse sentido, a escalada de violência a que assistimos também nos anos recentes não poderia deixar de significar uma maior quantidade ou uma maior extensão de atos violentos, mas também uma maior pervasividade da violência, uma capacidade de replicação e de manifestação que podemos presumir que são próprias de uma “sociedade das imagens”, no sentido que Guy Debord dava a essa expressão.

 

 

Segundo este último, a origem do espetáculo já está conectada à “perda de unidade do mundo”; de modo que, se é verdade que o espetáculo da violência consegue unir o mundo, é ainda mais verdade que “o espetáculo reúne o separado, mas o reúne como separado[3]. Além disso, esta violência ilustrada é um fenômeno que hoje parece cada vez mais alienante; e isso também se deve ao fato de que as relações sociais globais são mediadas por uma quantidade e por uma qualidade (no sentido de definição ou trama “pixelar”) nunca antes vistas de imagens: quanto mais o espectador da violência contempla, diz Debord, menos viverá e compreenderá a própria existência e o próprio desejo.

 

1.1

 

Uma espiral da violência tão lúcida certamente deve estar conectada à aceleração dos processos de conhecimento [4] que a globalização da informação tenta impor por toda a parte. Encontram-se em circulação muitas explicações desse processo; geralmente, porém, elas envolvem os aspectos pragmáticos das linguagens, da comunicação.

 

Sem invalidar essas tentativas, nós percorrermos um caminho diferente, tentando mostrar como a violência “ilustrada” está ligada a um paradigma ao mesmo tempo gnoseológico e ontológico. Apenas para começar, comecemos a partir de algumas simples considerações.

 

Conhecer – nos é ensinado – significa dominar, possuir a coisa conhecida [5]. É assim que as mídias globais se tornam cada vez mais instrumentos de poder. Por um lado, elas aumentam os possíveis objetos de conhecimento; por outro, implementam a sua arquitetura voraz oferecendo-se precisamente como “sistemas de vida”, ou seja, como habitats nos quais, porém, o ser se resolve no agir [6].

 

 

Como consequência disso, conhecer as coisas e as pessoas (ou seja, conhecer a vida de certos indivíduos de uma espécie qualquer, natural ou não) não significa mais passar tempo com eles, mas equivale a classificá-los aqui e agora, justamente para não ter que encontra-los depois. Assim, o real de que falamos é muitas vezes apenas o produto de repetidas inferências indutivas, um castelo de projeções e previsões, que se sustenta sobre um “apriori histórico”: a aposta atual – típica de toda projeção indutiva – na uniformidade do próprio real [7].

 

A fúria taxonômica de que nos ocupamos aqui está repleta de consequências para a ontologia do Ocidente: tanto para aquela, simples e ao mesmo tempo multifacetada, do homem comum, quanto para as sofisticadas ontologias (globais ou regionais) que os filósofos amam projetar como fundamento dos seus sistemas.

 

Pois bem, digamos desde já que o atual impulso classificatório em que a atividade do conhecimento está presa tem como efeito principal e muitas vezes despercebido a redução do singular à espécie. Na vida de todos os dias, encontrar tal coisa ou tal outra tornou-se uma feliz infração da regra; geralmente, andando com pressa, encontramos o Tipo abstrato. Deparamo-nos cada vez mais frequentemente com um homem, uma mulher, uma árvore; quase nunca com aquele dado indivíduo, com aquela tal mulher, com aquela tal árvore. E pensar que ainda hoje existem povos que tratam as árvores como pessoas [8], que dão nomes às singularidades não humanas: eles mostram assim que têm uma noção de pessoa muito mais ampla do que a do filósofo tradicional.

 

1.2

 

Qual é o ponto de insurgência – o Entstehungspunkt nietzscheano – da violência simbólica e taxonômica? Dizem-no muito bem as inúmeras agressões físicas ou sexuais que, nos últimos anos, cada vez mais frequentemente, culminam na morte do outro. Vítimas e altares dessa violência são as mulheres, os mais fracos, aqueles que não podem ser enquadrados facilmente em uma grade de categorias sociais.

 

 

Em muitos casos, a violência é descarregada sobre os idosos, sobre os estrangeiros: sobre indivíduos que são vistos como “portadores de uma diversidade não redutível à posse de traços comuns”. O mundo moderno vai direto ao ponto e identifica os possíveis diferentes, usando apenas as cores primárias; enquanto o mundo antigo – embora também expressasse uma violência de origem logicista – sabia cultivar uma corajosa pietas: por exemplo, atribuindo aos idosos o papel de senadores, tratando os estrangeiros como hóspedes ou cercando com um tapume de reserva as mulheres e os portadores de uma diversidade intransponível – como os sacerdotes, as sacerdotisas ou os portadores de certas doenças, por exemplo [9].

 

(Continua...)

 

Notas:

 

1. Quem quiser, pode escrever ao autor neste endereço: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.. Departamento de Estudos Humanísticos, Universidade de Macerata, via Illuminati 4, 62100, Macerata (Itália). Este artigo, inédito, desenvolve e argumenta algumas teses expostas na entrevista concedida à Dra. Benedetta Lombo e publicada no jornal digital Centro Pagina-Edizione di Macerata em 23 de setembro de 2020.

2. Sobre a relação entre internet, informação e violência, especialmente no mundo islâmico e com referência ao papel das imagens, veja-se o ensaio de Roberto Calasso, “L’innominabile attuale”, Milão: Adelphi, 2020.

3. Cf. Guy Debord, “La société du spectacle”, Paris: Buchet/Chastel 1967.

4. Cf. Luciano Floridi, “Infosfera. Filosofia e Etica dell’informazione”, Turim: Giappichelli, 2009.

5. A ideia de que a vontade de poder do Ocidente ficaria clara no mito da Razão está presente no debate atual em muitos autores e em diferentes âmbitos. Um texto rigoroso e original, dedicado à Grécia antiga, mas útil para comparar com os nossos tempos, é Andrea Cozzo, “Tra comunità e violenza. Conoscenza, logos e razionalità nella Grecia antica”, Roma: Carocci, 2001. Uma crítica ao modelo cognitivo expressado em termos de Sujeito/Objeto é tematizado no artigo deste que escreve, “On Subjects, Objects and Icons. A Semiotic Inquiry for a New Paradigm in Human Studies” (no prelo; atualmente em revisão por pares).

6. A ecologia das mídias pode ser considerada o campo nascido a partir das investigações do sociólogo Marshall McLuhan. É hoje uma área bastante movimentada. Uma introdução está em: Lance Strate, “Media Ecology: An Approach to Understanding the Human Condition”, Berlin-Wien: Peter Lang, 2017.

7. Uma crítica ao conformismo da indução está em Giorgio Agamben, “Che cos’è reale? La scomparsa di Majorana”, Vicenza: Neri Pozza, 2016.

8. Cf. a lectio de Emanuele Coccia, “L’io nella foresta”, Festival da Filosofia, Modena-Carpi-Sassuolo 2019. Disponível aqui.

9. Sobre a diversidade entre os gregos antigos, cf. o agora clássico volume de François Hartog, “Le Miroir d’Hérodote. Essai sur la représentation de l’autre”, Collection Bibliothèque des Histoires, Paris: Gallimard, 1980.

 

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