Qual o sentido da série “Round 6”? Violência insensata, crítica social ou apenas entretenimento?

Logo da série (Foto: Domínio público | Netflix | Wikimedia Commons)

03 Novembro 2021

 

As pessoas não conseguem parar de assistir “Round 6” pela mesma razão que os seres humanos são tentados a olhar para os acidentes de carro quando passam por eles: a nossa curiosidade supera o nosso horror.

 

A revista America, 29-10-2021, promoveu um diálogo entre Jim McDermott, SJ e Keara Hanlon sobre a série da Netflix que bateu recordes de audiência.

 

 

Assista ao trailer clicando aqui.

 

McDermott é jesuíta graduado em Literatura pelas universidades Marquette e Harvard e em Antigo Testamento e Liturgia pela Weston Jesuit School of Theology. Ex-professor da Red Cloud Indian School, na Reserva Indígena de Pine Ridge e colunista da revista America, o Pe. McDermott concluiu recentemente seu mestrado em Roteiro de Cinema pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA).

 

Hanlon é bolsista O’Hare na revista America. É formada em Comunicação, Marketing e Estudos Americanos pelo Boston College.

 

A conversa foi publicada em America, 29-10-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o diálogo.

 

Jim McDermott, SJ – Nós dois terminamos de assistir “Round 6” agora [...]. Devo dizer que, depois do primeiro episódio, eu não tinha certeza da razão pela qual o programa era tão popular ou mesmo se a Netflix não estava aumentando os números de alguma forma. Eu entendo, explosões inesperadas de violência geram audiência. Tarantino fez isso muito bem ao longo da sua vida. Mas não havia nada de Tarantino naquele primeiro jogo.

 

Keara Hanlon – A série certamente não foge da violência e define o seu tom sombrio e grotesco logo no início, quando o protagonista, Gi-hun, é forçado a renunciar a seus direitos usando uma impressão digital ensanguentada, em vez de uma assinatura escrita. Mas o que torna o primeiro jogo tão chocante é a justaposição de um jogo infantil (“Batatinha Frita 1, 2, 3”) com muito sangue. Em poucos minutos, mais de 200 jogadores são brutalmente alvejados e mortos diante dos nossos olhos, enquanto o sangue respinga pelas paredes do espaço do jogo. O que você achou da escolha criativa de colocar os jogadores em desafios baseados em jogos infantis?

Jim McDermott, SJ – Honestamente, acho que foi o gancho que me fez assistir, acima de tudo. Quer dizer, eu praticamente não conhecia nenhum desses jogos – na segunda temporada, eu gostaria de ver o desafio “Candy Land”, por favor! –, mas achei brilhante a ideia de usar jogos infantis. Nada vende tanto quanto a infância. E, abstratamente, combinar isso com violência extrema parecia estranhamente adequado, pelo menos para mim. As pracinhas infantis nos subúrbios de Chicago nos anos 1970 e 1980 eram uma espécie de pesadelo.

Mas, então, ver mais de 200 pessoas sendo baleadas na nossa frente em questão de minutos, muitas vezes da forma mais gráfica possível (“Ah, outra bala na cabeça, sério?”), parecia desnecessário. O que você acha? Era essa a intenção? Estou pensando em como um episódio posterior revela principalmente jovens brancos que parecem estadunidenses (de máscaras e vestes por algum motivo?) que estão assistindo ao desdobramento da violência. Eles tecem críticas da mesma forma que nós, na audiência, poderíamos fazer, argumentando sobre quem merece viver e quais as estratégias parecem funcionar mais.

O criador da série, Hwang Dong-hyuk, faz as coisas de uma forma esmagadoramente violenta desde o início para nos forçar a enfrentar o fato de que somos monstros dispostos a ver o assassinato como entretenimento? Ou você acha que ele realmente pensou que isso seria divertido?

 

Keara Hanlon – É nojento pensar nessas coisas como “divertidas”, mas eu acho que você traz um ponto importante. As pessoas são intrinsecamente fascinadas pelo abjeto – o sangue, as entranhas e as coisas deste mundo que reviram o estômago e que nos forçam a enfrentar a nossa própria mortalidade. Eu acho que as pessoas não conseguem parar de assistir “Round 6” pela mesma razão que os seres humanos são tentados a olhar para os acidentes de carro quando passam por eles: a nossa curiosidade supera o nosso horror.

Dessa forma, acho que Hwang Dong-hyuk está traçando um paralelo entre nós, os espectadores, e os “VIPs” do programa, que pagam para ver os jogos. Por mais revoltantes que esses personagens sejam – eles são rudes, abusivos e decadentemente ricos – nós, na verdade, compartilhamos mais em comum com eles do que com os jogadores, quando olhamos a partir da segurança das nossas salas de estar. Se estamos assistindo episódio após episódio, fazemos parte do problema, de certa forma. Assim como os VIPs, que são os antagonistas evidentes do programa, não conseguimos desviar o olhar. Nós “precisamos” saber quem passou para a próxima rodada do jogo.

 

Jim McDermott, SJ – Estou realmente interessado na sua ideia de que o programa nos força a nos confrontarmos com a nossa curiosidade e também com a nossa mortalidade, especialmente à luz daquilo que todos nós passamos (ou continuamos passando – a pandemia acabou? Ou ainda continua?). Será que estamos todos tão empolgados, em certo sentido, para assistir a um programa sobre centenas de pessoas que são executadas e lutam para sobreviver, porque sentimos que acabamos de passar por isso?

Talvez a ultraviolência, na verdade, seja ainda mais satisfatória para nós agora, pois fornece uma espécie de catarse depois que o suspense sem fim sobre se iríamos morrer de Covid ou não foi embora. A outra coisa que me impressiona sobre esse tipo de leitura “Viva, superamos a Covid!” é apenas o quanto isso nos posiciona ao lado dos ricaços da série. Eu tenho um amigo que trabalha no Líbano que me disse que acha que nunca conseguirá se vacinar lá. Essa é a situação na maior parte do mundo em desenvolvimento. Eles estão, literalmente, a anos de distância das liberdades que temos agora. Enquanto isso, estou bebendo com meus amigos e vendo espetáculos da Broadway.

É como se, neste momento, a minha única resposta a todas as pessoas que ainda vivem no pesadelo em que eu vivi nos últimos 16 meses fosse dar de ombros. E então, para confirmar meu próprio autodiagnóstico como monstro, deixe-me perguntar o seguinte: quais foram seus três jogos favoritos?

 

 

Keara Hanlon – Eu acho que o mais interessante dos jogos foi o terceiro jogo. Depois de alguns jogadores furarem a fila da comida para repetir e deixar os outros jogadores sem qualquer alimento, a briga começa. Mais tarde, descobrimos que as pequenas porções de comida foram intencionais – o anfitrião quer que os jogadores briguem entre eles. Assim, o terceiro jogo começa sem que os jogadores sequer se deem conta disso. Com as luzes apagadas, a violência começa.

Há uma crítica de classe muito interessante aqui: ao invés de se levantar contra aqueles que estão usando o sofrimento deles para se entreterem, os jogadores começam a matar uns aos outros, transformando a sua raiva justificada contra alvos injustificáveis. Enquanto estão matando uns aos outros, os produtores do jogo permanecem seguros, e o jogo continua.

Meu segundo jogo favorito é o cabo de guerra, porque o jogo oferece uma das poucas mensagens de esperança presentes na série, no sentido de que um bom trabalho em equipe pode permitir que um grupo supere obstáculos aparentemente intransponíveis.

E o meu terceiro jogo favorito é o das bolas de gude, não porque eu tenha gostado dele – esse episódio é totalmente devastador, e eu ainda não superei o que aconteceu com Ali –, mas porque esse jogo força a equipe a ir além e revela muito sobre o seu caráter individual. Quem ganha o jogo das bolas de gude vive; quem perde, morre. Não consigo deixar de pensar na equipe do marido e da esposa. O fato de qualquer um deles “ganhar” resulta na morte do outro. Eles chegaram a um impasse em que ninguém realmente pode ganhar. Porém, quando você está competindo por dinheiro manchado de sangue, eu acho que ninguém realmente ganha, não é?

 

Jim McDermott, SJ – Ninguém além de nós, Keara. E, no fim, quem mais é realmente importante, não é verdade? Sim, o jogo das bolas de gude foi doloroso. Foi nesse ponto, eu acho, que eu senti como a série incute totalmente a ideia de que, quando você é pobre, você realmente não consegue ter alguém do seu lado. Mesmo seus amigos mais próximos e seus familiares acabam sendo concorrentes. Foi também o momento em que eu comecei a me perguntar sobre alguns dos pressupostos subjacentes da série. Quem morre no jogo das bolas de gude? Uma mulher, um idoso e o rapaz que não é da Coreia. Os produtores podem interpretar isso como uma espécie de declaração sobre como a sociedade coreana valoriza os homens coreanos acima de qualquer outra pessoa – uma afirmação que veremos confirmada novamente quando o meu personagem favorito, o velho Il-nam, acaba sendo o doentio mestre das marionetes em tudo isso.

Mas particularmente quando se trata de Ji-yeong, a mulher que acabamos de conhecer e que é imediatamente um dos personagens mais interessantes da série, que decide morrer para que Sae-byeok possa viver... Eu entendo: “Alguém tem que morrer, é muito mais difícil se as pessoas são confrontadas contra alguém que não querem matar”, blá, blá, blá. Mas isso levantou algumas questões para mim. E então, quando as outras duas personagens femininas Sae-byeok e Mi-Nyeo também morrem (e, mais uma vez, elas são muito mais interessantes do que qualquer um dos homens, até mesmo do doce Ali), eu realmente senti que essa série simplesmente não gosta das mulheres. O que você acha? Como você se sentiu em relação ao tratamento que a série dá às personagens femininas?

 

Keara Hanlon – Sim, eu definitivamente fiquei decepcionada com o tratamento dado pela série às suas personagens femininas. Observar as mulheres sendo excluídas sempre que as equipes tinham que ser escolhidas me levou de volta à Escola Fundamental, quando os meninos não me queriam em seu time de futebol durante o recreio, embora eu fosse uma boa jogadora. Parecia imaturo, mas talvez devesse ser – eu não sei. Das personagens femininas, eu acho que o arco da personagem de Sae-byeok foi o que mais me decepcionou. Ela é inteligente e corajosa e está no jogo pelas razões certas – ela precisa do dinheiro para reunir a sua família. É tão fácil torcer por ela, e a sua morte pareceu uma das mais injustas dos jogos, já que ela completou com sucesso o desafio, mas foi atingida por estilhaços de vidro quando o campo de jogo foi explodido para o espetáculo.

Eu também notei que a proporção de personagens masculinos em comparação com os femininos parecia muito alta. Todos os envolvidos na montagem dos jogos (cujas identidades são reveladas) são homens – desde o apresentador, passando pelo Líder, até todos os homens de veste rosa com capacetes. Até os VIPs são todos homens. Talvez essas desigualdades fossem uma tentativa de crítica social, mas eu não tenho certeza do que estavam tentando dizer. Eles estão dizendo que as mulheres são colegas de equipe mais fracas ou estão simplesmente dizendo que os homens veem as mulheres dessa forma? Personagens apenas masculinos poderiam ser sádicos o suficiente para desfrutar de ver esses jogos como VIPs? O que você acha que eles estão tentando dizer?

 

Jim McDermott, SJ – Essa é uma grande pergunta. O que eu gostaria de esperar é que Hwang Dong-hyuk estivesse tentando fazer uma crítica sobre gênero e poder, algo sobre como os homens, em última instância, ainda estão com todas as cartas nas mãos. Mas a série em si mesma envolve absolutamente nenhum autoexame sobre questões de raça ou sexo. Não há nenhum momento em que Gi-Hun ou Sae-byeok – ou Ali, eu teria adorado isso – explicite o que está acontecendo. Eu adoro quando uma história pede que a audiência una os fios, mas neste caso eu acho que a probabilidade é de que haja muitos pressupostos problemáticos sobre gênero e raça em tudo isso.

A grande virada do fato de Il-nam ser o mestre das marionetes, por exemplo – por que não fazer isso com Sae-byeok? Vou lhe dizer uma coisa, eu aposto que, se tivessem colocado ela para explicar por que ela tinha feito tudo isso, teria sido muito mais interessante do que um homem de novo (vou lhe dizer, eu realmente gostaria de uma série com uma Sae-byeok que não seja apresentada só no fim, assume o programa por 45 minutos de exposição e depois morre...). Então, considerações finais?

Keara Hanlon – O ponto do programa é claro: aumentar a desigualdade de riqueza é perigoso e pode levar à violência. É um ponto que vale a pena enfatizar, mas eu acho que outros contadores de histórias visuais fizeram críticas de classe semelhantes com mais nuances e tato – veja o filme premiado de Bong Joon Ho, Parasita, por exemplo. A série tem uma premissa intrigante, então eu entendo por que as pessoas foram atraídas, mas pessoalmente acho que foi um pouco exagerado.

 

Jim McDermott, SJ – Eu também me sinto ambivalente em relação a isso. Eu também acho que a atenção que “Round 6” recebeu supera a sua real profundidade. Mas eu me pergunto se isso é porque estamos vendo apenas o “Ato I” do que quer que essa série venha a ser. É possível que a sua provável segunda temporada investigará muito mais profundamente as questões sociais subjacentes e os problemas que levantamos. Ou poderia apenas trazer novos jogos. [...]

 

 

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