Jesuítas: ler os sinais dos tempos. Entrevista com Arturo Sosa

Foto: Vatican Media

21 Julho 2021

 -  

Este ano a ordem dos Jesuítas celebra um ano jubilar por ocasião do 500º aniversário da conversão de Santo Inácio de Loyola. Nesta entrevista a katholisch.de, o Padre Arturo Sosa, superior geral da Companhia de Jesus há quase cinco anos, explica porque Santo Inácio pode ser um modelo para as pessoas de fé de hoje, qual é a situação atual da Companhia, o que significa o escândalo dos abusos para os jesuítas e qual é a relação do papa com sua ordem e com ele pessoalmente.

A entrevista é de Roland Müller, publicada por katholisch.de e reproduzida por Settimana News, 20-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis a entrevista. 

 

O que Santo Inácio de Loyola tem a dizer às pessoas de fé de hoje?

A vida de Inácio pode nos ensinar principalmente duas coisas: a primeira é a grande capacidade de mudar a si mesmo e a sua vida de uma forma completamente inesperada. Santo Inácio não se agarrou espasmodicamente ao seu projeto de uma vida de sucesso, mas deixou-se guiar por eventos imprevisíveis, como a ferida na Batalha de Pamplona ou o fracasso de sua tão desejada intenção de viver na Terra Santa.

Não se deixou desanimar pelos contratempos e seguiu novos caminhos. Ele tinha confiança no Espírito Santo e finalmente fundou os Jesuítas. Inácio ousou se deixar mudar pela confiança em Deus.

 

E qual é o segundo ponto importante na vida de Santo Inácio?

O profundo encontro pessoal com Cristo. Este foi o centro da sua vida e é também o centro da ordem dos Jesuítas e de toda a Igreja, ontem e hoje. Como cristãos, somos chamados a colocar Cristo no centro de nossa vida, dos nossos sentimentos e das nossas motivações. Isso foi extremamente importante para Inácio na fundação da Companhia de Jesus. Por isso nós, como ordem, nos propusemos neste Ano jubilar inaciano a colocar cada vez mais a orientação para Cristo no centro de nossa missão. Daí o lema deste ano: “Ver tudo novamente em Cristo”. Essa perspectiva incomum é um enriquecimento para o mundo de hoje.

 

 

Logo do Ano Inaciano.

 

 

Mas será que as pessoas de hoje precisam desse novo olhar de Inácio para se deixarem mudar por aquilo que não é usual?

Com certeza, porque Inácio vivenciou que Deus estava atuando em sua vida. O Concílio Vaticano II atribuiu um significado particular aos chamados "sinais dos tempos" para a Igreja. Exatamente o que também aprendeu Inácio: Deus fala no presente às pessoas, à Igreja, e envia-lhes sinais para o caminho para o qual as convida.

Perante o estado atual da Igreja, é particularmente importante saber ler os sinais dos tempos. Também faz parte disso a capacidade de discernimento para reconhecer quais sinais realmente vêm de Deus e quais se originam de outras fontes, como ideologias ou ideias políticas.

 

Sobretudo na Europa e na América do Norte, mas também em outros continentes, as pessoas de fé pedem a abertura do ministério consagrado às mulheres e uma maior participação na Igreja. Esses também são "sinais dos tempos"?

Não há nada em contrário a essas demandas, pois elas capturam desenvolvimentos importantes na sociedade. Mas devemos aprender a ler se estes são sinais dos tempos no sentido evangélico. Temos que nos perguntar o que na Alemanha, ou em qualquer outra Igreja local, torna a Igreja de Cristo melhor à luz da Boa Nova.

Nos sinais dos tempos, não é uma questão de se sentir confortável no presente e criar o mínimo de conflito possível. A Igreja também deve tomar distâncias de certas tendências da sociedade. Portanto, é importante aprender a discernir. Isso significa que é importante escolher aonde ir com o olhar de Cristo. É deixar-se guiar pelo evangelho, pelo Espírito Santo.

Mas é uma tarefa muito difícil porque nem sempre está claro o que Deus quer de nós. E isso leva tempo: não se aprende a discernir da noite para o dia.

 

As decisões e declarações do Papa nem sempre são fáceis de entender e às vezes são contraditórias. Isso faz parte do discernimento dos espíritos? O papa pode ser melhor compreendido por aqueles que conhecem sua formação jesuíta e a espiritualidade inaciana?

Certamente quem conhece a história dos Jesuítas e a nossa espiritualidade pode compreender melhor o Papa, porque afinal ele é um Jesuíta. Mas também deve ser dito que o discernimento não foi uma descoberta de Inácio. Pertence ao povo de Deus desde os tempos bíblicos.

Também Jesus conhece essa prática: oferece um bom exemplo a noite no jardim do Getsêmani, antes da Paixão. Jesus se pergunta o que ele deve fazer. Ele chora, reza e transpira sangue, porque sente uma grande angústia diante do sofrimento que o aguarda. Mas no final ele decide trilhar esse caminho.

Ou os profetas do Antigo Testamento: eles têm uma mensagem a proclamar em nome de Deus e, apesar das adversidades, escolhem a melhor forma de desempenhar a sua missão. O discernimento já está presente na Bíblia e não é um proprium da Igreja Católica, mas também ocorre fora dela pela obra do Espírito Santo.

Acredito também que o Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade e sua preparação nas Igrejas locais deixará mais claro o quão importante é o discernimento dos espíritos na Igreja.

 

Mas o senhor pode entender aqueles que não podem colocar em prática as decisões e declarações do Papa porque se baseiam no discernimento, ou seja, em um ato inteiramente individual?

É preciso ter presente que aqui não se trata de discernimento de uma só pessoa, mas de toda a comunidade eclesial. Portanto, é importante promover o espírito sinodal na Igreja. Isso diz respeito a todos, desde os ministros ordenados aos fiéis das paróquias. Todos têm a tarefa - na vida pessoal, mas também na comunidade eclesial - de discernir os espíritos.

 

Como a ordem dos Jesuítas pode contribuir para o desenvolvimento sinodal da Igreja?

A sinodalidade não é uma invenção do Papa Francisco, mas é fundada no Vaticano II. Os padres conciliares inscreveram a sinodalidade no DNA da Igreja. A constituição Lumen gentium define a Igreja como povo de Deus em caminho guiado pelo Espírito Santo. O povo e a comunidade estão no centro. É somente partindo dessa base que as funções dos bispos, dos sacerdotes e dos religiosos na Igreja são descritas.

Devemos redescobrir e realizar cada vez mais esta estrutura de serviço e comunhão na Igreja. A nossa contribuição, nós jesuítas, particularmente empenhados nos campos da teologia, da educação e da pastoral, consiste no dever de implementar o Concílio Vaticano II. Somos chamados a fazer o que é necessário hoje para fazer avançar a sinodalidade na Igreja.

 

Se olharmos um pouco para a história dos Jesuítas, qual é o maior empenho da ordem? E de onde recebeu suas culpas?

Não pretendo responder a esta pergunta, porque se trata de uma história de mais de 500 anos, feita de inúmeras pessoas e milhares de novos começos. A Companhia de Jesus foi e é tão diversa e diferenciada em tantos países que um juízo desse tipo me parece impossível.

 

Isso é compreensível. Mas retomo um tópico doloroso: os abusos que também ocorreram em paróquias e escolas dos jesuítas. Representam um grande problema para a ordem?

Infelizmente, o tema dos abusos também está presente entre nós, jesuítas, mas também circula em outras estruturas e instituições. Em minha opinião, reagimos energicamente ao problema e hoje fazemos todo o possível pelo bem das crianças e dos jovens nas nossas escolas e paróquias.

Em primeiro lugar, reconhecemos o que aconteceu e iniciamos processos detalhados em muitos países, por exemplo na Alemanha, mas também na Irlanda, Canadá, Estados Unidos ou Chile. Para nós era importante fazermos tudo com a maior transparência possível. Pedimos perdão e procuramos reparar.

O foco agora está na prevenção. Queremos criar um “ambiente seguro” para todos nas nossas estruturas, uma “cultura do bem da criança”. Infelizmente, isso nem sempre é fácil, porque as diferenças culturais em cada país são muito grandes. No entanto, é importante para nós alcançarmos um alto nível de prevenção e transparência em matéria de abusos em todos os lugares o mais rápido possível. O tempo do acobertamento acabou.

 

Na Alemanha, a Província dos Jesuíta foi recentemente dissolvida e criada apenas uma Província da Europa Central. O número das vocações na Europa diminuiu tanto assim que este passo se tornou necessário?

O número de jesuítas mudou muito, principalmente na Europa e nos Estados Unidos. No entanto, não consideramos as nossas estruturas tanto em relação aos números, mas sim pelo melhor cumprimento possível do nosso mandato.

Nas últimas décadas, a Europa transformou-se numa forte comunidade política onde a comunicação mútua é muito mais simples e as fronteiras são cada vez menos importantes. É por isso que já não é tão importante para nós organizar as nossas províncias apenas com base nas fronteiras nacionais.

Essas decisões também dependem de como podemos utilizar melhor os recursos para a nossa missão. A criação da nova Província da Europa Central foi um longo processo de discernimento. É parte de uma série de unificações semelhantes nos últimos anos, por exemplo, de uma única província de língua francesa na Europa ou de uma única província religiosa na Espanha. Mudanças semelhantes também são esperadas em outros continentes.

Além disso, essas estruturas não são criadas para durar para sempre, mas podem ser remodeladas em cerca de vinte anos se as circunstâncias externas ou internas mudarem. Nesse ponto, a ordem jesuíta é uma organização muito flexível, ao contrário dos beneditinos, por exemplo, que têm como ordem associações de mosteiros individuais. No caso deles, as mudanças são mais difíceis.

Também somos flexíveis com nossas instituições religiosas. Um exemplo: o serviço dos jesuítas para os refugiados é estruturado em nível internacional e se adapta às exigências atuais. À medida que os itinerários percorridos pelos refugiados mudam, também muda esse serviço.

 

Vejamos os números: onde a ordem está crescendo e onde está diminuindo?

Se olharmos apenas para os números, a Europa está sempre no centro das nossas atenções. No entanto, aqui também vivem os membros mais idosos. As vocações na Europa são relativamente menores do que há 75 ou 50 anos. Na África, a Companhia de Jesus tem um número muito alto de ingressos e está em constante crescimento.

Isso também tem a ver com o desenvolvimento populacional na maioria dos países africanos, porque há muitos jovens lá. Na Europa, por outro lado, há menos jovens e, portanto, menos vocações. Na América Latina, por assim dizer, o número de Jesuítas manteve-se muito estável, mas um quarto de todos os Jesuítas vive na Índia: 21 províncias com mais de 4.000 membros.

 

O senhor lidera a Companhia de Jesus, como consegue manter coesa essa ordem cujos membros desfrutam da fama de serem grandes individualistas?

(risos) Isso é possível porque a unidade da ordem é garantida não apenas por sua liderança, mas por todos os jesuítas. Nós somos um corpo e Jesus é a nossa cabeça, não eu como superior geral. Nesse sentido, o voto de obediência é particularmente importante. Mas não é obediência a uma associação humana, mas ao Espírito Santo, à nossa missão.

Portanto, a tarefa de quem lidera não é dar ordens, mas ver onde na ordem e em que lugar cada jesuíta pode servir melhor à nossa missão. Isso pressupõe que todos os membros da ordem sejam possivelmente bem formados e estejam em condições de pensar de forma autonomamente e de forma distinta. A diversidade é uma marca distintiva de nós, jesuítas. Isso pode ser visto no multiculturalismo da nossa comunidade: nunca antes os jesuítas vieram de contextos culturais tão diversos.

Esta é uma grande riqueza, mas também um enorme desafio. Devemos sempre nos perguntar como utilizamos essa diversidade para a nossa missão. Minha tarefa como supervisor consiste justamente em manter viva essa atenção.

 

O senhor mencionou a obediência pela qual os jesuítas são famosos. Mas a obediência também pode ser mal interpretada ...

Claro. Circulam muitas comparações satíricas entre a Companhia de Jesus e os militares. Mas para nós é exatamente o contrário. Não queremos uma obediência de cadáveres, mas procuramos homens que saibam pensar e discernir com autonomia. Obediência significa buscar juntos como e onde alguém pode oferecer melhor sua contribuição ao todo. É isso que eu também sempre busquei ao longo de minha vida como jesuíta.

 

Como superior geral dos Jesuítas, o senhor tem grandes possibilidades de influir e por isso também é chamado de "papa negro". Recentemente, o senhor se opôs fortemente a essa definição. Por quê? É também uma espécie de reconhecimento...

Não gosto nem um pouco dessa expressão! Porque é exatamente o contrário do que os jesuítas consideram em sua missão. Com esta expressão quer-se dizer que o superior geral dos Jesuítas tem um poder semelhante ao do santo padre. Isso não é verdade e não posso aceitá-lo, nem mesmo como brincadeira.

Os Jesuítas querem servir as pessoas e a Igreja colocando-se à disposição do Papa. Portanto, não pode haver um segundo papa. Nós, jesuítas, fazemos um voto especial de não aspirar a cargos e títulos eclesiásticos, nem mesmo ao cargo de bispo - muito menos a papa.

 

Hoje, porém, o sucessor de Pedro em Roma é um jesuíta. Qual é a relação entre a ordem e o papa?

O Papa Francisco é antes de tudo o chefe da Igreja e não um jesuíta. Ele passou muitos anos de sua vida na ordem e isso obviamente o formou - positivamente, imagino. (risos). Mas a relação dos jesuítas com ele não é diferente da que teríamos com qualquer outro papa. Sempre nos submetemos ao papa, seja ele quem for.

Naturalmente que existe também um outro nível de relacionamento com o papa, porque nos conhecemos pessoalmente, falamos a mesma língua e temos uma espiritualidade semelhante. Mas o papa é o papa. Há um enorme respeito por ele e pelo seu ofício por parte dos Jesuítas, mas também da sua parte pelo trabalho da nossa Ordem, não só pelos Jesuítas, mas também pelos outros institutos. O Papa Francisco está muito próximo de todas as ordens e comunidades religiosas.

 

Não há, portanto, nenhuma simpatia particular do papa pelos jesuítas?

Muitas vezes, ninguém acredita em mim, mas não tenho nenhuma linha direta com o papa diferente daquela dos outros superiores gerais. Se quero falar com Francisco, devo, como todo mundo, fazer um pedido ao seu secretário.

 

Leia mais