O Motu proprio, uma estratégia contra as mulheres padres. Entrevista com Paola Cavallari

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19 Janeiro 2021

Paola Cavallari é membro da Coordenação das Teólogas Italianas, promotora do Observatório Inter-religioso da Violência contra a Mulher (Ovid), autora de Non sono la costola di nessuno. Letture sul peccato di Eva (em tradução livre: Eu não sou a costela de ninguém. Leituras sobre o pecado de Eva, Gabrielli Editori, 2020) e outros volumes sobre questões de gênero, promotora (juntamente com outras mulheres) de uma carta aberta às hierarquias eclesiásticas solicitando-lhes que apresentem um pedido de perdão pela forma como as mulheres foram tratadas. Como ela mesma nos explica, no motu proprio com que o Papa Francisco também abriu o acesso das mulheres aos ministérios do leitorado e acolitado, tem "uma opinião diferente da maioria" que saudou a providência do pontífice com grande consenso.

A entrevista com Paola Cavallari é de Luca Kocci, publicada por Adista, 23-01-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

Eis a entrevista.

Paola Cavallari, qual a sua opinião geral sobre o motu proprio do Papa Francisco?

Que a complexidade nos pressiona! A Igreja Católica não é monolítica, e as ressonâncias do motu proprio devem ser vistas de diferentes perspectivas.

Em áreas do mundo não europeias ocorrem processos muito diferentes em comparação com o que conhecemos da Itália, onde, aliás, existem realidades muito diversas. Na América Latina, por exemplo, houve um grande desenvolvimento das comunidades eclesiais de base, fenômeno muito significativo que Paolo Cugini explicou muito bem ao seu recente livro (Chiesa Popolo di Dio, dall’esperienza brasiliana alla proposta di papa Francesco, Dehoniane, ver AdistaNews de 25/08/2020). Em certas áreas da Amazônia, pode levar até dois anos para que um presbítero passe por lá. Não por acaso durante o Sínodo sobre a Amazônia, surgiram questões muito incisivas, mesmo que tenham sido em sua maioria ignoradas pela exortação pós-sinodal do Papa Francisco Querida Amazônia.

Li que as mulheres ameríndias são protagonistas de um exercício de governança das comunidades e das igrejas que é surpreendente, elas exercem de fato o diaconato, quando não também o presbitério. E o motu proprio certamente foi influenciado por essas experiências e obliquamente toma nota dessa surpreendente ministerialidade feminina, autônoma e autorizada.

Em outro lugar, porém, não é o caso ...

De fato. Há um polo oposto, onde o espaço de manobra das mulheres é quase nulo, seja porque há blindados bispos tradicionalistas, seja porque as mulheres ainda são moldadas pela introjeção de modelos de sujeição ou ancoradas em paradigmas androcêntricos (Mary Daly usa o termo substitutas), ou pelos três fatos juntos. Nesses casos, creio que nada mudará com este motu proprio: a presença feminina reproduzirá as linguagens e gestos de domesticação a um símbolo misógino.

Não lhe parece que ainda assim foi um passo à frente no que diz respeito ao reconhecimento do papel e valor da mulher na Igreja Católica?

Vou começar pelos pontos positivos. A parte da carta que li com o espírito mais tranquilo é a última, na qual se faz uma exortação a "criar comunidade" e há um convite à "ministerialidade compartilhada". Destaca-se o pronunciamento explícito da "escuta" do testemunho das mulheres ("Acolher o testemunho de muitas mulheres que cuidaram e cuidaram do serviço à Palavra e ao Altar"): mas, pergunto-me, é uma "escuta" no mesmo plano de igualdade?

Eu lhe pergunto: é uma escuta entre pares?

Tenho a impressão de que essa escuta é paternalista e pouco receptiva ao muito mais de que "não se gosta" e que, em vez disso, existe um vulcão de vozes e sons. Sei que estou na contra tendência da maioria das reações sobre o motu proprio, mas me inspiro em um grande teólogo que nos ensinou a praticar "a hermenêutica da suspeita". Durante um recente encontro organizado em 12 de dezembro passado por seis associações, intitulado "Somos todas Anne Soupa" (a teóloga francesa que se autocandidatou a bispo de Lyon, obviamente sem sucesso)  Antonietta Potente observou que o papa é uma figura "que causa distração". Deixo essa interpretação para leitoras e leitores.

O motu proprio e a carta de Francisco ao card. Ladaria, diferenciando os ministérios entre "instituídos" (leigos) e "ordenados", ressaltam que aqueles ordenados pertencem apenas a homens e, reportando-se a Wojtyla, que a Igreja "não tem faculdade de forma alguma para conferir a ordenação sacerdotal às mulheres". O "sacerdócio batismal" das mulheres é então "mutilado", uma vez que não podem acessar a todos os ministérios?

Gosto de relembrar uma contribuição da teóloga Cettina Militello (Clérigos e leigos, a história de um mal-entendido) publicada há alguns anos na revista Esodo (4/17): “Alexandre Faivre, estudioso das origens cristãs - escreve Militello - disse-me ... que nossos problemas, como leigos, começaram quando ‘também uma grande quantidade de sacerdotes aderiu à fé’ (Atos 6,7b)”; do que o “consequente reposicionamento da comunidade cristã primitiva em sentido sacralizante... para misturar as cartas em sentido disjuntivo foi esta presença, a de sacerdotes da antiga lei que tinham trazido consigo o preconceito de se colocar em um ‘outro’ plano e relação ao resto do povo de Deus”. Em sua brevidade essencial, considero isso uma indicação esclarecedora.

Quanto influencia o poder cabe diferença entre os ministérios?

Na primeira parte da carta do Papa, fala-se de diferenciação entre os ministérios. Mas não se fala sobre as implicações do poder subterrâneas que inervam a diferenciação. É possível se diferenciar em uma perspectiva horizontal, ou vertical. E também neste segundo caso, não faltam articulações: podemos ser chamados e chamadas a um exercício de ensino, governação, providência, representação de comunidades porque somos nomeados e nomeadas de cima ou de baixo; e, no primeiro caso, a nomeação pode ser revestida pela aura de sacramentalidade, na figura de uma "diferença ontológica". A diferenciação de que estamos falando aqui é esta última. As diferenças no mundo eclesial se inscrevem em um sistema clerical, hierárquico e excludente. Mas tudo isso permanece invisível no texto, e por isso vejo falta de sinceridade.

Em sua opinião a concessão do leitorado e do acoitado é uma forma de fechar as portas ao diaconato feminino, o que já foi solicitado várias vezes, inclusive recentemente?

Poderia não ser um fechamento, mas o sinal de uma virada, uma brecha que quebrou o muro de uma vez por todas? Nenhuma tem bola de cristal ... Claro, nem mesmo um papado como este, que sem dúvida sacudiu as paredes de tantos arranjos e estilos eclesiais gangrenados, conseguiu, ou não se comprometeu, a resolver, favoravelmente, depois de anos, à questão do diaconato feminino ... Minha suspeita, portanto, é que se trata de um movimento estratégico.

A única possibilidade de afirmar uma igualdade real entre homens e mulheres na Igreja continua a ser a de tornar possível a ordenação sacerdotal ministerial também para as mulheres?

Não, eu não acho que a ordenação sacerdotal estendida às mulheres tenha essa faculdade mágica. Especialmente se a ministeriliadade permanecer alicerçada, como agora está na Igreja Católica, em um terreno sacralizante e sacrificial. Em muitos e muitas amadureceu a consciência de como esses elementos não estão inscritos nos Evangelhos, mas são empréstimos espúrios, extraídos da tradição judaica. Nas origens da comunidade cristã, houve uma mudança: da rejeição dos sacrifícios e sacerdotes, para a sua recuperação em posições centrais. A concepção do clero como "diferença ontológica" que separa clero e leigo em um sentido hierárquico tem se fortalecido cada vez mais.

Então, quais são os outros caminhos a seguir?

Nas igrejas, o reconhecimento das diferenças dos carismas entre homens e mulheres e a igualdade dos "dons" originais da Ruah (Espírito) exige uma virada kenótica (de esvaziamento, ndr), onde a pedra descartada passe a ser a pedra angular. É necessária uma conversão estrutural, inspirada naquele versículo bíblico "estavam diante um da outra” (Gn 2), posteriormente retomado pelo Cântico dos Cânticos.

Aqui se desdobra um horizonte em que as vidas de mulheres e homens ficam frente a frente, podem brotar na dialética das diferenças dos sujeitos que se enfrentam e se confrontam com igual dignidade.

O que as mulheres pedem?

No encontro de que falava antes, “Somos todas Anne Soupa”, muitas mulheres com quem não só me alinho, mas que fazem parte da rede de associações que ajudei a construir, expressaram uma opção muito diferente: não pedir, mas agir, porque o tempo de sofrida exclusão e invisibilidade, de pedir licenças, acabou.

Gosto de citar, para responder, um trecho da introdução do interessante livro Maddalena e le altre, da comunidade cristã de base de São Paulo: “Trata-se de colocar em discussão desde os fundamentos o próprio conceito de sacerdócio ministerial, como mediação necessária entre o povo e Deus, confiados aos homens, de preferência celibatários, para chegar a construir, em vez disso, uma Igreja caracterizada por ministérios, isto é, serviços para o povo de Deus, todos abertos a mulheres e homens. Ministérios derivados do sacerdócio comum enraizado no batismo, como bem destacou a Reforma”.

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