11 Dezembro 2020
“Em uma Igreja onde os homens têm mais poder para falar – tanto em homilias quanto em documentos oficiais – prestar atenção à fofoca é uma obrigação. Não deve ser condenada como mal. Portanto, gostaria de levantar alguns pontos sobre o significado da fofoca e como ela pode nos ajudar a compreender a vida e, por fim, nos levar a falar sobre Deus”, escreve Neomi De Anda, professora associada do Departamento de Estudos Religiosos da Universidade de Dayton, em artigo publicado por La Croix, 09-12-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Querido papa Francisco,
Em Fratelli Tutti, você chama pela inclusão de mais pessoas no diálogo, e de fato você enquadra toda a encíclica como uma reflexão nascida do diálogo e compromisso comum à fraternidade humana e amizade social, inspirada por um encontro de líderes inter-religiosos.
Verdade, o diálogo pode ser ótimo. Mas também pode ser exclusivo.
Se queremos estar no mundo, encontrando-nos e ouvindo-nos uns aos outros, também devemos estar abertos a várias formas de comunicação. Por isso, peço com muito respeito que você reconsidere sua posição sobre a fofoca, que condenara no passado.
Sim, eu adoro fofoca. Eu passo horas por semana me comunicando com pessoas nas Américas e em todo o mundo sobre o que está acontecendo em suas vidas.
E como muitas pessoas, também adoro ouvir o que consideram questionável sobre o comportamento humano e o que pensam sobre o estado do mundo.
Como latina (obrigada pelo grito! [Fratelli Tutti 135]), posso atestar as ligações entre informação e fofoca nas conversas das pessoas nas comunidades latinx.
Essas ligações são tão próximas que pode ser difícil, senão impossível, distinguir onde termina uma e começa a outra. Acho que a fofoca é uma forma de comunicação entre aqueles que sentem que têm menos poder e permissão para falar em público.
Em sua encíclica, você identifica muitas injustiças e formas de desigualdade que o mundo enfrenta: racismo, nacionalismo, xenofobia, degradação ambiental, tráfico de pessoas, colonização, viver com deficiência, pobreza.
Você até usa o grito da Revolução Francesa – igualdade, fraternidade, liberdade – como subtítulo.
O foco de seu papado tem sido o bem comum, que você menciona trinta e quatro vezes em Fratelli Tutti.
Você tem dedicado seu tempo como líder eclesial para exaltar aqueles que foram historicamente marginalizados, oprimidos e silenciados. Você chamou a atenção para a situação daqueles que são forçados a migrar.
O senhor apelou ao aperfeiçoamento das diretrizes internacionais sobre asilo e à criação de sistemas de trabalho e comércio mais justos.
Você tem se concentrado tão fortemente na sinodalidade e na participação na liderança da Igreja de pessoas em nível local, que eu – uma leiga católica erudita e teóloga – sou frequentemente convidada a falar sobre esses tópicos por hispânicos locais, nacionais e internacionais e organizações ministeriais latino-americanas.
Como você, acredito fortemente na inclusão de todos e que a vida é um dom frágil de Deus. E sim, esta noção de sinodalidade está intimamente ligada ao diálogo.
Mas também acho que há problemas em usar o diálogo como a principal forma de comunicação sobre essas coisas. Na verdade, como a fofoca, o diálogo também pode ser prejudicial.
Por exemplo, o diálogo frequentemente pressupõe uma mutualidade que não existe.
Frequentemente ocorre em espaços onde as estruturas de poder já foram estabelecidas.
O diálogo, como qualquer modo único de comunicação, centraliza algumas culturas e vozes e, portanto, marginaliza outras.
Frequentemente, existe a expectativa ou suposição de que o diálogo será seguido por um relato escrito – o que significa que quem quer que tenha a “palavra final” na escrita possui um poder único.
A menos que sejam tomadas medidas para levar em conta a dinâmica desigual de poder inerentemente presente no diálogo, não estamos participando totalmente do encontro porque pelo menos uma das partes estará se protegendo contra os ataques e abusos.
Já houve muitas críticas sobre o sexismo inerente ao título não traduzido de sua encíclica e sobre a falta de vozes femininas entre suas citações.
Enquanto você clama pela igualdade de direitos e dignidade para as mulheres – especialmente para “aquelas mulheres que enfrentam situações de exclusão, maus-tratos e violência, já que frequentemente são menos capazes de defender seus direitos” – você não inclui o sexismo em sua lista de males sociais.
E embora haja referências vagas à dor, sofrimento e mágoa que a Igreja Católica causou por meio da violência sistêmica do abuso sexual, você não aborda explicitamente a questão.
Menciono isso porque esta é outra maneira que o diálogo pode excluir. Eu carrego comigo as mulheres que me disseram que não se sentem seguras ou bem-vindas para falar em determinados espaços.
Aprecio as pessoas LGBTQ+ que não querem nada com o catolicismo (ou mesmo com Deus) por causa dos “diálogos” que acontecem nas instâncias das Igrejas.
E meu coração realmente se parte quando ouço de pessoas que foram abusadas e quebrantadas por pessoas comissionadas por meio de estruturas formais da Igreja Católica que o “diálogo” pode simplesmente trazer-lhes mais trauma e dor.
Encíclicas que não mencionam a mudança que precisa acontecer dentro dos próprios sistemas e ensino da Igreja – no que diz respeito ao sexismo e ao trabalho mais profundo da teologia e ministério da sexualidade humana – não ajudam as pessoas afetadas a se sentirem convidadas ao diálogo.
Como você mesmo nota: “Dizemos uma coisa com palavras, mas nossas decisões e a realidade contam outra história” (20).
Portanto, estou pedindo a você que considere mais de um modo de comunicação para nos ajudar a construir melhores bases para cuidar e nutrir a fragilidade da vida (De fato, Fratelli Tutti clama por vários modelos culturais como um caminho para o bem comum [12]).
Eu também estou pedindo para que você evite caracterizar um melhor que o outro. Nós não podemos simplesmente dizer que a comunicação usada pelas pessoas que se sentem sem poder é negativa ou pecaminosa, e que o tipo de comunicação permitido à maioria daqueles que detém o poder é mais positivo e produtivo.
Nós precisamos prestar atenção aos vários tipos de comunicação porque as pessoas usam uma variedade de comunicações para expressar tanto seus sofrimentos quanto para falar com Deus. Nisso se inclui a fofoca.
Você já criticou a fofoca no passado, dizendo que ela pode matar, que enche o coração de amargura, que impede os humanos de serem santos.
Você até advertiu os cabeleireiros (90% dos quais nos Estados Unidos são mulheres) a não ceder “à tentação de fofocar, que pode facilmente invadir seu ambiente de trabalho, como todos sabemos”.
E o seu desprezo pela fofoca ficou bem evidente no Angelus de 6 de setembro de 2020, quando você disse, ao discutir a unidade e as fraturas na Igreja: “O maior fofoqueiro é o diabo, que está sempre falando mal dos outros, porque ele é o mentiroso tentando desunir a Igreja, afastar o irmão e não criar uma comunidade. Por favor, irmãos e irmãs, façamos um esforço para não fofocar, fofocar é uma praga pior que covid, pior”.
Mas em uma Igreja onde os homens têm mais poder para falar – tanto em homilias quanto em documentos oficiais – prestar atenção à fofoca é uma obrigação.
Não deve ser condenada como mal. Portanto, gostaria de levantar alguns pontos sobre o significado da fofoca e como ela pode nos ajudar a compreender a vida e, por fim, nos levar a falar sobre Deus.
Primeiro, engajar-se na fofoca mostra a finitude humana. Fofoca geralmente inclui como uma pessoa ficou aquém do que acreditamos ser necessário para viver o melhor de sua vida.
Em segundo lugar, a fofoca permite que nos entendamos melhor. Isso nos obriga a sermos auto-reflexivos. A fofoca perturba os ritmos diários da vida porque geralmente se baseia em um comportamento questionável. Pode ser uma ferramenta interpretativa que nos força a nos reexaminarmos dentro de certos contextos normativos. Alguns dizem que estamos sempre discernindo o que Deus pede de nossas vidas. Como a fofoca nos faz engajar e interpretar o comportamento moral, ela pode nos ajudar com esse discernimento.
Terceiro, a fofoca fornece uma maneira de expressarmos na vida diária que somos humanos cheios de contradições. A fofoca nos permite comparar nossas experiências com as de outras pessoas e, assim, funciona como uma linguagem do povo.
Finalmente, a fofoca envolve intimidade e vulnerabilidade. Compartilhamos esse conhecimento com pessoas em quem confiamos e com quem desejamos construir relacionamentos mais próximos.
Carmen Nanko-Fernández fez uma bela observação sobre intimidade e vulnerabilidade ao discutir o título não traduzido de sua encíclica no site do Commonweal (“O que Francisco quer dizer com ‘Fratelli Tutti’”), sugerindo que você desejava expressar o título na língua de quem lhe é querido.
Novamente, eu sei que a fofoca pode ser dolorosa.
Mas peço-lhe que considere mais do que apenas o diálogo como uma forma de comunicação para reconhecer a fragilidade da vida e elevar a dignidade humana.
Como você escreve em Fratelli Tutti: “Quando a dignidade da pessoa humana é respeitada e seus direitos reconhecidos e garantidos, a criatividade e a interdependência prosperam, e a criatividade da personalidade humana é liberada por meio de ações que promovem o bem comum” (22).
Por todas estas razões, muy querido papa Francisco, e porque chama a “um amor que integre e una”, rogo-lhe que reconsidere a sua posição sobre a fofoca.