A encíclica das incertezas sociais e políticas da hora presente. Entrevista especial com José de Souza Martins

Fratelli Tutti é “exposição inovadora pela abrangência dos problemas, adversidades e desafios do mundo e as conexões que há entre eles. Não é uma encíclica do meramente setorial”, diz o sociólogo

Dadaab: maior campo de refugiados do mundo faz 20 anos | Foto: ACNUR

Por: Patricia Fachin e João Vitor Santos | 14 Outubro 2020

Um sociólogo atento à realidade brasileira, mas também aos males universais responsáveis pelo adoecimento do mundo contemporâneo, José de Souza Martins leu a Encíclica Fratelli Tutti com entusiasmo e é categórico em seu diagnóstico: “O grande conflito da sociedade está inteiramente exposto na Encíclica”. Segundo ele, o novo documento papal “fala pelos milhões que foram calados” e “é uma proclamação de resistência e de insurgência moral e espiritual contra a construção política de uma sociedade à imagem e semelhança da mercadoria e do dinheiro, a dos seres humanos coisificados e privados da consciência de que a sociedade é obra histórica comum dos seres humanos”.

 

Na avalição dele, as críticas do Papa Francisco endereçadas às diferentes manifestações de alienação na atualidade só são possíveis porque “a Encíclica é uma explanação não partidária, de um homem de Igreja que questiona também o sectarismo. Um ser humano do diálogo verdadeiro, não o do falar com base na pressuposição de que o outro é ótimo se concorda comigo”.

 

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Martins destaca que o documento papal também chama atenção para a agonia do corpo e do espírito que acomete a humanidade. “Uma das consequências da alienação modernizada e atualizada é a da perda administrada da consciência histórica. Uma das enfáticas preocupações do Papa Francisco. É a zerificação da memória social em que fomos socializados, aquela que guarda uma espécie de DNA dos valores e das referências da nossa socialização, da nossa alteridade e de nossa pessoa como membro da comunidade humana historicamente criada, o nosso nós”, destaca. E acrescenta: “A mensagem central da Encíclica é, claramente, a centralidade da humanidade do homem na História, como criatura de Deus”.

 

José de Souza Martins durante Aula Magna na Unisinos (Foto: Frame do Youtube)

José de Souza Martins é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP. Foi professor-visitante da Universidade da Flórida e da Universidade de Lisboa e membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, de 1998 a 2007. Foi professor da Cátedra Simón Bolívar, da Universidade de Cambridge (1993-1994) e atualmente é professor titular aposentado da USP. Entre suas obras, destacamos Exclusão social e a nova desigualdade (São Paulo: Paulus Editora, 1997), A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na modernidade anômala (São Paulo: Contexto, 2000), Linchamentos: a justiça popular no Brasil (São Paulo: Editora Contexto, 2015) e Do PT das lutas sociais ao PT do poder (São Paulo: Editora Contexto, 2016).

 

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Na última sexta-feira, 09-10-2020, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU promoveu a conferência Pandemia, um evento global. Repensar o futuro da casa comum a partir da Encíclica Fratelli Tutti, proferida pelo cardeal português José Tolentino de Mendonça. Assista à íntegra no vídeo a seguir: 

 

Na última quinta-feira, 08-10-2020, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU também promoveu a conferência Encíclica Fratelli Tutti: uma leitura francisclariana, com o Prof. Dr. Ildo Perondi - PUCPR e com o Prof. Dr. Luiz Carlos Susin - PUCRS. Assista a seguir:

 

 


Confira a entrevista.

 

IHU On-Line - Qual é a mensagem central da Encíclica Fratelli Tutti e que reflexões ela propõe para cristãos e não cristãos?

José de Souza Martins - A Carta Encíclica Fratelli Tutti, ditada pelo Papa Francisco e assinada junto ao túmulo de São Francisco, em Assis, no sábado, publicada no domingo, dia 4 de outubro, é um documento que se tornará uma referência. E um desafio nesta conjuntura histórica de incertezas, de desmantelos de direitos sociais, ainda que insuficientes, conquistados a duras penas pelos desvalidos de todo o mundo. Francisco põe o dedo na ferida: os poderes da economia e da política estão desconstruindo a sociedade ética dos direitos sociais em nome do lucro sem limites do neoliberalismo. Em seu lugar edificam e impõem a neoiniquidade da marginalização definitiva, a da política do desamor e da sociedade alienada da indiferença.

Um documento que já estava sendo escrito quando teve início a pandemia da covid-19, como a confirmar sua importância e sua urgência. Na Encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco já havia sublinhado a ameaça que pesa sobre a “casa comum”, a casa de todos, o espaço e o ambiente da vida, devido à postura irresponsável dos poderes e da própria humanidade em relação à questão ambiental.

 

 

Agora, as evidências da degradação do mundo são examinadas no entrelaçamento com a degradação social decorrente de uma economia crescentemente lucrativa e crescentemente irracional. A da liberdade para lucrar e de punir, em consequência, com a falta de liberdade para reagir criativamente contra a injustiça social. Com ela, todos e tudo se tornaram secundários e adjetivos em relação à precedência do ganho sem ética e sem limite sobre a condição humana. A encíclica é uma insurgência contra a iniquidade da concepção de que a culpa pela injustiça é da vítima.

A pandemia desnudou a verdade de que a maldade dos poderes não tem domínio sobre o invisível dos males que criam. A ilusão e a presunção arrogantes de que quem tem poder e dinheiro está imune aos males invisíveis das desigualdades foram, mais uma vez, desmentidas por um ser mortal que não se vê a olho nu. O vírus veio mostrar que não faz distinção de classe social. Contamina, enferma e mata pobres e ricos. Ainda que os ricos estejam mais bem protegidos por fora, não o estão por dentro, as vias respiratórias estranguladas, o ar insuficiente, o corpo debilitado. Não é o vírus, propriamente, que nos ameaça a todos. É o afã de ter sem sentir, de acumular sem distribuir, de fazer sofrer sem ver, de não enxergar o desvalido caído à beira do caminho, tema da argumentação introdutória da encíclica.

As tragédias deste momento da história humana não são apenas as da pandemia. A pandemia, na encíclica, é reconhecida como a mensageira do mal, gerada e agravada pela irresponsabilidade da cobiça e do afã de poder. Essas tragédias confirmam que são previsíveis, mas foram desdenhadas devido à imprudência de governar para alguns e desgovernar para a maioria.

Temos visto, todo o tempo, nas últimas décadas a perda de vidas e o sofrimento dos pobres serem tratados como danos previstos e prejuízos calculáveis. Irrelevantes, porém, porque não comprometem a taxa de lucro do capital. São meras deduções irrelevantes.

 

Exorcizar o mau exemplo

Dá até a impressão de que a encíclica foi escrita para exorcizar o mau exemplo do Brasil. Foi-o, mas não só. Vimos o tratamento da tragédia da ruptura de barragens de rejeitos, em Minas Gerais, de uma grande mineradora, como tragédia de perdas previstas, que não afetariam os ganhos também previstos. Vidas tratadas como matéria-prima da lucratividade.

Vimos isso no desdém do próprio presidente da República pelos riscos de morte envolvidos na disseminação da pandemia e pelas vidas que se perderiam. Morrer faz parte dos riscos da vida, defendeu-se. Insensível, mostrou-se incapaz de reconhecer que uma das missões dos governos é a de proteger a vida, não a de defender a morte.

 

 

Despejos

O documento é particularmente sensível aos despejos maciços de crianças, velhos, mulheres e homens de sua pátria, de seus lares, de sua terra que é de todos, de suas referências, com a fragmentação de famílias e separações que serão definitivas nos vários continentes. As potências querem os lucros descomunais das diferenças de poder entre as economias dos países ricos e as economias dos países pobres. Mas não querem a responsabilidade do prejuízo que causam.

É a lógica do muro do presidente americano para conter os latino-americanos que nos EUA buscam o trabalho mal pago, que ainda assim será maior do que o trabalho degradado de suas nações de origem. São muitos, como os que arriscam a vida ao fugir de diferentes países da África para tentar entrar na Europa. Os que morrem afogados na travessia ou acabam confinados na ilha de Lampedusa. Aqueles que o Papa visitou nos primeiros dias de seu pontificado.

Ou aqueles que estão exilados dentro da própria pátria, como aqui, os que migram para os lixões, onde há a abundância que sacia a fome dos que carecem com os restos que foram parar no lixo das cidades. Seres humanos disputando com os porcos e os urubus o naco de comida dos que já não têm amanhã. Há anos a mídia nos mostra essa crua realidade em fotografias e documentários.

 

 

Os sobrantes

O sistema econômico neoliberal tem criado milhões de seres humanos sobrantes. Criou lucros imensos sem ciar uma única oportunidade para os superficializados de uma economia que já não precisa de gente. O capitalismo neoliberal cria o ser humano superficial e desnecessário. Faz economia e aumenta lucros à custa de vidas. Criou uma sociedade de migalhas em que já não se sonha, porque é ela a sociedade da incerteza. O neoliberalismo cria incertezas para criar poderes e privar o homem comum de ser o artífice de seu próprio destino, o de sua família, de seus filhos.

No século XIX e na primeira metade do século XX, os países de economias atrasadas exportavam seus excedentes populacionais para outros países atrasados carentes de mão de obra. Como foi o caso da emigração da Europa para a América. A exportação de gente foi, durante longos anos, o principal item da exportação lucrativa da Itália. Foi o caso da imigração europeia para o Brasil: italianos, espanhóis, portugueses, alemães, aos milhares, para nos cafezais substituir os escravos cujo trabalho cessou com a abolição da escravatura.

Mas o subcapitalismo do atraso conseguiu substituir trabalho barato por tecnologia cara, que se tornou barata graças a subsídios e subvenções. Tecnologia que não carece de direitos sociais nem da segurança do ganha-pão e da moradia.

O Papa nos fala da nossa omissão em face da degradação do trabalho e, nela, da degradação do ser humano retratada nos muitos tons de cinza da Encíclica Fratelli Tutti.

É espantoso que aqui no Brasil, nem os economistas, tão sensíveis às vicissitudes do capital, nem a universidade nem ninguém tenham aberto um debate duro para mostrar que a favelização dos pobres, sobretudo no último meio século, tem por objetivo baratear a força de trabalho já barata. A moradia imprópria para uso humano, na favela, barateia significativamente esse item do custo de vida do trabalhador e da reprodução da sua força de trabalho para o capital.

 

Inclusão social excludente

Não se deve falar em exclusão social como falsamente piedoso interesse pelos que foram colocados à margem da sociedade da prosperidade. Um dos apelos da encíclica é relativo à indiferença pelos que estão caídos à beira do caminho. Como se eles e nós não tivéssemos nada em comum, se não nos pertencêssemos reciprocamente. A condição humana não é obra de cada um.

Estamos, na verdade, em face de uma economia e de um projeto político que é um projeto de inclusão social excludente. Inclui de um modo peculiar, que priva o trabalhador dos direitos e meios que lhe permitam e permitam à sua família ser simplesmente pessoas.

 

Trabalho escravo

Um dos temas da encíclica é o do trabalho escravo. Há lugares do mundo, também aqui no Brasil, em que a degradação do trabalho e do trabalhador criou uma modalidade de trabalho análoga à do escravo, a escravidão por dívida. Há algum tempo, a Organização Internacional do Trabalho - OIT calculou que há no mundo mais de 12 milhões de escravos. Os lucros ilícitos decorrentes da escravidão atual foram por ela estimados em 32 bilhões de dólares. É um imenso negócio bem capitalista apesar da forma amoral que assume.

A encíclica é uma consolidação dos pontos de vista do Papa Francisco e os de seus antecessores, como Bento XVI e João Paulo II, expressos num número extenso de lugares e situações. Desde homilias e conferências internacionais até exortações feitas da janela dos aposentos papais na hora do Angelus. Mas, também, de documentos e manifestações das Conferências Episcopais, dos encontros que em vários continentes o Papa tem tido com a ampla diversidade do povo de Deus e de encontros com líderes de outras igrejas e de outras religiões.

Não é uma palavra destinada apenas aos católicos, nem mesmo apenas aos cristãos. Expressamente, ele fala aos crentes das várias crenças e aos agnósticos. Nem é um elenco de conselhos aos outros. É uma confissão do Papa ao gênero humano num momento de dor e desesperança da humanidade. Expressa o clamor de povos e gentes que no mundo inteiro os Papas têm visitado, visto e ouvido, na peregrinação do sofrimento compartilhado. É claramente a fala de um irmão, de um Papa despido das limitações do poder de sua função. A encíclica é manifestação do poder da palavra. Nela, ele fala pelos milhões que foram calados, que desconhecem suas próprias carências e os fatores e causas dessas carências.

 

 

Uma declaração de amor

Fratelli Tutti é uma declaração de amor ao irmão ameaçado, deserdado, enganado. É uma tomada de consciência em nome da reciprocidade do eu e do outro. Não é um documento de quem fala sozinho, como já aconteceu com documentos papais de outras eras.

Assim como Deus, um dia, sentou-se ao lado de Johann Sebastian Bach e lhe foi indicando que nota e que notação deveria colocar na pauta de música em cada uma de suas composições, é impossível não perceber que, nesta encíclica, Deus pediu a Francisco que falasse em seu nome à pluralidade do gênero humano e às criaturas de sua criação. E lhe foi indicando as palavras, o modo de concatená-las e de lhes dar sentido. O da intensidade da dor de irmão e pai.

É um documento cristão e católico, porque universal e fraterno, porque é o texto simples de um cura de aldeia, que tem servido a Deus na periferia do mundo e do ponto de vista que se pode ter do mundo no seu limite, na sua fronteira. Um Papa que foi buscado no fim do mundo, como declarou quando se apresentou na “loggia” da Basílica de São Pedro minutos depois de ter sido escolhido.

 

 

Papas são Papas

Mas a fala de Francisco, por tudo isso, não é simplesmente sua fala. Os agentes de pastoral e os próprios não crentes, desde a eleição de João XXIII, equivocam-se na expectativa da vinda de um Papade esquerda”. Os últimos seis Papas têm sido definidos e julgados nessa perspectiva equivocadíssima, de que os Papas são ou de direita ou de esquerda. Nem uma coisa nem outra. Os Papas são Papas, com a enorme missão de simbolizar a presença da Igreja no mundo, e agir como porta-vozes das diretrizes de conduta e de mentalidade que realizem no mundo a promessa da presença de Deus entre nós. Os Papas têm a missão sagrada de ajudar a todos a ter a visibilidade de Deus em nosso horizonte, em nossa vida.

João XXIII inaugura uma linha de postura dos Papas que é contínua e não descontínua em todos eles. Aparentemente, Montini [Papa Paulo VI] teve um papel decisivo na adoção dessa linha de abertura e renovação, mesmo tendo recusado o trono de Pedro como sucessor de Pacelli [Papa Pio XII], que lhe foi oferecido pelos cardeais. Não era cardeal. Deu uma resposta significativa: “Ainda, não”. Ele receberia a púrpura por decisão de João XXIII, em 1958, e seria seu sucessor.

 

IHU On-Line - Quais são os três pontos que destacaria do texto?

José de Souza Martins - É extenso o elenco de pontos sublinháveis na encíclica. Eu destacaria a identificação da forma da alienação social gerada pela economia neoliberal e o poder político de que ela depende para fazer da injustiça social uma fonte de multiplicação dos lucros. Destacaria o relativo ao fim da consciência histórica. Ela vem sendo atacada e desconstruída para instituir o esquecimento e a manipulação da consciência para fazer do que dela resta a fonte corrosiva das diferenças e singularidades identitárias. Enfim, destacaria a comunidade como a forma de organização social de referência das ponderações sociais do Papa e, no geral, da Igreja, na encíclica desdobrada na riqueza de suas possibilidades sociais.

A nova Igreja, desde João XXIII, tem sido ecumênica e tem alargado seu ecumenismo para além do cristianismo. O centro da orientação religiosa e ética dessa nova Igreja é o da pastoral de identificação, de crítica e de superação da alienação do homem comum, cada vez mais subjugado pelos poderios que o minimizam e o impedem de ver a realidade das injustiças a que tem sido cada vez mais e em número crescente condenado. A alienação de uma modernidade que cega o homem para o conhecimento do que dele faz a realidade das relações sociais coisificadas da injustiça estrutural. O homem coisificado perde a esperança, perde o sentido da vida, perde a fé. A alienação destrói as bases sociais e existenciais da fé. Destrói, também, a possibilidade da consciência social crítica.

 

 

Alienação

Esse tema da alienação tem sido tratado por teólogos e pensadores sociais. Já antes de sua eleição como Bento XVI, Joseph Ratzinger, em seu livro sobre Jesus, segundo vejo em uma citação (J. Ratzinger-Benedetto XVI, Gesù di Nazaret. Dall’ingresso in Gerusalemme fino alla resurrezione, LEV, Città del Vaticano, 2011, pp. 116-117), ao tratar do pecado original, menciona o duplo sentido da palavra “mundo” em João. “De um lado, ela indica toda a boa criação de Deus”. De outro, “designa o mundo humano como historicamente se desenvolveu: nele, corrupção, mentira, violência se tornaram, por assim dizer, a coisa ‘natural’”, como uma segunda natureza. Alude a Blaise Pascal, o cientista e teólogo católico do século XVII, cuja beatificação está sendo cogitada pelo Papa Francisco.

Poderia ser ela a “natureza segunda” de algumas análises de Henri Lefebvre em relação à mediação da relação homem-natureza na dinâmica do processo histórico. O mesmo Lefebvre, de orientação marxiana, que escreveu densa obra sobre Pascal, era leitor de Santo Agostinho e leitor e seguidor de Gioacchino da Fiore, o monge cisterciense do século XII, inspirador do joaquimismo e dos fundamentos da sociologia dialética. O joaquimismo está na base do movimento das Folias do Divino Espírito Santo e do profetismo popular brasileiro que, por meio delas, anuncia a “loucura” do tempo de uma sociedade de alegria, fartura e justiça.

E diz Ratzinger, ainda: “Filósofos modernos ilustraram esta situação histórica do homem de múltiplos modos; por exemplo Martin Heidegger, quando fala do “se” impessoal, do existir na ‘não-autenticidade’. De modo muito diferente, a mesma problemática aparece quando Karl Marx ilustra a alienação do homem.”

Certamente, ele está se referindo tanto ao famoso texto sobre o “Trabalho alienado”, dos Manuscritos de 1844, uma análise teórica sobre o estranhamento do homem em relação a si mesmo, quanto ao primeiro tomo de O Capital, quando Marx expõe sociologicamente a alienação como autoengano induzido, condição de dominação e exploração do trabalhador pelo capital.

 

Convergências

Não é estranho que haja uma convergência de temas entre análises de católicos e de protestantes, de um lado, e de análises de cientistas e pensadores sociais, de outro; embora a interpretação das causas e das consequências possam ser entre si muito diferentes. Nesse sentido, Georg Simmel e Paul Ricoeur estão citados na encíclica.

No meu modo de ver, enfim, é o questionamento da alienação desumanizadora do homem e coisificadora da pessoa o que dá sentido e especial relevância e atualidade a esta Encíclica. A fé como instrumento libertador em face da alienação que contra ela conspira. Sobretudo porque o documento se estende na análise de causas e fatores da poderosa forma assumida progressivamente por essa alienação desde o período posterior à Segunda Guerra Mundial. A alienação não é mais o casual e inevitável do processo do capital. A alienação agora é uma técnica social de poder e de exploração, de dominação de pessoas e de consciências.

Já havia se transformado em religião do dinheiro, o que se exacerbou nas últimas décadas com a disseminação de igrejas e seitas identificadas com o que vem sendo chamado de “teologia da prosperidade”. A oposição teológica e política às diferentes formas de teologia da libertação. Hoje a fé manipulável e sem autenticidade já é produzida no varejo e tem como motor a prosperidade econômica de cada um como indício de que só quem enriquece é abençoado.

A encíclica põe grande ênfase na crítica minuciosa à força manipulativa dos meios de comunicação virtual. É uma verdadeira etnografia dessa diabólica máquina de controle social. Na verdade, são eles tecnologias de conformação da alienação instalados no interior da própria casa de família. Henri Lefebvre, muito tempo antes do surgimento desses recursos de controle social, já havia chamado a atenção para a diferença entre imaginação e imaginário, o segundo ocupando o lugar e minimizando a primeira.

A imaginação é o pensamento liberto, criativo, inovador, decisivo em todos os âmbitos do conhecimento, da arte à ciência e à própria religião. O imaginário, no entanto, é o do pensamento repetitivo e manipulável, conformista e alienador. É o pensamento que Lefebvre definiu como mimético, que simula inovação e criatividade quando é apenas repetição manipulada do já existente sob forma aparentemente nova. De certo modo, é o amansamento e a morte do espírito.

 

Jovens, as grandes vítimas

Fratelli Tutti, a propósito, preocupa-se sobretudo com os jovens, as grandes vítimas dessa tecnologia de empobrecimento do espírito humano.

É, também, o que permite vislumbrar a convergência significativa dessa orientação da Igreja e do pensamento social não confessional, igualmente voltado para o desvendamento e a crítica das diferentes manifestações da alienação na atualidade, em decorrência dos efeitos corrosivos da economia neoliberal em todos os âmbitos da vida.

 

IHU On-Line - Que relações o senhor percebe entre a Encíclica Fratelli Tutti, a Laudato Si', o recente discurso do Papa Francisco na ONU e seus pronunciamentos acerca da economia e da justiça social? Nesse sentido, como esta encíclica se insere no pontificado de Francisco e na sua mensagem à humanidade?

José de Souza Martins - O grande conflito da sociedade contemporânea está inteiramente exposto na Encíclica. É uma exposição inovadora pela abrangência dos problemas, adversidades e desafios do mundo e as conexões que há entre eles. Não é uma encíclica do meramente setorial.

Os modos de ver o mundo e a vida dependem muito do lugar em que estão os olhos de quem olha. O que só é possível, neste caso, porque a Encíclica é uma explanação não partidária, de um homem de Igreja que questiona também o sectarismo. Um ser humano do diálogo verdadeiro, não o do falar com base na pressuposição de que o outro é ótimo se concorda comigo.

A mensagem central da encíclica é, claramente, a centralidade da humanidade do homem na História, como criatura de Deus. Na opinião sem decoro, dos poderes e dos poderosos do mundo, com raras e louváveis exceções, o lucro da abundância fácil e injusta justifica a barbárie das destruições. A agonia do mundo é planejada e calculada na moeda forte da existência fraca.

 

 

Perda da consciência histórica

Não se trata, apenas, da agonia do corpo, mas da agonia do espírito. Uma das consequências da alienação modernizada e atualizada é a da perda administrada da consciência histórica – uma das enfáticas preocupações do Papa Francisco. É a zerificação da memória social em que fomos socializados, aquela que guarda uma espécie de DNA dos valores e das referências da nossa socialização, da nossa alteridade e de nossa pessoa como membro da comunidade humana historicamente criada, o nosso nós.

A economia neoliberal e a política do neoliberalismo econômico fazem com que “a política se torne cada vez mais frágil em face dos poderes econômicos transnacionais que aplicam o ‘divide e reinarás’. Por isso mesmo se encoraja também uma perda de sentido da história que desagrega ainda mais. Nota-se a penetração cultural de uma espécie de ‘desconstrucionismo’, em que a liberdade humana pretende construir tudo desde o zero. Deixa de pé apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo.”

 

Proclamação de resistência e insurgência moral e espiritual

É essa, como várias outras, uma proclamação de resistência e de insurgência moral e espiritual do documento contra a construção política de uma sociedade à imagem e semelhança da mercadoria e do dinheiro, a dos seres humanos coisificados e privados da consciência de que a sociedade é obra histórica comum dos seres humanos. A grande obra histórica de formação da humanidade do homem. Contra a falsa igualdade do negócio e do negocismo e em defesa da igualdade de direitos, entre os quais o direito à diferença e a singularidade na unidade do ser em oposição ao primado do ter.

A sociedade da Encíclica de Francisco é na verdade a comunidade, que sociologicamente é a do ser em comum e do ter em comum. Isso está muitíssimo longe de ser a sociedade anônima da prosperidade individual e individualista. É a sociedade de resistência à malignidade das consequências sociais destrutivas do neoliberalismo e da política do derretimento dos valores sociais da identidade humana.

Não posso deixar de ver nas referências comunitárias desta encíclica aquele Cardeal Bergoglio que, numa manhã, caminhava lentamente por entre as colunas da Colunata de Bernini em direção ao Vaticano para as cerimônias de abertura do Conclave. O que o escolheria para continuar a grande obra da aflição pelos que foram deixados à beira do caminho. Como não posso deixar de ter presente aquele Papa rezando na solidão da Praça São Pedro, num dia de chuva, nos primeiros dias da pandemia, para ser num só o todos que carecem de compaixão na hora da incerteza.

 

Comunidade

A comunidade como referência crítica da análise e interpretação das disfuncionalidades, dos problemas, das irracionalidades e das contradições da sociedade contemporânea tem estado no horizonte das ciências sociais desde os primeiros teóricos da sociologia. O que coincide com os primeiros esforços das igrejas no sentido de reencontrar os fundamentos sociais do cristianismo primitivo, comunitário.

Comunidade já está na obra de Ferdinand Tönnies como a autenticidade do viver em comum. Está definida como ideia-elemento da sociologia de Robert A. Nisbet, que é justamente quem sublinha que na comunidade está um dos fundamentos da origem da sociologia na tradição do pensamento conservador. A comunidade é o todo, o “infragmentário” da realidade social, em que o homem não se perde em referências societárias e puramente abstratas da consciência social. Em Durkheim e em Marx, a sociologia é instrumento de uma compreensão totalizadora da realidade apoiada na premissa dessa realidade comunitária fundante.

Na mesma linha, vai Emmanuel Mounier, o pensador católico do personalismo e da pessoa, enquanto expressão vivencial da totalidade do ser social, diferente do indivíduo, o ser fragmentário do contemporâneo. Esse humanismo está por trás da concepção de comunidade da encíclica, como busca e como escudo contra as dilacerações do neocapitalismo socialmente destrutivo.

 

 

IHU On-Line - Que saídas a Encíclica Fratelli Tutti aponta para este momento de mudança epocal que vivemos?

José de Souza Martins - Fratelli Tutti é uma encíclica concebida e escrita na perspectiva dos valores fundamentais da grande e revolucionária tradição do pensamento conservador. É impossível mudar a vida, como a define Ágnes Heller, sem o recurso metodológico a essa âncora do pensamento socialmente crítico. É provável que os tradicionalistas fiquem perturbados quando, ao ler a encíclica, talvez descubram que tem de sua visão de mundo uma compreensão incorreta.

Resta, porém, saber como a receberão os muitos agentes de pastoral que se perderam no aparelhamento político-partidário de sua missão e a empobreceram. Que tem satanizado os intelectuais que, com os instrumentos do conhecimento crítico, apontam e demonstram na militância desinformada o aparelhismo e a práxis da sedução pelo poder.

Os imobilistas que, por sectarismo, se recusam a compreender que a sociedade é um objeto cambiante, que a práxis altera e é por ele alterada, de modo que o que tem nome e sentido de manhã já poderá não tê-los à tarde.

Na interpretação do cientista, isso não é mudança de opinião. Para ele, a certeza e a coerência estão no método científico e não nas narrativas sempre provisórias das percepções carentes da mediação explicativa da totalidade. O procedimento que permite descrever e interpretar a sociedade que muda e permanece ao mesmo tempo, como contradição e movimento. Nele, é competência de interpretação e recusa de subserviência ao desconhecimento petrificado em lealdades ideológicas, alienadas e reacionárias.

 

 

Populismo

E, mais ainda, na cumplicidade com as orientações políticas populistas que enquadram e amansam os pobres para assegurar a tranquilidade lucrativa dos beneficiários do neoliberalismo onde mais amargas são as injustiças sociais.

Não percebem, frequentemente, que estão usurpando a identidade do trabalhador e do pobre para nela inocular o vírus do poder e da manipulação política. Até mesmo e sobretudo quando falam em poder popular. Mas isso, diz a encíclica, sobre as lideranças populares, “resulta em populismo insano quando se converte na habilidade de alguém para cativar e com isso instrumentalizar politicamente a cultura do povo, com qualquer signo ideológico, a serviço de seu projeto pessoal e de sua perpetuação no poder”.

É nesse sentido que a Encíclica Fratelli Tutti aponta a saída para a crise social e política na libertação de cada um e de todos da alienação que escraviza. Na revisão crítica do conhecimento que aparentemente liberta quando, nesta modernidade doente, engana e escraviza. As certezas ideológicas chegaram ao fim. A fraternidade nelas baseada levou apenas a confraternizar com os agentes e personificadores dos males antissociais que a encíclica aponta detalhadamente. E os interpreta à luz dos valores e concepções que podem nos devolver a nós mesmos.

Nessa revisão está a possibilidade das mudanças que nos livrem dos enganos sociais do desconhecimento. Poderemos, então, encontrar o caminho da práxis socialmente transformadora e espiritualmente libertadora. O caminho do nós, do encontro e da cultura do encontro. O Papa Francisco recorreu a um verso de Vinicius de Moraes, numa gravação de 1962, do “Samba da bênção” para falar das contradições do que é possibilidade e desafio ao mesmo tempo: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.

 

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