Do direito à água ao direito à esperança: “uma nova prática à luz do diálogo e do encontro”

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19 Junho 2020

A reflexão sobre o que é comum a todos, sobre os elementos essenciais da vida humana, tornou-se uma necessidade em nível planetário. Isso é algo que foi mais do que demonstrado com a pandemia que a humanidade está enfrentando. Para avançar nesse debate, o Instituto para o Diálogo Global e a Cultura do Encontro, juntamente com a Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM, com o apoio de instituições aliadas, organizaram uma série de Fóruns Virtuais com líderes e especialistas de todo o mundo.

A reportagem é de Luis Miguel Modino.

Em 18 de junho, ocorreu o primeiro dos seis eventos, que se prolongarão até setembro, refletindo sobre "Do direito à água ao direito à esperança". Como lembra Luis Liberman, fundador e diretor do Instituto de Diálogo Global e Cultura do Encontro, os fóruns têm origem no seminário sobre o Direito à Água, organizado em fevereiro de 2017, com a presença do papa Francisco, na Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano, preparando o caminho para o segundo seminário a ser realizado no Vaticano, em fevereiro de 2021.

Luis Liberman, fundador e diretor do Instituto de Diálogo Global e Cultura do Encontro.
(Imagem: Luis Miguel Modino | Reprodução)

Os palestrantes abordaram esse tema a partir de diferentes abordagens, buscando como mergulhar nos desafios do direito à água, especialmente em ações concretas, buscando, como Liberman recordou, “trabalhar para melhorar a cooperação e buscar respostas para os desafios da humanidade”, onde 4 em cada 10 pessoas são afetadas pela escassez de água. Essa realidade é especialmente relevante no momento em que o único fator preventivo dessa pandemia de COVID-19 que estamos enfrentando é lavar as mãos, como um ato de higiene pessoal e social, nos fazendo perceber como “é terrível ter que pensar em políticas públicas para que as pessoas lavem as mãos”, afirma Luis Liberman.


Conferencistas do evento. (Imagem: Luis Miguel Modino | Reprodução)

Nesta busca pela esperança, não basta falar sobre isso, afirmou o cardeal Claudio Hummes, "porque existe o risco de tornar a palavra vazia e enganosa, ela precisa ser construída em um ambiente de escuta e encontro". Estamos enfrentando uma pandemia que, para o cardeal brasileiro, causou perplexidade e insegurança global entre as pessoas diante das várias situações que surgiram dela. Levando em conta que "tudo indica que a pós-pandemia trará tempos difíceis", que devem ser especificados em falta de trabalho, fome, falta de acesso à água potável, um direito universal, entre outros, a sociedade, que não podemos esquecer "foi profundamente afetada e fragmentada”, deve reagir.


Conferencistas do evento.
(Imagem: Luis Miguel Modino | Reprodução)

Podemos descobrir sinais de esperança nas "novas formas e práticas de solidariedade, convivência familiar harmoniosa, criatividade", nascidas da pandemia, afirma o presidente da REPAM. O desafio é, na opinião do cardeal, como superar os elementos negativos e promover o positivo, se a gente quer gerar esperança. Nessa perspectiva, entra em jogo a questão cultural, que leva à questão de como incorporar novos elementos culturais para o futuro, o que requer a necessidade de "abrir a cabeça, o coração e as mãos, adicionar novos elementos ao conhecimento", enfatiza o cardeal Hummes.

Nessa dinâmica, segundo o presidente da REPAM, entra em jogo a necessidade de "abrir o coração para uma recepção inclusiva, inovar uma nova prática específica, à luz do diálogo e do encontro". O cardeal apontou a preparação do Sínodo para a Amazônia e a aplicação das diretrizes, como um elemento que "pode iluminar e inspirar a construção da esperança hoje". Esse trabalho foi realizado pela Igreja do território e pela REPAM, no que Hummes chama de “um processo de sair para as periferias geográficas e existenciais, ir até as pessoas, não esperar que as pessoas venham até nós, escutar, escutar sempre, ver os gritos dos pobres e do meio ambiente, juntamente com eles, escutar soluções”.

Essa experiência, na qual foram escutadas 87.000 pessoas do território, é definida pelo cardeal Hummes como "uma experiência única, algo semelhante nunca havia sido feito, as pessoas começaram a confiar novamente e nutrir a esperança". O resultado foi levado ao Sínodo para ser discutido e discernido em 3 semanas de assembléia, com a participação dos povos indígenas. Como resultado desse processo, "agora voltamos ao território, ao povo, às suas comunidades, para encontrá-los novamente e apresentar os resultados do Sínodo, e novamente escuta-los e com eles prosseguirmos na construção dos novos caminhos propostos", diz o presidente da REPAM. Este "será um processo de anos, que deve respeitar acima de tudo os humildes, sempre descartados pela sociedade dominante".

A Igreja sempre viu o meio ambiente como um elemento fundamental para o ser humano, como lembrou Cecilia Tortajada, defendendo que "a pessoa deve estar no centro do desenvolvimento". Nesse sentido, a Santa Sé tem enfatizado que a água é um direito humano e que os pobres devem ter direito à água, pois é algo fundamental para a dignidade humana. A água é muito mais do que uma necessidade humana, é algo insubstituível, básico e vital para a sobrevivência, de acordo com a pesquisadora do Instituto de Políticas Hídricas da Escola de Políticas Públicas Lee Kuan Yew, de Cingapura.

Não podemos esquecer que "a água não faz parte da agenda política há muitos anos", afirma Asit Biswas, que defende o acesso universal à água potável. No entanto, como afirma o professor, mesmo no mundo ocidental, muitas pessoas não confiam na qualidade da água, bebem água engarrafada. Essa confiança na qualidade da água é uma reflexão fundamental no tempo da COVID-19. Nesse sentido, ele mostrou exemplos de iniciativas, como uma no Camboja, que levou a garantir que todos tivessem acesso à água, uma experiência que pode servir aos países em desenvolvimento, uma vez que, em sua opinião, a tarefa dos profissionais e os políticos é fornecer água para a população.

Existem três dimensões para refletir sobre o direito à água: jurídica, governança e inovação, de acordo com Alejandro Rossi, do UNOPS. Apesar de hoje existirem mais direitos do que nunca na história, a realidade é diferente, os direitos não são realizados, inclusive se falando da vida e da morte, em suas múltiplas facetas que ameaçam os povos. No nível da governança, que um direito reconhecido seja inacessível, quebra a esperança e a governança, a possibilidade de coexistência em paz. Isso requer inovação como necessidade de encontrar soluções para grandes problemas, buscando novas formas de investimento para que os direitos sejam acessíveis a todos, sabendo que é possível cometer erros, mas que essa é a única maneira de avançar e alcançar novas soluções, sem ter medo de erro.

A ausência do direito à água e ao saneamento é algo que continua afetando mais de 2 bilhões de pessoas, segundo Peter Gleick, afirmando que “este é um desafio que envolve todos, mas que não pode ser enfrentado, nem mesmo no países mais desenvolvidos”. Nesse sentido, ele deu o exemplo de Michigan ou Califórnia, nos Estados Unidos, onde muitas comunidades bebem água contaminada. Essa pandemia levantou preocupações sobre o acesso à água potável e ao saneamento, de acordo com o membro da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, que afirma que um dos maiores efeitos recai sobre as comunidades mais pobres. Por esse motivo, devemos aproveitar esse período de pandemia para tentar conscientizar as pessoas das conseqüências da falta de água e saneamento e das ações a serem implementadas.

Uma situação real é que 30% da água produzida não chega à torneira nos países desenvolvidos, segundo Rafael Ramírez, que exige outra maneira de produzir e distribuir água. Junto com isso, nos países desenvolvidos, apenas 1% da água potável é ingerida, o que é evidência de desperdício, mau uso da água e que temos um modelo altamente ineficiente que gera injustiças. Ao mesmo tempo, 13% da energia usada nos Estados Unidos é para mover e aquecer a água, com séria contaminação do meio ambiente. Isso deve nos levar, na opinião do Diretor do Programa Cenários Futuros, da Universidade de Oxford, Inglaterra, a procurar outra maneira de nos servir e usar a água.


Conferencistas do evento. (Imagem: Luis Miguel Modino | Reprodução)

"Pior que esta crise é apenas o drama de desaproveitá-la", disse Lucio Ruiz, que lembrou as palavras do papa Francisco nas quais ele diz que da pandemia a gente sai melhor ou pior, mas não sai igual. Vendo a necessidade de repensar todo o sistema humano de Laudato Si', o Secretário do Dicastério de Comunicação do Vaticano fez um chamado para "reler por que o direito à água se torna um direito à esperança", a partir de dois princípios básicos de Laudato Si': “a água potável e limpa representa uma questão de primeira importância, porque é indispensável para a vida humana e para apoiar os ecosistemas terrestres e aquáticas” (LS 28). Junto com isso, "o acesso à água potável e limpa é um direito humano básico, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é uma condição para o exercício de outros direitos humanos" (LS30).

Diante da pandemia que estamos enfrentando, Lucio Ruiz apresentou um olhar sobre a realidade de Francisco para repensar esses princípios, principalmente levando em conta a oração de 27 de março na Praça de São Pedro, que ele define como “um ícone da humanidade desolada e oprimida". Do magisterio neste período de pandemia destaca uma série de chaves. Primeiro de tudo, três chaves para o diagnóstico, estamos todos no mesmo barco, frágeis e desorientados, mas ao mesmo tempo, todos importantes e necessários mutuamente. A tempestade desmascara nossa vulnerabilidade, nossas falsas garantias. As fronteiras caem e todos os discursos fundamentalistas se dissolvem.

Junto com isso, ele apresentou três chaves para entender a situação, na qual avançamos rapidamente, nos sentindo fortes e capazes de tudo, mas isso é apenas uma pequena parte da humanidade. De fato, continuamos imperturbáveis, pensando ser saudáveis em um mundo doente, o que nos levou a buscar apenas remédios paliativos, esperando que tudo voltasse ao normal. Isso leva a três chaves que interrogam a existência, o que deve levar a pensar sobre a fome, ter comida para todos, guerras, alimentadas por desejos de domínio e poder, para mudar o estilo de vida, mais austero, com uma distribuição equitativa de recursos e procura em soluções internacionais.

Outro grupo de chaves são aquelas que levam à descoberta de como criar o futuro. Isso inclui reduzir sanções internacionais, perdoar a dívida externa, interromper o tráfico de armas, entender que os paradigmas tecnocráticos não resolvem problemas e, portanto, devemos pensar em um desenvolvimento humano abrangente. Finalmente, três chaves para começar de novo, amar nossa casa comum e cuidar dela e de seus membros mais fracos, com uma conversão ecológica com ações concretas e sabendo que cada um pode dar sua contribuição como forma de mudar o mundo. Isso deve nos levar a reler tudo, o que aconteceu é mais que um problema de saúde, é um evento antropológico. Houve uma profunda mudança na história, que provoca um novo tempo, que desperta solidariedade e esperança capazes de dar solidez com tensão e significado. Não podemos esquecer que é no sofrimento que se mede o verdadeiro desenvolvimento dos povos, segundo Lucio Ruiz.

A questão do direito à água e à esperança é algo "que nos afeta a todos e principalmente aos povos indígenas que estão na bacia amazônica", disse Patricia Gualinga. Ela denunciou que "é uma das fontes mais importantes de água doce do planeta, que está sendo devastada pelas indústrias". Esse sempre foi um motivo de luta, “mesmo sendo pessoas que foram mantidas fora das decisões do governo, mesmo sendo pessoas que nos classificaram como os mais pobres dos mais pobres, que são o último elo em pobreza, mesmo sendo povos os quais não temos acesso à água potável”.

Nesse período de pandemia, ela denuncia que as comunidades amazônicas têm água, mas não têm sabão para lavar as mãos. Embora o grande objetivo seja que todas as comunidades tenham acesso à água potável, isso é algo que nem todos os povos da Amazônia têm. A líder do povo Sarayaku denuncia que "a pandemia tornou visível a marginalização sofrida pelos povos indígenas, tudo se concentrou nas cidades e eles esqueceram que existimos como povos indígenas em nossas comunidades". Patricia define esse momento como apocalíptico, pois o coronavírus, a dengue, as inundações e a ruptura dos oleodutos estão convergindo para eles.

A indígena equatoriana afirma que "a situação não é fácil para os povos indígenas, estamos lá lutando, resistindo, denunciando, porque não podemos esperar apoio do governo", o que exige que refletamos sobre os erros cometidos. De fato, o que estamos enfrentando é o resultado da "corrupção dos governos, que nos colocou em uma situação realmente terrível". Diante da crise, mostra a impotência dos povos, acentuada "pela perda de nossos idosos todos os dias, por essa pandemia mortal que estamos enfrentando”.

Essa realidade exige, na opinião de Daniel Groody, uma educação sobre o cuidado da água e do meio ambiente. O padre vê a crise como perigo e oportunidade, como um momento para "repensar o trabalho educacional, buscar novos métodos de educação", para não voltar ao que tínhamos antes. Dado o que ele chama de ausência de líderes mundiais, ele vê 5 pontos necessários para ser líder: mente (pense, entenda a realidade e a ciência); coração (que não é apenas um centro de emoção, mas de conhecimento verdadeiro, não podemos conhecer o que não amamos, como disse Santo Agostinho); nervos (pessoas com capacidade de correr riscos); músculos (não como uso da força, mas como capacidade de transformar e amar); e alma (a crise ecológica está ligada a uma crise espiritual).

Do ponto de vista jurídico, Ricardo Lorenzetti definiu o atual como "um modelo de resposta defensiva a um novo fenômeno", afirmando que "a saúde da natureza e a saúde humana estão unidas". Há uma reação baseada no medo, que em sua opinião exige "passar de um modelo defensivo para um proativo, que é onde a esperança entra em ação". Isso deve levar ao trabalho para aumentar a resiliência da natureza, uma vez que o coronavírus está relacionado à deterioração natural. Portanto, a necessidade de fortalecer o sistema natural para fortalecer a saúde humana, trabalhar em uma nova economia, mudança cultural.

Na questão da água, o ministro do Supremo Tribunal de Justiça da Nação, na Argentina, vê que o grande erro é querer ajustar os conflitos às jurisdições, e não o contrário. Isso exige transformar as instituições para ajustá-las ao problema. Ao mesmo tempo, a necessidade de entender que a água é um bem comum, do qual muitas pessoas não podem ser excluídas. Ver também a água como um ativo legal protegido, com uma perspectiva diferente, baseada nos interesses da natureza como um sistema. Por essa razão, ele defende que "a questão da água deve ser pensada a partir do funcionamento do sistema; na pandemia, ela muda de um olhar defensivo, baseado no medo, para um olhar esperançoso, da saúde da natureza."

Por fim, Gianni Vattimo, um dos grandes filósofos de hoje, refletiu brevemente sobre esse assunto, partindo da idéia de que “o problema da água não é um problema de quantidade, mas de qualidade". Daí o problema de permitir que as pessoas acessem a água potável, mesmo nos países ricos, o que, na sua opinião, implica uma participação plena dos poderes públicos. Vattimo afirmou que "o problema da água é o problema da evolução", defendendo que "na questão da água quase todos os problemas sociais do nosso tempo se encontram". De fato, isso leva ao debate sobre a água como um bem público ou de investimento, que tem a ver com a estrutura capitalista da sociedade.


Gianni Vattimo. (Imagem: Luis Miguel Modino | Reprodução)

O filósofo italiano afirma que "o único que hoje conseguiria fundar uma internacional revolucionária é o Papa, porque ninguém confia em um líder político que seja uma potência local", vendo-o como "o único que pode pregar e promover uma transformação radical do mundo social". Vattimo vê este fórum como algo revolucionário, "porque quando se trata de acesso a água potável para todos, isso é um apelo a uma transformação global". Nesse sentido, ele afirma que "sem uma iniciativa global para defender o direito à água potável para todos, é difícil resolver ou imaginar uma evolução do problema".

Em relação à Itália, onde há um grande desperdício de água potável, há também uma tendência de vender águas minerais, comercializar recursos naturais sem respeitar os direitos dos habitantes. Gianni Vattimo afirma que "a questão da água está ligada à ordem capitalista do mundo, não há muito o que discutir sobre isso". Há uma tendência de comercializar bens comuns, na opinião do filósofo, sendo visto pelos poderosos como comunismo tudo o que leva a defender bens comuns, como água ou ar.

 

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