1865: Roma, Oxford e Washington. Continuando a reflexão de P. Gh. Lafont

22 Novembro 2019

"Para Francisco, a história da Igreja e a história americana se sintetizam em uma forma nova. Por esse motivo, "de Roma" vem hoje uma releitura ousada da relação com o liberalismo. É por isso que Roma não é mais imediatamente "antiliberal". Isso é possível porque em Roma está um bispo "vindo do fim do mundo", que herdou a história de um continente em que os anos de 1865 e 1968 significam coisas diferentes em relação à visão europeia da história", atesta Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua, em artigo publicado por Come Se Non, 18-11-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.

Segundo o teólogo italiano, "está claro que o Papa Francisco reinterpreta e reforça as últimas palavras de Martini e relança a lógica aberta do Concílio Vaticano II e dos "sinais dos tempos". Um dos pontos decisivos dessa lógica é o valor das "escolhas liberais" que marcaram o nosso mundo e que a Igreja é capaz de avaliar como algo a partir do qual pode aprender a reler o Evangelho de maneira mais adequada. A liberdade dos povos, dos escravos e das mulheres não é o oposto do dogma, mas uma consequência dele".

Hoje, conclui Andrea Grillo, "'vem de Roma' uma credível via média de um catolicismo não mais forçado a ser antiliberal para defender a verdade do Evangelho"

Eis o artigo. 

Em um belo post, que apareceu no blog "Des moines et des hommes", hospedado nesta mesma revista Munera, p. Gh. Lafont, com sua acuidade habitual, destacou uma bela coincidência entre um ensaio de J.H. Newman (Sobre o liberalismo) e o famoso Syllabus do papa Pio IX. Nos dois textos, publicados entre 1864 e 1865, a relação com o mundo moderno estava baseada no problema do "liberalismo". Obviamente, esses são textos diferentes: as 80 proposições do Syllabus e as 18 proposições do texto de Newman atestam diferentes horizontes, perspectivas e até responsabilidades. Eles estão 150 anos distantes de nós e atestam uma elaboração da questão que podemos considerar hoje, mas que de forma alguma podemos pretender repetir, sic et simpliciter.

Lafont identifica, ao lado da posição expressa pelo texto magisterial de Pio IX, a "via media" expressa por Newman, que retoma as tentativas análogas do catolicismo liberal francês. Depois de tantos anos, essa "via média" entre liberdade e dogma, parece hoje proposta surpreendentemente por Roma. Lafont diz:

"Hoje, onde estaria a via média? Pela primeira vez em muitos séculos, vem de Roma! Ou mais precisamente do bispo de Roma. Portanto, seria suficiente segui-lo, acompanhá-lo e, se não o precedê-lo, pelo menos não atrasá-lo!”.

Eu me pergunto: o que significa hoje que tal via média "vem de Roma"?

Acho que a intuição é particularmente feliz e merece ser aprofundada e esclarecida. Portanto, gostaria de reforçá-la de alguma forma com quatro pequenos desenvolvimentos, considerando melhor o texto de Newman (a), analisando brevemente os desenvolvimentos entre 1865 e nós (b), colocando ao lado "outro 1865", do qual Francisco é, mais ou menos diretamente, um "filho" (c), para concluir com um famoso juízo do falecido card. Martini, em torno do "atraso de 200 anos" da Igreja (d).

a) Texto de Newman Sobre o liberalismo

Deve-se fazer uma pequena anotação sobre a obra-prima de Newman, a Apologia pro vita sua, na qual, em uma apresentação autobiográfica de sua jornada intelectual, escrita em 1864, o autor acrescenta, no final, uma "nota" dedicada justamente ao "liberalismo" (p. 303-315 da edição italiana).

Newman está interessado no liberalismo como "princípio antidogmático". Para ele, a defesa do dogma implica inevitavelmente a contestação do liberalismo. Mas no momento em que o autor apresenta a posição liberal em 18 teses, oferece um quadro do tema que é, inevitavelmente, colocado em um tempo que não é mais o nosso. É de fato impressionante a impossibilidade de distinguir, do seu ponto de vista, o plano teológico, o moral, o jurídico e o político.

Entre as teses rejeitadas e condenadas por Newman, aparece a n. 17 completamente exemplar, que é a seguinte: "O povo é a fonte legítima do poder". É óbvio que a legitimação do poder, para uma perspectiva dogmática, parece incompatível com a democracia. Mas na raiz, a "legitimação da modernidade" parece difícil quando pensada com tal mensagem dogmática. Precisamente a dificuldade de assumir uma "lógica democrática" para pensar a legitimidade da autoridade bloqueia o pensamento de Newman em uma compreensão "antiliberal" que salvaguarda o dogma, mas apenas ao preço de fechar hermeticamente a relação com a história. Esse aspecto da questão parece ser muito problemático, justamente por causa das limitações do conceito de "dogma" elaborado com tamanha fineza por Newman.

b) As etapas católicas e protestantes sobre o tema "dogma e liberdade"

Um segundo ponto, sobre o qual devemos meditar, é, portanto, a mudança nos termos da questão, no que diz respeito à abordagem expressa tanto no Syllabus quanto no texto de Newman. As etapas fundamentais, que devemos levar em conta, para não correr o risco de entender equivocadamente esses textos, estão justamente entre nós e eles, nas seis gerações que nos separam daqueles católicos e protestantes de meados do século XIX. História e pensamento nessas gerações percorreram itinerários e aprofundamento e de conversão que podemos resumir brevemente em 4 episódios:

- a reflexão de Maurice Blondel, entre o final de 1800 e o início de 1900, iluminou a tradição com a categoria de "ação" e, assim, releu as relações entre "história" e "dogma" de acordo com prioridades e cadências que 50 anos antes ninguém poderia imaginar;

- a teologia dialética protestante, nos anos seguintes à Primeira Guerra Mundial, mudou profundamente a autocompreensão do protestantismo, ajudando a compreender os limites do liberalismo com uma profunda redescoberta da autoridade da revelação e da Palavra;

- o ressourcement que preparou e acompanhou o Concílio Vaticano II, entre as décadas de 1930 e 1970, permitiu redescobrir o dogma católico em uma leitura menos rígida e mais dinâmica, com a afirmação de uma conversão linguística e estilística da teologia realmente impressionante;

- também o pensamento protestante, depois de K. Barth, conheceu uma "teologia pós-liberal" - europeia e americana - que, sem descartar o patrimônio do liberalismo, o repensou profundamente em relação à experiência eclesial e às dinâmicas culturais.

Todos esses fenômenos, que cobriram o espaço de 150 anos, hoje nos permitem reler aqueles textos de 1865 com outra profundidade e com um sentido maior de seu limite histórico e linguístico.

c) Um "outro" 1865, em um continente diferente

Fiquei muito impressionado com a data que identifica as posições do Syllabus e de Newman: 1865. No mesmo ano, a 6000 km de Roma e Oxford, em 31 de janeiro, se consumava em Washington, por iniciativa do Presidente Lincoln, a aprovação da XIII emenda à Constituição dos EUA, que sancionava a "abolição da escravatura", pelo menos no plano jurídico.

De certa forma, na mesma data em que na Europa o foco estava na tensão entre "dogma" e "liberdade", no novo continente era colocado esse grande “sinal dos tempos", que apenas um século mais tarde a Igreja começaria a valorizar, a partir da encíclica Pacem in terris do Papa João XXIII.

Acredito que essa data pareça diferente para um europeu e um americano. Exatamente como a data de um século depois: 1968. Para um europeu, parece o início de um movimento de libertação/contestação, enquanto para um estadunidense é o ano do assassinato de Martin Luther King. Esse imaginário diferente, essa diferente cultura civil e eclesial, que distingue a América da Europa, constitui um dos pressupostos mais esclarecedores do pontificado do Papa Francisco. Para Francisco, a história da Igreja e a história americana se sintetizam em uma forma nova. Por esse motivo, "de Roma" vem hoje uma releitura ousada da relação com o liberalismo. É por isso que Roma não é mais imediatamente "antiliberal". Isso é possível porque em Roma está um bispo "vindo do fim do mundo", que herdou a história de um continente em que os anos de 1865 e 1968 significam coisas diferentes em relação à visão europeia da história.

d) A Igreja está "atrasada 200 anos"

Em uma entrevista em agosto de 2012, poucos dias antes de sua morte, o cardeal Martini disse:

"A Igreja está atrasada de 200 anos. Por que não se sacode? Estamos com medo? Medo em vez de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. Fé, confiança, coragem. Estou velho e doente e dependo da ajuda dos outros. As pessoas boas ao meu redor me fazem sentir amor. Esse amor é mais forte do que o sentimento de desconfiança que às vezes percebo em relação à Igreja na Europa. Somente o amor supera o cansaço. Deus é amor ...”.

Já na época, um dos primeiros a reagir com desconforto a esse juízo expresso pelo cardeal Martini foi Camillo Ruini, então presidente da CEI, que negou o atraso e acusou o Concílio Vaticano II de "danos causados à Igreja". Agora está claro que o Papa Francisco reinterpreta e reforça as últimas palavras de Martini e relança a lógica aberta do Concílio Vaticano II e dos "sinais dos tempos". Um dos pontos decisivos dessa lógica é o valor das "escolhas liberais" que marcaram o nosso mundo e que a Igreja é capaz de avaliar como algo a partir do qual pode aprender a reler o Evangelho de maneira mais adequada. A liberdade dos povos, dos escravos e das mulheres não é o oposto do dogma, mas uma consequência dele.

Um pequeno sinal desse dissídio entre diferentes hermenêuticas históricas e culturais talvez esteja no fato de que, enquanto Francisco levanta a voz profética da Igreja contra as formas contemporâneas de soberanismo e nacionalismo, o card. Ruini insiste em manter todas as formas de garantia do poder eclesial, a todo custo, inclusive ao custo de ressuscitar as antigas formas de antiliberalismo, que levam a Igreja de volta ao 1865 europeu, e esquecem que houve um 1865 americano, que marcou a história comum com um traço novo e original. Sobre esse ponto, Francisco preserva uma memória diferente e maior. E ele não está disposto a perder a memória para ser papa. Aliás, faz de sua memória diferente e mais ampla uma condição decisiva para o exercício do magistério papal de maneira singularmente profética. Por essa razão, como diz Pe. Lafont, "vem de Roma” uma credível via média de um catolicismo não mais forçado a ser antiliberal para defender a verdade do Evangelho.

 

Leia mais