"Que possamos superar as cruzes de nossas vidas, com fé e esperança, exaltando a justiça, a paz e bem, em tempos de impérios que insistem no poder que mata e subjuga povos ao seu domínio".
O comentário é de frei Jacir de Freitas Faria.
Jacir de Freitas Faria é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de treze livros e coautor de quinze. Publicou recentemente Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento (Vozes, 2025). São 784 páginas com a tradução de 67 apócrifos do Novo Testamento sobre a infância de Jesus, Maria, José, Pilatos, apocalipses, cartas, atos etc. Canal no YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos.
O texto sobre o qual vamos refletir é Nm 21,4-9 na sua relação com a festa da Exaltação da Santa Cruz. A origem dessa festa, celebrada no dia 14 de setembro, remonta à descoberta dos restos da cruz em que Jesus fora crucificado. Essa descoberta foi feita pela mãe do imperador Constantino, o Grande (272-337 E.C.), a Imperatriz Helena (246-330 E.C.), mais tarde, Santa Helena. Convertida ao cristianismo, ela rezava pela conversão do filho. Já idosa, em viagem a Jerusalém, ela encontrou três cruzes de crucificados no local identificado como Gólgota, no monte Calvário. A tradição reza que ela conversou com o bispo de Jerusalém, Dom Macário, para identificar o local da crucifixão de Jesus. Ao encontrar as três cruzes, ela chamou o bispo, o qual rezou e chamou uma mulher gravemente enferma para tocar nas três cruzes. Ao tocar na que Jesus foi crucificado, a mulher foi curada. Essa cruz foi considera a Vera Cruz (verdadeira cruz). Helena levou uma parte dela para Roma.
Outra tradição diz que, na véspera da batalha do imperador Constantino contra Maxênsio, na disputa pela supremacia do Império Romano no Ocidente, ele teve um sonho, uma visão. Uma cruz luminosa apareceu para ele e lhe disse: “Com esse sinal vencerás”. Na mesma noite, Jesus lhe apareceu em sonho com uma cruz semelhante. Ele não teve dúvida. Mandou escrever, no seu estandarte e nas roupas dos soldados, as letras XP, iniciais do nome Cristo em grego (Χριστός: Cristo). Ainda que seu exército fosse a metade do rival, ele venceu a batalha, no dia 28 de outubro, na ponte Mílvia, e se converteu ao cristianismo. Era o ano de 312 E.C. No ano seguinte, ele publicou um edito concedendo liberdade aos cristãos e reconhecendo o cristianismo como única religião do império romano.
Em 336 E.C., Constantino mandou construir a Basílica do Santo Sepulcro, onde sua mãe havia encontrado a suposta cruz da crucifixão de Jesus. Destruída e reconstruída várias vezes, a basílica recorda o fim da trajetória da paixão de Jesus. A partir de 336 E.C., a cruz de Jerusalém foi apresentada ao povo, em solene liturgia, como sinal de ressurreição. A partir dessa data, 14 de setembro, começaram as celebrações da festa da exaltação da Santa Cruz.
A atual basílica do Santo Sepulcro está sob a custódia dos cristãos católicos (franciscanos), desde 1309, mas também sob a dos gregos ortodoxos, armênios ortodoxos e coptas ortodoxos. Pitoresco nesta história da basílica é o fato de ela ser, hoje, propriedade de duas famílias muçulmanas, que receberam de presente, uma a chave e a outra o templo, em 1400, do rei mameluco, do Egito. Antes da assinatura de um documento que levou o nome de Status Quo dos Lugares Santos, assinado em 1852, conforme estabelece o artigo LXII do Tratado de Berlim (1878), os peregrinos deviam pagar para ter acesso à basílica. Solenemente, às 19h de cada dia, sob a vigilância da polícia israelense, a porta do Santo Sepulcro é fechada pelos descendentes da família muçulmana, a qual recebe uma quantia em dinheiro paga pelas quatro entidades. Quando a porta fecha, ninguém mais pode sair da basílica. Os franciscanos, que têm um convento nos fundos do Santo Sepulcro, ali permanecem sem acesso ao mundo exterior após esse horário.
Voltemos ao simbolismo da cruz para nós, os cristãos. Ela aparece nos evangelhos sinóticos com uma frase emblemática: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!” (Mc 8,34—9,1; Mt 16,21-27; Lc 9,23-27). Jesus coloca a cruz como condição para segui-lo, o que não significa, necessariamente, sofrimento, mas largar a comodidade da vida e lutar por um mundo novo.
No Primeiro Testamento, temos o simbolismo da haste e, no Segundo Testamento, o da cruz. A cruz sempre foi o símbolo dos cristãos? Vejamos! A relação de Moisés com uma haste, não uma cruz, com a serpente sobre ela, significa o fato de ela devolver a vida ao povo sofrido nas andanças do deserto, ao sair, após 430 anos de escravidão no Egito. O gesto recorda a sobrevivência que emana da serpente, sinal de vida na cultura egípcia. No Egito, o faraó tinha uma serpente sobre a sua cabeça, para representar o seu poder, a vida e sua imortalidade. Acrescente-se a isso o fato de a serpente, em aramaico jiwya, derivar da raiz jwy, que significa viver ou fazer viver, que se relaciona de forma semântica com o hebraico Jweh, o nome de Deus revelado a Moisés (Ex 3). Portanto, a serpente era símbolo de vida pelo fato de ela viver sobre a terra, a grande mãe, e trocar de pele.
Na mitologia grega, a vara do deus da medicina possui serpentes enroscadas, o que permanece até hoje como símbolo na área médica. Na Babilônia, a divindade principal, Marduk, era representada por uma serpente-dragão. Em Israel, a partir de Gn, a serpente passou a significar a força do mal e expressão religiosa, uma concorrente de Javé, o Deus de Israel.
Com Moisés, todo israelita que olhasse para a serpente bronze seria curado. “Faze uma serpente de bronze e coloca-a como sinal sobre uma haste; aquele que for mordido e olhar para ela, viverá” (Nm 21, 8), diz Deus para Moisés. Deus não extermina as serpentes, mas dá seu recado: ‘Quem estiver do lado de Moisés vai continuar salvo da escravidão’. Ele é a liderança, o mediador, que fala em nome de Deus e tem o seu poder nas mãos, o cajado com uma serpente (Deus) que cura.
A cruz, por causa de suas hastes vertical e horizontal, céu e terra, muito antes do cristianismo, já fazia parte do imaginário de povos. Os primeiros cristãos não a tinham como símbolo do cristianismo, mas o peixe, que era utilizado nas celebrações eucarísticas. Foi somente a partir dos séculos terceiro e quarto que a cruz foi identificada com os cristãos, os quais passaram a ser chamados de “os devotos da Cruz”.
Tertuliano, morto em 240 E.C., atesta que os cristãos faziam o sinal da cruz antes das refeições e ao deitar-se. Somente a partir de Constantino que a cruz passou a simbolizar a fé na morte e na ressurreição de Jesus que nos concedeu o perdão dos pecados, a salvação e nos ajuda a lidar com os sofrimentos da vida humana a caminho da vida eterna.
Na Idade Média, os portugueses que chegaram ao Brasil, assim como os espanhóis na América Latina, trouxeram nos navios a cruz e a espada. Em nome da cruz da catequese, eles mataram à espada os indígenas que não aceitavam a fé. Nos outeiros, nos montes, por onde passavam, os portugueses fincavam cruzes para simbolizar a posse, a conquista da terra para Cristo, isto é, para o império. Nas estradas, no local onde morria uma pessoa, colocavam uma cruz para defender a alma do falecido das garras do Capeta, que poderia levá-la para o Inferno.
Ser cristão é assumir a cruz e suas consequências. Pertencer ao grupo de Jesus era e é algo muito perigoso, subversivo. O Império Romano, o dos primeiros séculos do cristianismo, estava matando os seguidores do Nazareno. O medo diante da morte, da perseguição romana, transformou-se, por causa da lembrança da cruz de Jesus, em resistência. A cruz de Jesus, entendida à época, por alguns, como fracasso, tornou-se sinal de vida, de ressurreição e, como consequência, da atuação política de Jesus e de seus seguidores.
Jesus não devia e nem quis morrer na cruz. Suas últimas palavras foram de dor, de questionamento ao seu Pai que o havia abandonado, conforme atestam os evangelhos. No instante, ele compreendeu que a sua morte poderia ser redentora, ao perguntar: “Pai, por que me abandonates” (Mt 27,46; Mc 15,34). Só assim, ele conseguiu entregar o seu Espírito a Deus. Que possamos superar as cruzes de nossas vidas, com fé e esperança, exaltando a justiça, a paz e bem, em tempos de impérios que insistem no poder que mata e subjuga povos ao seu domínio.