"Os tempos são desesperadores e Marcos compôs um Evangelho justamente para estes dias. Tal como os primeiros discípulos, a nossa fé está abalada ou – pior ainda – sonolenta. Somos apanhados em tempos que não compreendemos, dias de escuridão cada vez maior".
A reflexão bíblica é de Terrance Klein, padre da Diocese de Dodge City e autor de Vanity Faith, comentando o evangelho do 1º Domingo do Advento, ciclo B do Ano Litúrgico, publicada por America, 29-11-2023.
Leituras: Isaías 63:16B-17, 19B;64:2-7; 1 Coríntios 1:3-9 Marcos 13:33-37.
São Marcos já passou do Natal. E a igreja também não aceita nada disso, pelo menos não neste domingo.
Para ser justo, Marcos não tem tempo para o Natal. Ele não está escrevendo uma história comovente. Não, tal como os outros evangelistas, ele está a dar testemunho – no seu caso, a uma igreja em crise, a igreja em Roma.
A Palestina, a pátria da fé, revoltou-se e a paciência de Roma esgotou-se. Quando os seus exércitos terminarem, não haverá Jerusalém, nem resto do reino de David.
A sociedade romana vê os cristãos com desprezo, considerando-os atrasados e insulares. Arrastado pela perseguição do Imperador Nero, o Apóstolo Pedro foi martirizado no Circo do Vaticano, nos arredores da cidade. O apóstolo Paulo foi decapitado pelo mesmo imperador. A comunidade que deixam para trás é composta por cristãos judeus e gentios. Todos eles estão, com razão, aterrorizados com o que está por vir.
Não é realmente hora de arrulhar um bebê em um berço de palha ou de cantar sobre pastores e reis magos, não é? Não, se ele alguma vez gostou, Marcos já passou o Natal.
Para sentir o teor do testemunho de Marcos, basta comparar o uso que ele faz da nossa passagem de Isaías com o de Mateus e Lucas. O profeta escreveu:
Oh, se você rasgasse os céus e descesse, com as montanhas tremendo diante de você, enquanto você realizava feitos terríveis que não poderíamos esperar, tais como eles não tinham ouvido falar desde a antiguidade (Is 63:19, 64:2- 3).
Isaías fala em “rasgar” os céus, baqa (בָּקַע). Todos os três Evangelhos sinóticos o citam na cena batismal de Jesus, embora Mateus e Lucas empreguem expressões mais benignas. Seus céus estão meramente abertos. Marcos insiste que eles sejam despedaçados, esquizômenos (σχιζομένους).
O de Marcos é um Evangelho escrito com uma pressa quase desesperada. Poderíamos dizer que tem apenas dois atos. Certamente não há prólogo em Belém. Não há tempo para isso. No seu primeiro ato, Marcos precisa que os seus ouvintes reflitam novamente sobre quem era Jesus, o Filho de Deus no meio de nós, mas alguém que rejeitou todas as expectativas que tínhamos do Messias.
Jesus nunca reivindica claramente nossos títulos para si mesmo. No entanto, ele vem entre nós como alguém que perdoa pecados, como alguém a quem até os ventos e o mar obedecem. Ele pastoreia Israel; ele caminha sobre o mar; e ele faz os surdos ouvirem e os mudos falarem. Ele vem procurar figos na árvore da fé e não os encontra.
Os líderes judeus não conseguem reconhecer quem estava no meio deles, mas os seus primeiros discípulos ficam igualmente confusos. Imediatamente depois de ele alimentar as multidões, elas reclamam sobre de onde virá a próxima refeição. Marcos não quer que sua comunidade cometa o mesmo erro. Nós não entendemos Jesus. Achamos que o temos, pensamos que o entendemos, mas não o entendemos. A este respeito, Cristo está destruindo as nossas expectativas. Mas ele é, não obstante, o próprio Deus de Israel no meio de nós e – não importando as circunstâncias do seu nascimento – veio entre nós para morrer.
Disso Marcos tem certeza. Na narrativa da Paixão, segundo ato do Evangelho, Marcos fala do cumprimento das Escrituras (14,48-49). Jesus não morre apesar da vontade do Pai. O Pai deseja claramente que esta morte venha sem demora.
O profeta Zacarias escreveu:
Golpeie o pastor para que as ovelhas sejam dispersas (13:7).
Marcos não precisa desculpar o Deus de Israel pela morte de Jesus. Não! Sua morte é o grande ato de Deus na história. Em obediência arduamente conquistada, o Jesus de São Marcos coloca a responsabilidade por sua morte aos próprios pés do Pai.
“Todos vocês terão a fé abalada, pois está escrito: ‘Ferirei (Pataxō; Πατάξω) o pastor, e as ovelhas se dispersarão’ (Mc 14,7).
Os tempos são desesperadores e Marcos compôs um Evangelho justamente para estes dias. Tal como os primeiros discípulos, a nossa fé está abalada ou – pior ainda – sonolenta. Somos apanhados em tempos que não compreendemos, dias de escuridão cada vez maior.
No clímax sombrio deste Evangelho, um centurião romano, o próprio inimigo, revela a verdadeira identidade de Cristo. Só ele pode fazer isso porque o viu morrer.
Quando o centurião que estava diante dele viu como ele expirou, disse: “Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus!” (15:39).
Mais uma vez, como se estivesse desesperado, Marcos interrompe sua história. No primeiro final do seu Evangelho, até a ressurreição é reduzida a um breve anúncio angélico, que dificilmente se liberta da morte horrível.
Não se surpreenda! Você procura Jesus de Nazaré, o crucificado. Ele ressuscitou; ele não está aqui. Eis o lugar onde o colocaram (16:6).
Por que essa correria frenética? O que Marcos quer de nós? Como os discípulos hoje devem responder? Pois nada mudou fundamentalmente no mundo, e Deus nunca muda. Então, como devemos reconhecer o Cristo que ressuscitou dos mortos e que continua a agir no meio de nós? Novamente, o evangelista atinge seu alvo muito rapidamente.
Esteja atento! Esteja atento! Que ele não venha de repente e te encontre dormindo. O que eu digo a vocês, digo a todos: “Vigiem!” (13:33, 36-37).