18 Outubro 2017
Dedicado desde 2003 a estudar a Argentina, Ozarow vincula o kirchnerismo e o macrismo com a crise de 2001, analisa o atual encolhimento do Estado e seu impacto sobre os setores sociais mais vulneráveis, além de refletir sobre o cenário eleitoral.
A entrevista é de Marcelo Justo, publicada por Página|12, 17-10-2017. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
Daniel Ozarow é professor da Universidade de Middlesex, no Reino Unido, e é coeditor do livro De la crisis al kirchnerismo 2001: cambios y continuidades (Editora Prometeo, ainda sem tradução para o português). Nos últimos dois meses, ganhou especial destaque por seu papel como secretário da Argentina Solidarity Campaign e os protestos no Reino Unido para reivindicar a aparição de Santiago Maldonado com vida. Em um espanhol perfeito, analisou junto ao Página|12 a conjuntura prévia das eleições de 22 de outubro, as conquistas e limitações do kirchnerismo, o futuro do projeto macrista e os paralelos entre o Reino Unido e a Argentina.
Por que você se interessou pela Argentina?
A primeira vez que pisei em terras argentinas foi em 2003, quando trabalhava como voluntário em uma ONG britânica. Me enviaram à Villa 31, em Buenos Aires, e me encontrei com pessoas muito simpáticas e trabalhadoras que sempre viveram em condições de profunda pobreza. Mas também trabalhei com pessoas de classe média que tinham sofrido um terrível declínio econômico, social e psicológico. Fiquei impressionado com a resiliência, a criatividade e a solidariedade com as quais os argentinos reagiram à crise para saírem do inferno, seja através de movimentos populares, como as assembleias de bairros, clubes de troca ou empresas recuperadas por seus trabalhadores. Sempre me perguntava: o que faríamos na Europa se nos ocorresse uma crise da mesma magnitude?
O livro que você co-editou busca analisar a passagem da crise de 2001 ao kirchnerismo. Como você enxerga o atual momento argentino, à luz desse livro?
O ponto de partida do livro é a Praça de Maio, os espaços públicos e as ruas onde surgiu o grito de "Que se vayan todos" ("Fora todos!", NdT). Por isso exploramos o legado de tudo isso e as respostas à crise social nos âmbitos político, econômico, cultural, da cidadania e dos movimentos sociais. Em grande medida, o projeto kirchnerista era dar voz àqueles que estavam reivindicando nas ruas durante aquela época extraordinária. E eles conseguiram fazer isso com bastante sucesso, porque depois de doze anos, com o Plano para Chefes e Chefas de Família (Jefes y Jefas del Hogar, NdT), o Plano Mãos à Obra (Manos a la Obra, NdT) para micro-empreendimentos, o Trabalhar para Cooperativas (Trabajar para Cooperativas, NdT), o programa Conectar Igualdade (Conectar Igualdad, NdT) para que as crianças tenham acesso à Internet e à informação, e a Atribuição Universal por Filho (Asignación Universal por Hijo, NdT), impulsionaram as políticas de inclusão social, que alcançaram 8 milhões de pessoas. Embora essas políticas agora estejam naturalizadas, a realidade é que, desde a época do primeiro peronismo não se tinha conseguido nada igual. A grande diferença agora é que estes planos são implementados em um contexto de ajuste, austeridade e cortes drásticos nos gastos públicos. Por isso, na realidade não se diferenciam das políticas neoliberais tradicionais que sempre se concentram nas transferências para os setores de baixa renda, como um método eficaz de contenção social e, ao passo que, ao mesmo tempo, esmagam a esses mesmos setores com o encolhimento do Estado. Neste sentido, estamos vendo um retorno aos anos 90.
Estamos falando de momentos muito diferentes em termos de percepção coletiva. Além disso, se uma pessoa for contar que são mais de 25 anos entre os anos 90 e o presente, estamos falando de um fenômeno geracional. Como você tem acompanhado todo esse fenômeno?
Entre 2007 e 2016 voltei à Argentina várias vezes para entrevistar as pessoas sobre sua trajetória laboral e econômica desde 2001. E o que eu vi foi uma transformação profunda. Dou-lhe quatro exemplos. Primeiro, uma grande democratização em vários âmbitos, desde a expansão dos canais de participação política cidadã nas municipalidades, à democratização econômica através do uso do orçamento participativo e a movimentação de empresas recuperadas por seus trabalhadores. Em segundo lugar, uma grande mudança na geração de jovens que vivia em 2001. Embora hoje eles vejam a "política" dos encargos públicos com certo cinismo, eles têm muita confiança em sua capacidade de auto-gestão, de organizar-se para unirem-se e fazerem as mudanças sociais que procuram. A terceira marca que a rebelião de 2001 deixou está dentro dos mesmos movimentos sociais, sindicais e na sociedade civil. Foram fortemente incorporados os novos valores da horizontalidade, da democracia direta, da organização comunitária e as decisões por assembleia que hoje em dia são impensáveis de ver qualquer campanha cidadã que não se caracterize por esses traços. E a quarta marca obviamente é percebida no nível da "alta política". Para mim, se não fosse a rebelião de 2001, não existiriam nem o kirchnerismo, nem o macrismo. O kirchnerismo, porque a Argentina não se encontrava frente a uma situação revolucionária em 2001, mas apesar disto, o peronismo teve de se reconstituir para salvar-se como uma força política, após a administração de Menem, e para salvar o mesmo sistema de democracia representativa que havia se esgotado e que necessitava de uma força política reformista ligada ao sistema. Mas a vitória do presidente Macri também foi - de maneira paradoxal- produto do legado da rebelião. Pelas entrevistas que realizei, o desprezo para com a classe política nacional e a corrupção que grandes setores da população sentem contribui para que muitos vissem Macri como "alguém com uma imensa riqueza familiar que era incorruptível" e também "um empresário que faz política, e não um político que gera corrupção". Hoje, alguns dos meus entrevistados lamentam a sua decisão. Para eles, a revelação de seu nome nos Panamá Papers e o escândalo do Correo Argentino são exemplos de que ele não era assim. A história nos mostrará se o atual presidente paga um preço político ou não.
Como você vê as eleições do dia 22 de outubro?
Parece-me que as eleições serão marcadas por uma inércia, com a qual será provável que vejamos uma pequena consolidação da posição do partido Cambiemos no Congresso. Isso é absolutamente extraordinário, dado o contexto dos acontecimentos econômicos e políticos dos últimos dois anos. Macri está presidindo a pior recessão econômica com fortes aumentos no desemprego, na pobreza, no custo de vida desde 2002 e o maior endividamento nacional de todos os tempos. Ele quebrou uma grande quantidade de promessas que fez durante a campanha eleitoral de 2015 e o partido Cambiemos está falhando nos próprios termos que eles estabeleceram como indicadores de sucesso. Além disso, eles têm sido atormentados por escândalos e corrupção.
Os Panamá Papers e o escândalo do Correo Argentino são alguns dos tantos exemplos. O governo também está enfrentando a condenação mundial por seu papel no desaparecimento forçado de Santiago Maldonado, tanto nos meios de comunicação internacionais quanto nos protestos em todo o mundo, e a condenação da ONU, da Anistia Internacional e da Comissão Interamericana de Direitos humanos. No entanto, uma parcela significativa da população seguirá votando neles, seja como o mal menor ou porque seguem cegamente os meios de comunicação e parecem convencidos de que, paradoxalmente, o mesmo modelo econômico de ajuste que fracassou tantas vezes na Argentina, desta vez trará milagrosamente a prosperidade. Muitos de nós, na ciência política e sociológica, estamos nos perguntando o que é preciso acontecer para que haja uma mudança eleitoral significativa em uma sociedade altamente polarizada como a argentina. Me dá medo dizer isso, mas a minha própria conclusão é que apenas uma crise de escala semelhante a de 2001 faria os argentinos que continuam votando para o Cambiemos poderia começar a mudar o seu comportamento eleitoral. Muitos dos meus entrevistados me disseram que "os argentinos só respondem quando algo mexe nos seus bolsos". Isso costumava me incomodar, porque acredito que mais ou menos a metade da população vota, não só para si mesmos, mas também para o que eles percebem como uma sociedade mais justa. Mas é curioso que haja uma elevada porcentagem de pessoas que nem sequer votam por si mesmas, mas sim contra o seu próprio interesse. É uma situação muito preocupante.
Uma de suas razões para co-editar o livro foi entender melhor a Europa e o Reino Unido através da Argentina. Você vê alguma semelhança entre o que acontece na Argentina e no Reino Unido?
Estou fazendo algumas investigações com Eduardo Chávez Molina no Instituto de Pesquisa Gino Germani, da UBA, sobre as pautas de votação comparativa entre as eleições presidenciais de 2015, na Argentina, e as eleições gerais de 2017, aqui, no Reino Unido. Observamos que existem padrões notavelmente semelhantes, especialmente com relação ao fosso inter-geracional entre os eleitores jovens e mais velhos. Os jovens e as pessoas com menos de 40 anos estão mais atraídas pelas mensagens de esperança e de igualdade defendidas por Cristina Kirchner e Jeremy Corbyn, e os eleitores mais velhos inclinam-se para Mauricio Macri e Theresa May. Esta diferença é maior agora do que em qualquer outra época e creio que também será um fator para decidir o resultado em 22 de outubro.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
"Estamos vendo um retorno aos anos 90" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU