14 Outubro 2017
Após o motu proprio Magnum principium, uma reflexão sobre o valor das “línguas populares” torna-se não só possível, mas também necessária. A tradução é novamente reconhecida como condição da tradição.
Nesta brilhante intervenção, o historiador e teólogo Ubaldo Cortoni, monge camaldulense e professor no Pontifício Ateneu Santo Anselmo, relê, com grande síntese, a importância do recente documento à luz da história moderna e medieval. E uma citação de Anselmo sela uma reflexão sobre a virada que o Papa Francisco soube imprimir na tradição, canonizando um jesuíta linguista.
O artigo foi publicado no blog Come Se Non, do teólogo italiano Andrea Grillo, 11-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
por Ubaldo Cortoni
É realmente singular descobrir que, ainda hoje, é possível se posicionar ao lado de uma tradição com “t” minúsculo, assim como o “h” daquela história com a qual alguns se entretêm, solidamente ancorada em uma theologia perennis, “igual em toda a parte, em todos os lugares e para todos os homens”, que Jürgen Moltmann desmascara, apelando ao ensaísta e linguista francês George Steiner [1], para o qual toda transmissão é uma tradução, cuja tarefa é tornar incomumente familiar a um destinatário, muitas vezes culturalmente distante, um conteúdo que, primeiro, lhe era estranho.
Obviamente, pode-se me objetar que, com a tradução, grande parte do original corre o risco de se perder, mas acho que é mais arriscado perder completamente a oportunidade de comunicar, de transmitir e, assim, de permitir que a Verdade, formulada inevitavelmente de acordo com os cânones de uma cultura, possa se cruzar com as verdades de outras culturas, para depois encontrá-las.
É indubitável que a tradução permitiu que a Igreja crescesse e se enraizasse nos Novos Mundos. Um exemplo, acima de todos, foi o problema enfrentado pelos jesuítas no século XVI, com a evangelização das costas do Brasil, através de “uma eficaz tradução, ao mesmo tempo, da mensagem evangélica e das suas categorias linguísticas (ocidentais), mas também da cultura (linguística) indígena que deveria permitir veiculá-la, com o menor número de maus entendidos, junto às culturas indígenas americanas” [2].
A partir daí, ganhou espaço a “língua geral das costas” ou o “grego da terra”, que, na intenção daqueles que a codificaram, ajudaria aquelas populações a se apropriarem de categorias filosóficas, teológicas e políticas desconhecidas para elas, mas que, na realidade, deu origem a uma cultura que releria a tradição ocidental através das categorias que já possuíam.
A gramática do tupi foi redigida em 1595 por José de Anchieta, o apóstolo do Brasil, o primeiro jesuíta espanhol canonizado pelo Papa Francisco, um missionário e linguista que escrevia, simultaneamente, em português, castelhano, latim e tupi.
Uma Babel abençoada, quando o pentecostes das línguas permite uma teologia em tradução para uma Igreja em transição, como era aquela depois da descoberta das Américas: uma Igreja que pensava ter atingido os confins do mundo, de modo a ter levado a termo a sua tarefa há muito tempo, e que, ao contrário, no fim de um século (12 de outubro de 1492), que marcaria também a história daqueles mundos, encontra-se novamente diante da necessidade de recomeçar de novo, levando o anúncio do Evangelho a uma humanidade não só desconhecida para ela, mas até mesmo ignorada.
Mas, indo mais atrás no tempo, é com a celebração do Sínodo de Veneza, que, mesmo que tenha sido apenas uma invenção do hagiógrafo de São Cirilo, representaria, mesmo assim, uma das primeiras tentativas de defender o uso da língua de um povo na liturgia em relação ao enrijecimento da Igreja carolíngia sobre as línguas do Titulus crucis, isto é, as línguas que compunham a tabuleta posta sobre a cabeça do Crucificado: latim, grego e hebraico, que, no tempo de Jesus, nada mais eram do que a língua da administração, da koiné e do povo.
Dentro dessa história, José de Anchieta não é senão um dos últimos daqueles apóstolos que, do século VIII ao XI, levaram o anúncio do Evangelho encontrando culturas e tradições através das suas línguas, escritas ou não.
Esta também é Tradição, e acho que é nessa direção que se move o motu proprio Magnum principium do Papa Francisco, para que novos mundos possam ainda e sempre se aproximar daquela Verdade, que – embora permanecendo a mesma – aceita se comprometer com a linguagem, porque o mistério não está na forma que uma tradição pode assumir, mas sim em narrar ao mundo o mistério da dispensatio Christi, ou, se se preferir, da economia salvífica, que chega à vida dos crentes através da linguagem litúrgica, e que, talvez, hoje, represente a última forma de evangelização do Ocidente, já que a humanidade que se projeta no horizonte representa aqueles novos mundos.
Confiar às conferências episcopais a tarefa de promover e vigiar sobre as traduções significa reconhecer o valor imprescindível das culturas nas quais a Igreja se enraíza e, ao mesmo tempo, endossar um novo impulso missionário delas.
Uma nota prudencial da Igreja medieval, com a qual muitos identificam uma certa tradição, era a de indicar, ao lado da Escritura e dos Padres, também uma regula fidei, da qual, porém, ela relutava em definir o conteúdo específico, sem prejuízo da fé na cristologia calcedônica (cf. os estudos de Jean Leclercq sobre a cristologia na Idade Média monástica), pelo simples fato de que cada Igreja, por ser particular, especialmente em uma estrutura sinodal como a da Alta Idade Média (cf. o estudo de Yves Congar sobre a eclesiologia da Alta Idade Média, de 1968), deveria responder, de vez em quando, às problemáticas que diziam respeito àquele povo de Deus específico.
Para tornar a ideia um pouco mais simples, mas certamente não menos controversa, houve a tentativa do dominicano Yves Congar de falar de Tradição e Tradições, restituindo ao seu leitor a imagem de uma Igreja que, como um corpo vivo, assume as características específicas da latitude em que nasce, cresce e se enraíza, sem, por isso, perder qualquer traço específico do ser pessoa ou do ser Igreja (a dimensão da missão pôs novamente em discussão muitas das certezas da Igreja europeia).
Mas, com toda a probabilidade, a theologia perennis, da qual depende também uma certa visão da tradição, afunda as suas raízes em um equívoco nascido com a recuperação tridentina da abordagem teológica de Gregório VII e Inocêncio III; esse equívoco nasce no seio de uma Igreja, a dos renascimentos carolíngio, otoniano e gregoriano, que confunde unidade e uniformitas, esta última, garantia de univocidade que deveria ditar as condições de pertença à Igreja.
É exemplificativa desse processo a troca de cartas entre Anselmo de Cantuária e Warlam, bispo de Naumburg: este último lamentava-se com Anselmo pelo fato de que, “sobre os sacramentos da Igreja, um leva em consideração a Palestina, outro, a Armênia, outro, a nossa [liturgia] romana e a Gália Tripartida, até mesmo o mistério do corpo do Senhor é considerado de forma diferente pela [liturgia] romana, pela galicana e de forma muito diferente pela nossa Germânia”.
Anselmo defende a diversidade na administração dos sacramentos, antepondo a unidade à uniformidade: “Vocês se lamentam dos sacramentos da Igreja, já que eles não são celebrados em toda a parte de um único modo, mas são administrados de modos diferentes em lugares diferentes. Certamente, se, em toda a Igreja, eles fossem celebrados de um único modo e concordemente, seria algo bom e louvável. Mas, já que são muitas as diversidades, que não diferem por substância do sacramento, nem pelo seu poder, ou pela fé; e nem se podem reunir todas em um único costume: considero, em vez disso, que elas devem ser toleradas concordemente na paz, em vez de condená-las em desacordo, com escândalo. De fato, dos santos Padres, temos que, se se conserva a unidade da caridade na fé católica, um costume diferente não se opõe a nada. Se, depois, pergunta-se onde nasceu essa variedade de costumes: não me refiro a nada mais do que as diferenças de sensibilidades humanas, que, embora não discordem em realidade e poder da coisa, no entanto, não concordam em atitude e decoro ao administrá-los. Na realidade, o que alguém julga como mais apropriado, outro geralmente o considera menos adequado, mas também não considero que o fato de não concordar em tais diversidades desvie da verdade da própria realidade”.
Se, por sensibilidades humanas, entendermos as culturas que o anúncio do Evangelho encontra e as modalidades em que o rito restitui e organiza a fé dos crentes “per ritus et preces”, então esse processo nunca poderá se dizer concluído, mudando as sociedades e reorganizando-se em torno de linguagens novas e, muitas vezes, capazes de surpreender.
São magistrais as últimas frases de Anselmo e remetem a Igreja a um princípio de unidade que supera o plano da ideia: pode-se até não concordar com um certo costume por ser distante da sensibilidade de uma certa cultura, mas nem por isso uma Igreja deve se sentir dividida de outra experiência eclesial quando, “per ritus et preces”, embora de modo diferente, faz-se experiência da mesma fé.
Para Anselmo, assim como com para boa parte dos teólogos medievais, dialéticos ou não, os sacramentos são um instrumento para que a Igreja possa conduzir os seus fiéis ao “sábado eterno” e, por isso, devem comunicar, em todos os sentidos e com todos os sentidos, o fato de ser nova criatura. Tudo isso apenas no século XI.
Pergunto-me, então, como viver a Tradição, sinal de unidade, mais do que pensá-la e impô-la como garantia de uniformidade.
Pareceu-me útil recorrer a um estranho tempo verbal, um “tempo não definido”, capaz de tornar plásticas a Igreja e a tradição, não para assumir formas sempre novas, mas sim para aderir ao tempo em que vive, para lhes conferir uma certa contemporaneidade e ser, assim, interpretável e traduzível; pensei em um tempo da narração: o aoristo.
Para quem não pratica a língua grega, o que não é matéria de pecado, o aoristo é um tempo verbal que tem a estranha característica de se dizer um “tempo não definido”, mas não exclusivo da nobre tradição helênica, porque, como toda realidade que tem uma vida, não pode se dizer propriedade exclusiva de uma única cultura.
O aoristo é aquele “entretempo” que permite o desdobramento de uma narração: abre o passado ao presente, entregando uma ação ao seu sentido futuro. Mas a característica principal é a de se colocar fora da tradicional contraposição entre um aspecto imperfectivo do verbo, que torna uma testemunha mais um cronista da ação que se desenrola debaixo dos seus olhos, e o perfectivo, que insiste no fato de que a ação seja vista como já realizada, ou seja, a testemunha de um processo, pelo qual o fato é conservado em um tempo e em um espaço distantes da vida.
A Igreja, ao contrário, não pode se identificar com um cronista, fora da ação, distante do campo de jogo, nem pode se colocar com a atitude da testemunha capaz apenas de recordações, mas, ao contrário, coloca-se como narradora: ela não é o relato que narra, nem o autor desse relato, é a voz que traduz em vida a obra que o autor entrega ao seu público. Isso pode acontecer quando um papa canoniza um linguista.
1. J. Moltmann. Esperienze di pensiero teologico. Vie e forme della teologia cristiana (BTC 115), Bréscia 2001, p. 63.
2. A. Agnolin, “Grammatica dell’evangelizzazione e catechesi della lingua indigena. Mesoamerica e Brasile: XVI-XVII secolo. Traduzione come conversione. Le lingue generali, il ‘Greco della Terra’ e l’invenzione del Tupì”. Pratiche sacramentali tra vecchio e Nuovi Mondi, M. T. Fattori (org.), Cristianesimo nella Storia, 31 (2010) 2, 681-742.
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Quando um papa canoniza um linguista. Artigo de Ubaldo Cortoni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU