Seca potencializa incêndios florestais na Amazônia. Entrevista especial com Ane Alencar

“Como a seca gerada no El Niño tem um período que coincide com a seca da Amazônia, que é o mesmo período de queimadas e desmatamento, o El Niño acaba potencializando a ocorrência de incêndios causados pelo fogo que escapa das queimadas de desmatamento e manejo de pastagens”, diz a geógrafa

Foto: Juliana Pesqueira | Amazônia Real

Por: Patricia Fachin | 09 Novembro 2023

“A seca severa que a Amazônia vem enfrentando é resultado de um conjunto de fatores, incluindo fenômenos climáticos como o El Niño e o aquecimento das águas do Atlântico Norte, potencializados pelo aquecimento global”, explica Ane Alencar ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU em entrevista por e-mail.

Além da seca, outro fenômeno preocupante na região amazônica são os incêndios florestais recorrentes, agravados pela condição climática. De acordo com Ane Alencar, nas últimas três décadas “as florestas estão cada vez mais impactadas pelo fogo. Os impactos dessa ocorrência e recorrência afetam a função das florestas de removerem carbono da atmosfera”, relata. Entre os efeitos dos incêndios, menciona, “as florestas degradadas passam a ser uma fonte importante de emissões de gases do efeito estufa, que favorecem o aquecimento global e causam as mudanças climáticas”.

Ane Alencar (Foto: Arquivo pessoal)

Ane Alencar é graduada em Geografia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre em Sensoriamento Remoto e Sistema de informação Geográfica pela Universidade de Boston e doutora em Recursos Florestais e Conservação pela Universidade da Flórida. Seu principal foco de pesquisa tem sido entender os impactos das mudanças climáticas e da fragmentação florestal causada pelo desmatamento na ocorrência e aumento dos incêndios florestais na Amazônia brasileira. Ela coordena as iniciativas do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) no desenvolvimento de sistemas de monitoramento de estoque e perda de carbono florestal e monitoramento do desmatamento para apoiar o desenvolvimento de projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal (REDD).

Confira a entrevista.

IHU – Cientificamente, como se explica a atual seca na Amazônia? Qual a correlação entre o El Niño, os incêndios e queimadas, o desmatamento e a seca na região?

Ane Alencar – A seca severa que a Amazônia vem enfrentando resulta de um conjunto de fatores, incluindo fenômenos climáticos como o El Niño e o aquecimento das águas do Atlântico Norte, potencializados pelo aquecimento global. Por conta do aquecimento da superfície desses oceanos há muita geração de tempestades, o que acaba mobilizando uma parte da umidade que entraria na região nessas tempestades, seja na costa leste da América Central e do Sul, no caso do El Niño, seja no Atlântico, no caso da Atlantic Multidecadal Oscilation (AMO).

Como a seca gerada no El Niño tem um período que coincide com a seca da Amazônia, que é o mesmo período de queimadas e desmatamento, o El Niño acaba potencializando a ocorrência de incêndios causados pelo fogo que escapa das queimadas de desmatamento e manejo de pastagens.

IHU – Em que aspectos essa seca se diferencia de outras que já ocorreram na floresta amazônica? Quais são seus principais efeitos e impactos socioambientais? Já é possível dimensionar o real impacto desta seca para a população da região?

Ane Alencar – Parece que pela primeira vez esses dois fenômenos climáticos (El Niño e AMO) têm ocorrido de forma muito forte no mesmo período. Isso tem potencializado todo o efeito da seca e seus impactos, como a mortandade de espécies aquáticas pelas altas temperaturas da água dos rios e lagos, a mortalidade em larga escala das árvores, devido à seca extrema, aos próprios incêndios florestais e à fumaça, todos esses causando impactos importantes à biodiversidade e aos estoques de carbono.

Entretanto, esses efeitos causam também impactos socioeconômicos importantes, como a falta de mobilidade por conta dos rios muito baixos. A péssima qualidade da água afeta a disponibilidade de alimentos às comunidades ribeirinhas e o comércio de sua produção econômica. Também tem a questão da saúde, com péssimas condições sanitárias, calor intenso e fumaça, além de vários prejuízos decorrentes da perda por incêndios e estrago de cargas, interrupção de energia, entre outros.

IHU – Que áreas centrais e vitais da floresta foram e estão sendo prejudicadas por esta seca?

Ane Alencar – As áreas mais afetadas têm sido o Sudoeste da Amazônia e a região da calha do rio Amazonas, no Amazonas e Pará. Também têm sido identificados efeitos da seca em Roraima e no Amapá.

IHU – Pesquisadores destacam a dificuldade de recuperação de algumas áreas ambientais devido à seca e às queimadas, como zonas de várzea e igapó. Como essas zonas foram impactadas pela seca e qual é o efeito ecossistêmico deste impacto?

Ane Alencar – Esse impacto é muito severo e pode demorar muito tempo para essas áreas com vegetação dependente de condições úmidas se recuperarem. No caso dessas áreas que sofreram com incêndios, a situação fica ainda pior, pois são dois distúrbios sinérgicos que vão interferir nesse ecossistema que, como falei anteriormente, necessita de umidade para se estabelecer.

IHU – Segundo a Defesa Civil, o estado amazonense encontra-se em situação de emergência ambiental em 55 dos 62 municípios desde 30 de setembro. Como você caracteriza esse estado?

Ane Alencar – Vejo que o estado do Amazonas tem sido muito impactado, principalmente porque os rios representam as principais vias de transporte no estado e a seca tem sido cruel com os rios.

IHU – Por que a região norte da Amazônia é a mais afetada nesta seca? Quais são as peculiaridades da região em relação a outros pontos da floresta?

Ane Alencar – Na realidade, a região da Caatinga também tem sido bastante afetada pela seca, mas na Amazônia isso choca mais, pois a região não está acostumada com o nível de secura que temos visto.

IHU – O que são “cicatrizes do fogo”, observadas a partir da plataforma MapBiomas Fogo e como elas têm evoluído e se disseminado com o passar do tempo?

Ane Alencar – Cicatrizes de fogo é o nome que damos para as áreas queimadas mapeadas nas imagens de satélite. Apesar de toda essa preocupação com a situação do Amazonas e do Pará em relação ao fogo e a fumaça, no geral a área queimada esse ano tem sido menor que a do ano passado. Isso porque o desmatamento diminuiu, o que reduz o potencial de mais incêndios florestais.

IHU – Quais são os problemas do uso do fogo na Amazônia? Como essa prática tem sido adotada na região? Como a prática das queimadas tem alterado a floresta?

Ane Alencar – O fogo na Amazônia é prioritariamente utilizado para finalizar o processo de desmatamento e para limpeza de pastagens mal manejadas. Esses dois tipos de fogo também são as principais fontes dos incêndios florestais. Então, para reduzir os incêndios, é preciso reduzir ao máximo o desmatamento e o uso do fogo na pecuária. Isso vai evitar que cada vez mais florestas sejam impactadas por incêndios recorrentes.

IHU – Nos últimos 25 anos, a senhora tem estudado os incêndios florestais na Amazônia. O que é possível perceber ao longo de duas décadas em relação a esse fenômeno e como eles contribuem para a ocorrência de eventos extremos, seja na região amazônica, seja no restante do país ou em outros lugares do mundo?

Ane Alencar – Infelizmente, nessas quase três décadas estudando os incêndios florestais na região, tenho percebido que as florestas estão cada vez mais impactadas pelo fogo. Os impactos dessa ocorrência e recorrência afetam a função das florestas de removerem carbono da atmosfera. As florestas degradadas passam a ser uma fonte importante de emissões de gases do efeito estufa, que favorecem o aquecimento global e causam as mudanças climáticas.

IHU – Que tipo de políticas são necessárias para enfrentar os efeitos dos extremos na Amazônia, especialmente as secas, no atual contexto de mudanças climáticas?

Ane Alencar – Hoje, sabemos quando uma seca grave vai acontecer. Podemos, de certa forma, prever os locais mais afetados com alguma antecedência. Então, é preciso pensar nas populações mais afetadas e como desenvolver um plano de contingência para tirá-la dessa situação, pelo menos até que o clima vire. Recursos para esse planejamento e uma reserva financeira para apoiar a implementação desses planos, que de uma certa forma precisam ser estaduais e se puderem, municipais, é uma forma de amenizar a situação. Outra forma passa pela redução do uso do fogo em períodos como esse.

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