Por: Vitor Necchi | 23 Janeiro 2018
A professora de Filosofia Maria Isabel Limongi recentemente gravou um vídeo em que registrava sua preocupação com a democracia por conta da crise enfrentada pelo país. Nesta entrevista, concedida por e-mail à IHU On-Line, ela explica sua apreensão: "O Estado brasileiro sempre foi capenga, em função do seu caráter fortemente exclusivo: ele simplesmente não existe para uma parcela da população – uma população que é sistematicamente marginalizada, criminalizada, encarcerada e morta pelo Estado, uma população tratada como inimiga, que está fora", afirma. "Um Estado assim é um Estado fraco, porque gerador de violência."
Na avaliação de Limongi, "o Estado brasileiro está sendo atacado em seus princípios", e o foco da crise é o Judiciário, “que deixa escancarado para a sociedade que não está nem aí para os princípios básicos da jurisprudência e da imparcialidade, que age politicamente e que não se preocupa sequer com tentar regular, evitar, controlar essa tendência em suas diversas instâncias”.
Se a sentença de prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva for confirmada no julgamento marcado para o dia 24 de janeiro e ele ficar impedido de concorrer nas próximas eleições, "este será não apenas um episódio a mais na crise do Estado da qual venho falando, como será a sua consumação", afirma Limongi. Ela lembra que "a democracia moderna nasceu como uma forma de Estado, e a crise do Estado é uma crise da democracia". No seu entendimento, se a condenação de Lula for confirmada, "a democracia entra na UTI".

Maria Isabel Limongi
Foto: Reprodução YouTube
Maria Isabel Limongi é doutora, mestre e graduada em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP, onde também realizou estágio pós-doutoral. É professora da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que análise a senhora faz da atual conjuntura política brasileira?
Maria Isabel Limongi – Estamos vivendo uma crise de Estado. O Estado brasileiro sempre foi capenga, em função do seu caráter fortemente exclusivo: ele simplesmente não existe para uma parcela da população – uma população que é sistematicamente marginalizada, criminalizada, encarcerada e morta pelo Estado, uma população tratada como inimiga, que está fora. Um Estado assim é um Estado fraco, porque gerador de violência. O Estado brasileiro sempre foi capenga, em função do seu caráter fortemente exclusivo: ele simplesmente não existe para uma parcela da população.
Mas, nesse momento, o Estado brasileiro está sendo atacado em seus princípios. O foco da crise me parece ser o Judiciário: um Judiciário que deixa escancarado para a sociedade que não está nem aí para os princípios básicos da jurisprudência e da imparcialidade, que age politicamente e que não se preocupa sequer com tentar regular, evitar, controlar essa tendência em suas diversas instâncias. Um dos papéis do Judiciário é regular o jogo político, mas o nosso Judiciário está fazendo o contrário: está entrando de sola nesse jogo e o desregulando inteiramente.
Não quero dizer que a crise se resume a uma crise de Estado, ela tem a ver com os afetos políticos, como têm gostado de dizer ultimamente os nossos filósofos políticos. Mas é uma crise que se torna aguda na medida em que ela se configura como uma crise do Estado, quando este não consegue redirecionar e regular os afetos. É, portanto, para o Estado que temos que nos voltar, para tentar salvá-lo. E isso passa pelo enquadramento do Judiciário.
IHU On-Line – A senhora divulgou recentemente um vídeo no qual registra sua preocupação com a democracia. O que a motivou e quais as suas preocupações?
Maria Isabel Limongi – O que me motivou foi essa visão das coisas que acabo de expor. Uma colega minha e seu companheiro tinham descoberto a localização do escritório do Carlos Zucolotto – eu passo em frente todo dia. O nome do Zucolotto, amigo íntimo de Sérgio Moro, ex-sócio da sua mulher, está ligado a uma série de evidências de um comportamento anômalo do Judiciário no caso do julgamento de Lula. Zucolotto foi citado pelo ex-advogado da Odebrecht, Rodrigo Tacla Durán, na CPI da JBS como estando envolvido em um esquema de negociações de vantagens em torno das delações premiadas. Ele apresentou mensagens de celular corroborando suas acusações, mas isso não ensejou nenhuma investigação. A mãe de Zucolotto foi absolvida em primeira instância por um juiz do TRF4 [Tribunal Regional Federal da 4ª Região] em um processo de fraude fiscal, sob a alegação de que o imóvel, suposto objeto da fraude, estava registrado em seu nome. Ou seja, nesse caso, o que conta é em nome de quem o imóvel está registrado, em detrimento dos indícios da fraude. Mas, se o mesmo TRF4 aceitar que, no caso de Lula, não é o registro que define a posse do imóvel, fica configurada uma incongruência. E a isso se soma a então recente sentença da juíza Luciana Correa, de Brasília, reconhecendo o imóvel, atribuído a Lula na sentença de Moro, como um bem da OAS e autorizando a sua penhora para saldar dívidas da empresa. Ou seja, o que vale para um não vale para outro; o que é aceito em um processo é recusado em outro.
O Judiciário não pode funcionar assim. A questão da jurisprudência é fundamental ao exercício do direito. Aliás, jurisprudência era o nome que se dava ao que a partir do século 19 passamos a denominar Direito. Um Judiciário que não está nem aí para a jurisprudência é um Judiciário que não quer estabelecer a justiça e aplicar o direito. Mas aí, um dos principais pilares do Estado ruiu. Nós queríamos usar o Zucolotto como um emblema dessa situação. Era uma forma de fazer alguma coisa, de não ficar de braços cruzados diante de uma conjuntura cada vez mais alarmante.
IHU On-Line – O julgamento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para além do processo jurídico, tem componentes políticos? Se sim, como isso se expressa?
Maria Isabel Limongi – Tem componentes políticos evidentes, que se expressam nestas e outras mil anomalias envolvendo esse julgamento, mas sobretudo pelo modo como o juiz Sergio Moro permitiu associar o seu nome ao processo de impeachment da presidenta Dilma. Circularam panfletos com a foto dele fazendo cara de Superman e convocando as pessoas para irem às ruas contra ela! A prisão coercitiva de Lula, com todo o arsenal midiático que a envolveu, escancarou, para quem ainda tinha dúvidas àquela altura, quais as intenções da Operação Lava Jato – não a de combater a corrupção, mas a de usar essa bandeira para tirar o PT do governo.
IHU On-Line – Quais as consequências do julgamento para a democracia?
Maria Isabel Limongi – Se a sentença for confirmada e Lula ficar fora das eleições, este será não apenas um episódio a mais na crise do Estado da qual venho falando, como será a sua consumação. E como a democracia moderna nasceu como uma forma de Estado, e a crise do Estado é uma crise da democracia, se o desfecho do julgamento for esse, a democracia entra na UTI.
IHU On-Line – Que interesses estão em jogo nos acontecimentos relacionados ao julgamento do recurso da defesa de Lula contra a condenação que ele recebeu em primeira instância (nove anos e seis meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro)?
Maria Isabel Limongi – São os mesmos interesses que promoveram o golpe parlamentar contra a Dilma. Há um interesse claro em deixar Lula fora do páreo. E se é assim, é porque se quer evitar a todo custo o tipo de política que o PT vinha implementando. Ao que tudo indica, não se quer a diminuição da desigualdade. Não se quer resolver aquele primeiro problema a que aludi de início: não se quer corrigir o caráter exclusivo do Estado brasileiro. São paixões muito fortes e arraigadas as que estão aí envolvidas e que resistem com unhas e dentes a todo esforço de inclusão. O PT vinha trabalhando em várias frentes no sentido da inclusão: a retirada da miséria, a ampliação de direitos, do acesso à educação, o incremento das formas de participação. A continuar naquele processo, rapidamente o Brasil assumiria uma outra cara. Mas, para isso, há forte resistência.
IHU On-Line – Se a condenação de Lula for mantida no julgamento da próxima semana, quais as implicações políticas?
Maria Isabel Limongi – Os eleitores de Lula terão que encontrar outras vias pelas quais fazer valer seus interesses e aspirações. E essas vias não necessariamente serão institucionais, já que estas se fecham mais e mais e de forma cada vez mais evidente. A ver. Mas, o que me parece muito importante é fazer política a partir daí, unindo forças em torno da bandeira da reconstituição da normalidade democrática. Acho que a condenação de Lula terá essa força política.
IHU On-Line – Quais são os cenários possíveis para a próxima eleição presidencial?
Maria Isabel Limongi – Com Lula no páreo, ele tem forte chances de vencer as eleições. O que não será, contudo, uma solução para o problema que se criou, porque muito dificilmente ele terá condições de governo. As forças do golpe continuarão atuantes.
Com Lula fora do páreo, é ainda possível que ele consiga transferir seus votos. Para isso, inclusive, é importante toda essa mobilização no sentido de denunciar a crise do Estado que se torna ainda mais aguda com o episódio de sua provável condenação em segunda instância, de modo que, em torno de Lula, possam se aglutinar as forças democráticas. Só ele tem condições políticas de fazer isso. Se não for com ele, tem que ser a partir dele, a partir do reconhecimento do direito da sua candidatura, pela reconstrução do Estado democrático. É essa bandeira que Lula agora simboliza, o que é muito mais do que uma plataforma de governo.
IHU On-Line – O que poderia se esperar de um eventual terceiro mandato de Lula como presidente?
Maria Isabel Limongi – A reconstrução do Estado democrático e o seu fortalecimento, o que passa pela retomada e ampliação do processo de inclusão que vínhamos trilhando, por uma reforma da mídia e pelo controle do Judiciário.
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O ataque ao Estado brasileiro. O foco da crise é o judiciário. Entrevista especial com Maria Isabel Limongi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU