O Deus-menino retirante neste mundo severino

Por: Patricia Fachin e Wagner Fernandes de Azevedo | 24 Dezembro 2021

 

Na edição comemorativa dos 60 anos da obra Morte e vida Severina, um auto de Natal pernambucano do escritor e poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, publicada em 2016 pela editora Alfaguara, o crítico literário e ensaísta Antonio Carlos Secchin comentou as várias versões de um mesmo poeta:

 

"Vários poetas podem habitar o mesmo poeta. Às vezes, em pacífica e tácita convivência, outras em aberto conflito. A poesia é regida pelos signos da mudança, rejeitando o conformismo que se torna sinônimo de sua morte; por isso, não surpreende que, ao longo da existência, o artista vá configurando e reconfigurando sucessivas versões de si mesmo, sem que em nenhuma delas resida sua verdade".

 


Capa da edição comemorativa de Morte e Vida Severina (Foto: Reprodução)

 

Assim como há várias versões de um mesmo poeta, há várias versões de quem foi Jesus. Não há relato preciso sobre a vida, a história e o ser de Jesus Cristo. As narrativas em torno do projeto e missão, nascimento, morte e ressurreição condizem com a palavra dos evangelistas e apóstolos. Em epístolas de paixão, testemunhais ou históricas, a experiência jesucristiânica habita entre a promessa (verbo) e a realidade (carne), com nuances dos próprios narradores. No entanto, a universalidade do dual sentimento de sofrimento e esperança constitui cada auto de Natal escrito nos últimos milênios.

 

A peculiaridade da encarnação de Cristo encena-se variadamente conforme o espaço-tempo, relatando-se desde uma gruta a um estábulo, sem testemunhas cientes e animais contemplativos, assim como a inclusão cultural do retirante, do refugiado, do cientista, da ficção futurística às identidades locais. O nascimento de Cristo faz grandes teólogos, artistas clássicos ou de pequenas comunidades andinas, poetas regionais ou milenares, expressarem aquilo que entendem como a aliança de Deus com a Criação.

 

 

Quem é Jesus?

 

"Quem é Jesus?" é uma questão que nos interpela a cada Natal e em diferentes momentos da vida cotidiana, especialmente naqueles de dor, angústia e sofrimento, como o vivido por inúmeras famílias ao longo dos últimos dois anos de pandemia e agravamento da crise social.

 

Em busca de respostas para essa pergunta, a Revista IHU On-Line N. 248, publicada por ocasião do Natal em 2007, endereçou-a a seus entrevistados. Quando convidado pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, Joseph Moingt, teólogo e jesuíta francês, de pronto reagiu: "Hesitei longamente em responder a este questionário. Se finalmente aceito fazê-lo, será simplesmente para deixar claro como eu recebo e sinto essas questões, como me situo em relação a elas, mas absolutamente não para lhes dar respostas explícitas e bem argumentadas". E acrescentou: "Eu renuncio, pois, formalmente a inscrever minhas reflexões no quadro da 'pesquisa científica contemporânea sobre Jesus Cristo'". A justificativa, explicou, é que "a reflexão teológica necessita desenvolver-se num longo discurso, da mesma forma como a reflexão filosófica: ela não pode ser posta em fórmulas". A teologia, pontuou, "deve, sobretudo, mostrar que o amor trinitário é aquele pelo qual Deus em si é essencialmente Deus-para-nós, e é este o ponto no qual a teologia trinitária está ligada ao mistério do Cristo. Se este ponto é inaceitável para as outras religiões, então não é sobre o ser uno de Deus, nem sobre o ser do Verbo encarnado que o diálogo poderá conectar-se, porém sobre o humanismo evangélico, o mais apropriado para desarmar as violências das quais as grandes religiões são portadoras. O Evangelho traz à fé trinitária este testemunho de que Deus é acolhido pelo outro: é desta verdade que o mundo mais necessita".

 

 

 

Optando pelo "estilo familiar de uma carta, de uma conversação", ele finalmente aceitou responder à questão: "No final de tantos anos de estudos, sou perguntado sobre quem é Jesus. Jesus. Eu não arriscaria dizer 'que ele esteve' no seu passado. Deixo este cuidado aos historiadores e remeto às milhares de páginas de John P. Meier (A marginal Jew), que responderão com extrema prudência e modéstia. No máximo, eu diria o 'que ele é para mim': o homem (pois trata-se de Jesus) nas pegadas de quem eu oriento minha vida para Deus e em quem eu procuro a revelação de Deus".

 

O teólogo Felix Wilfred, que há anos acompanha o desenvolvimento do cristianismo no continente asiático, também respondeu à questão, fortemente interpelado pela realidade que o circunda: "Jesus é alguém tão fascinantemente humano que não se pode deixar de amá-lo. Ele pertence a toda a humanidade. Ele não é o monopólio de algum grupo, comunidade ou religião. Nele aprendemos a gramática do que é ser humano. (...) Milhões de asiáticos marginalizados e vitimados encontraram na mensagem de Jesus nova dignidade, aceitação e uma fonte de libertação das forças opressivas, tanto tradicionais como modernas. Por exemplo, os 150 milhões de Dalits (os assim chamados 'Intocáveis') da Índia encontram a vida e a mensagem de Jesus vibrando com sua própria vida, embora nem todos se tornem cristãos. Nas casas de muitos cristãos intocáveis empobrecidos, a Bíblia é o único tesouro. Eles a tratam com carinho, a leem e deixam suas vidas serem por ela iluminadas. De fato, como é bem conhecido da história missionária, por toda a Ásia são os segmentos mais pobres e marginalizados da sociedade que abraçaram a fé cristã".

 

 

 

O teólogo alemão Peter Hünermann destacou o aspecto humano e divino de Jesus em sua resposta. "Jesus de Nazaré encontrou-se com os homens de sua época e ele se encontra com os homens de hoje como alguém que é inteiramente preenchido por Deus, e é um com Deus, seu Pai. Ele se encontra com as pessoas como alguém que está totalmente aberto para os humanos, sendo um com eles. Os Evangelhos descrevem isto de maneira explícita. Sua unidade com Deus manifesta-se em sua oração (Lucas, o Evangelista, fala em cada capítulo de Jesus orando). Jesus vive do cumprimento da vontade de Deus: 'Meu alimento é fazer a vontade de Deus' (João 4, 34). Ele busca sua honra (João 8, 49). Ele anuncia o seu Reino: 'Completaram-se os tempos, está próximo o Reino de Deus, convertei-vos e crede no Evangelho' (Marcos 1, 15). Jesus vive a unidade com os homens, principalmente com aqueles que estão ameaçados e em perigo em sua humanidade, vive com os pobres, os enfermos, os socialmente marginalizados, as crianças. Assim, Jesus pode dizer aos discípulos de João Batista: 'Ide e anunciai a João o que vistes e ouvistes. Cegos veem, coxos andam, leprosos são curados, surdos ouvem, mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Nova (Lucas 7, 22)”.

 


Menino brincando com a espuma, em Moma, Nampula, Moçambique. Foto: Victória Holzbach

 

Jesus de Nazaré, respondeu o teólogo Claude Geffré, "é proclamado o próprio Filho de Deus pela primeira comunidade cristã, a partir de sua vida, sua morte e sua ressurreição. Em função de minha reflexão teológica, eu realçaria, sobretudo, dois aspectos: o realismo da encarnação e a morte de Jesus como manifestação do amor de Deus. Em Jesus, Deus não se faz somente corpo, mas carne: 'O Verbo se fez carne' (João 1,14) significa que ele assumiu um corpo de carne, um corpo terrestre, 'nascido de uma mulher' (Gálatas 4,4), enquanto ele permanece sendo Deus em sua Alteridade transcendente. A maior lição da encarnação é, ao mesmo tempo, a afirmação da infinita vulnerabilidade de Deus e da eminente dignidade do corpo humano. Não se pode dissociar encarnação e ressurreição. A 'descida' na carne não tem outra finalidade senão transformá-la, transfigurá-la para dar-lhe o poder de fazer explodir a vida das próprias profundezas da morte. De outra parte, a morte de Jesus é menos o sacrifício do Filho único pela redenção do pecado dos homens do que a manifestação do amor infinito de Deus, que se faz solidário do sofrimento e da morte de todo ser humano. Neste sentido, a cruz é a Boa Nova de um Deus diferente do Deus 'bem conhecido' do teísmo filosófico e teológico".

 

 

A edição 336 da Revista IHU On-Line, intitulada Jesus de Nazaré. Humanamente divino e divinamente humano, também indagou os entrevistados sobre quem é Jesus. O teólogo Andrés Torres Queiruga resumiu: "Aquele que conseguiu revelar e viver para Deus como amor infinito e perdão incondicional, preocupado apenas com nosso bem e nossa salvação, convocando-nos a colaborar com Ele para que isto seja possível para todos. Não é possível pensar uma meta maior e sempre poderemos estar caminhando até ela".

 

A atração que ainda hoje é provocada pela pessoa de Jesus, explicou, é decorrente de seu mistério. "Em seu mistério se revela nosso mistério; olhando Ele, reconhecemos o melhor de nós mesmos enquanto criaturas criadas, sustentadas e habitadas por Deus, que nos chama à confiança n’Ele e na radical fraternidade com as outras pessoas. Por isso, a melhor maneira de compreendê-lo é reconhecer que nele se realiza o melhor de nós, aquilo a que aspiramos sem alcançar totalmente. Por isso, Rahner dizia que a Cristologia é a culminação da Antropologia (eu concreto: a pessoa vista desde a criação por amor). Definitivamente, Jesus é 'igual a nós, mas diferente; diferente, mas igual'. Por algum motivo, nos convida a orar como ele: 'Pai nosso'”.

 

Naquela edição, o biblista Francisco Orofino explicou duas frases sobre a divindade e humanidade de Jesus, que nos desafiam a serem vividas na realidade concreta:

 

“Jesus é humano, muito humano, ‘tão humano como só Deus pode ser humano’” (Papa Leão Magno); e “Ele veio nos mostrar o caminho para quem quer ser divino: antes de tudo, ser profundamente humano!” (Fl 2,6-11).

 

Segundo ele, a partir dessas frases, podemos compreender que Jesus veio nos mostrar que podemos nos tornar divinos, mas isso exige de nós, antes de tudo, uma profunda humanização. "Estas frases querem nos ajudar a entender o mistério da Encarnação de Jesus. Desde a revelação de Deus a Moisés no Sinai (Ex 3,7), fica claro que na proposta religiosa judaico-cristã não é o ser humano que se eleva, mas é Deus que desce. E esta descida de Deus, que atinge seu ponto máximo na encarnação de Jesus, é provocada pelo grito do pobre, do marginalizado, do excluído, do escravizado. A mais antiga reflexão que temos sobre a encarnação de Jesus é o hino que Paulo transcreve na carta aos filipenses. Paulo constata que o movimento natural dos seres humanos é querer ascender, atingir o topo, suplantando todos ao redor. Ao apresentar o hino, Paulo lembra que Jesus estava no topo. Era de condição divina. Mas não se apega a esta posição e começa a descer. E esta descida só acaba na execração pública da crucificação. Mas baixo do que isso, impossível. Mas é exatamente quando Jesus atinge este ponto máximo de humilhação que o Pai o exalta e o eleva. Ficam claros então os inúmeros paradoxos de Jesus: 'quem quiser ganhar a vida, vai perder... quem souber perder a vida por amor, vai ganhar...' (cf. Mc 8,35 e paralelos). Jesus veio mostrar que todos nós podemos nos tornar divinos. Mas o caminho de nossa divinização exige de nossa parte a mais profunda humanização. Temos que nos abrir para a convivência com os outros. Para Jesus, mais importante que o relacionamento com Deus é o relacionamento com as pessoas. Este deve ter sido um dos pontos centrais na pregação de Jesus. Assim registra de maneira radical a Primeira Carta de João: quem não ama seu irmão é assassino! (1 Jo 3,15)."

 

 

 

A humanidade de Jesus, destacou o teólogo jesuíta José Ignacio González Faus, nos leva à mensagem central: "a compreender a divindade não como poder, mas como amor. O balanço de todo o Novo Testamento foi a frase da primeira carta de João, 'Deus é Amor', e não 'Deus é poder'. E a chamada onipotência de Deus deve ser entendida como o poder débil do amor. (...) E quero acrescentar que isto tem consequências importantes: já no século II, Santo Ignacio de Antioquia, em uma de suas cartas, critica os que negavam que o messias veio 'na carne' (onde a palavra carne não tem só o sentido neutro de matéria, mas um sentido mais negativo de pouquidade humana). E a crítica que lhes faz é: precisamente por isso não se preocupam dos pobres, nem do órfão, nem da viúva, nem do amor aos irmãos... A Humanidade de Jesus nos força a buscar a Deus não em uma suposta 'verticalidade' abstrata, mas em uma horizontalidade transformada e agraciada pela presença de Deus nela. Com uma frase dita muitas vezes: Deus se encarnou para que não lhe buscássemos nas igrejas, mas nos irmãos. Se vamos, se devemos ir à Igreja, não é para encontrar a Ele, mas para buscar a luz, o calor e a força que nos permitam encontrá-lo nos irmãos".

 

Severinos

 

A "necessidade do outro para perenizar o que somos" foi expressa em versos pelo poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, conforme recordou a professora Nylcéa Pedra, em entrevista à Revista IHU On-Line N. 310, intitulada A secura do sertão nos versos de João Cabral de Melo Neto, publicada em 2009:

 

“Tecendo a manhã: Um galo sozinho não tece uma manhã:/ ele precisará sempre de outros galos./ De um que apanhe este grito que ele/ e o lance a outro; de um outro galo/ que apanhe o grito que um galo antes/ e o lance a outro; e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo,/ para que a manhã, desde uma teia tênue,/ se vá tecendo entre todos os galos.”

 

  

 

Membro da Academia Pernambucana de Letras e da Academia Brasileira de Letras, João Cabral de Melo Neto é autor do clássico Morte e Vida Severina, que narra o sofrimento e a saga de Severino, um migrante que atravessa a Caatinga, o Agreste e a Zona da Mata em busca de uma vida melhor na capital pernambucana:

 

O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

 

 

"Morte e vida... foi classificada pelo autor como um 'auto de Natal pernambucano', mas a transposição do mito de nascimento de Cristo ocorre, no poema, pela atenuação ou perda dos componentes laudatórios-religiosos do discurso cristão. Ainda assim, preservam-se ostensivos traços de convergência entre a 'matriz' da narrativa cristã e a apropriação que dela fez João Cabral. Em ambas, o pai da criança se chama José, é carpinteiro e morou na cidade de Nazaré; há também os vizinhos e seus presentes, que correspondem aos dos reis magos. Nessa releitura laica da chegada do menino-Deus, a esperança, embora precária, encontra-se no território humano: será pelo universo do trabalho que o recém-nascido poderá algum dia redimir-se", resumiu Secchin.

Morte e vida, segundo Thaís Toshimitsu, pesquisadora da produção artística de João Cabral de Melo Neto, expressa o desejo do autor de "configurar e incluir o Outro em sua poesia". Na edição 499 da Revista IHU On-Line, intitulada Hospitalidade - Desafio e Paradoxo. Por uma cidadania ativa e universal, publicada em 2016, ela esclareceu essa proposta: "Morte e vida realiza isso ao dar voz a Severino, sertanejo retirante, por meio da escolha de uma forma popular — o auto de Natal, contudo, pernambucano. Ponto de encontro entre a religiosidade cristã filtrada, no entanto, pela experiência popular local e a tradição ibérica herdada pela colonização. De certo modo, o auto perfaz um encontro entre os mundos culto e popular, apontando para uma linha de continuidade entre ambas no tempo, invertendo o ponto de vista da História".

 

 

A esperança que o novo desperta

 

A vida de Severino retratada por João Cabral de Melo Neto ainda é a de inúmero brasileiros que migram de um estado a outro em busca de melhores condições de vida, de moradia digna, de acesso a terra, em busca de trabalho para garantir a sobrevivência. É também a vida de milhares de refugiados que por razões econômicas, políticas e sociais - e mais recentemente por causa dos efeitos das mudanças climáticas - cruzam países em busca de um novo chão para recomeçarem, com a esperança que o novo desperta.

 


Refugiados (Foto: Reprodução | Arte: IHU)

 

A seca fez eu desertar da minha terra
Mas felizmente Deus agora se alembrou
De mandar chuva
Pr'esse sertão sofredor
Sertão das muié séria
Dos homens trabaidor

 

 

Para Thaís Toshimitsu, o poema serve como um instrumento de denúncia sobre as condições sociais da nossa época, que vão além das dificuldades vividas por nordestinos em relação ao problema da seca. "Embora o desejo hoje seja o de uma obra mais combativa, Morte e vida segue sendo um modelo ético e, por conta disso, estético. Sem dúvida alguma, a realidade de que o poema trata se mantém viva e o texto, atual, o que revela o caráter de modernização conservadora de nosso processo histórico sustentado pelo interesse de nossas elites. A atualidade, portanto, não reside no problema da seca. As grandes obras nordestinas desde os anos 1930, dentre elas destacada Vidas secas, trouxeram à tona a violência da exploração do trabalhador e das periferias no país. O resultado é a revelação da modernização da produção do campo e da cidade como ainda condenação das classes trabalhadoras, e esse caráter não apenas se conserva, como se adensou nos últimos meses, quando estamos assistindo a um dos maiores retrocessos, do ponto de vista das poucas conquistas trabalhistas, da história desse país", compara.

 

De acordo com ela, "na medida em que o aspecto cíclico da obra de Cabral aponta para a vida sempre capaz de nascer, aproximando o destino do homem pobre ao de Cristo, a negatividade da obra cai, e o tensionamento da trajetória de Severino se dilui. Mesmo que a nova vida seja uma repetição de todas as outras e os homens se vejam prisioneiros do ciclo infinito de miséria, há redenção no final. O oposto ocorre em Vidas Secas, onde o caráter cíclico da obra aponta para o aprisionamento dos homens pobres ausentes de consciência do sistema no qual sobrevivem".

 

Eli Brandão da Silva, professor da Universidade Estadual da Paraíba – UEPB e autor da tese intitulada "Nascimento de Jesus-Severino no auto de Natal pernambucano como revelação poético-teológica da esperança: hermenêutica transtexto-discursiva na ponte entre Teologia e Literatura", que também concedeu entrevista naquela edição, destacou como o auto de Natal Pernambucano de João Cabral de Melo Neto torna o nascimento do Cristo algo muito próximo e humano. O contexto social do nascimento de Severino, sublinha, "está marcado pela condição de miséria decorrente dos efeitos da seca, por um lado, e, por outro, decorrente da submissão dos pobres ao sistema de poder político e econômico do coronelismo, que prevalecia, por meio do qual oligarquias, representadas pela figura dos latifundiários senhores de engenhos, que concentravam o poder e a riqueza e dominavam o gado e as pessoas. Prevalecia, do ponto de vista religioso, um catolicismo popular, a serviço dos poderosos".

 

Descobrir o significado da Palavra 

 

Mais do que um represente regional da miséria e das mazelas sociais, argumenta, Severino é o modelo do drama humano vivido por milhares de pessoas em todo o globo, em busca de esperança e dias melhores. "Severino, mais do que um representante regional, pode representar também o drama humano, enquanto busca de vida, de esperança, neste caso, a resposta ao seu grito de morte e desespero não se reduz ao nascimento de mais um Severino. O menino nascido só se torna símbolo da esperança porque estamos num auto de Natal. A riqueza do simbolismo deste nascimento não advém da interpretação de figuras isoladas, mas pelo encadeamento das figuras de Maria, Zacarias, José e as outras que, alusivamente, nos remetem aos Evangelhos, nos apontam para Jesus. É revelação porque o sentido somente se desvenda por meio da análise e interpretação do palimpsesto. É poética porque se instaura uma conjunção simbólico-metafórica que potencializa a esperança por meio da alusão ao nascimento de Jesus, o que lhe confere a dimensão teológica".

 

 

Hoje, com o desenvolvimento de novas tecnologias e o surgimento de novas profissões e, particularmente, com a reconfiguração do mundo do trabalho, "já não há operários em algumas fábricas, já não há operários em vários setores da agricultura, mesmo no corte de cana. Nem o tratorista. Tudo automatizado, com equipamentos tratados com o cuidado que os boias-frias nunca receberam, tratados como descartáveis, baratos e substituíveis", observou o sociólogo José de Souza Martins em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU no início deste ano, ao analisar a crise sanitária e social no país. Essa mudança, contudo, não erradicou, pelo contrário, aumentou o número de pessoas no planeta que vivem na condição de Severino.

 

Os dados mais recentes indicam que 20 milhões de pessoas estão passando fome no país e o número de favelas dobrou em dez anos. “O Brasil está se tornando um país margeado por favelas. O que não podemos é chegar numa situação de não reversão, embora isso não esteja distante”, advertiu Edu Lyra, fundador do Instituto Gerando Falcões, ONG voltada à promoção social de crianças e adolescentes.

 

 

Diante da miséria que aumenta exponencialmente, crescem também as ações solidárias da sociedade civil para enfrentar essa realidade. Um exemplo é a luta por moradia digna que mobiliza moradores e instituições em várias regiões do país, como acontece nas ocupações de São Leopoldo, na região metropolitana de Porto Alegre, onde os moradores estão promovendo a Campanha "Natal sem Luz", a fim de terem acesso à energia elétrica. Com esperança e solidariedade, eles estão realizando as Caminhadas Natal Sem Luz, que acontecem às quartas-feiras à noite no mês de dezembro em diferentes ocupações para denunciar as mazelas a que são submetidos.

 


Reunião, em 2019, no local onde seria construído o galpão da Ocupação Steigleder, São Leopoldo, RS (Foto: ObservaSinos)

 

Horta comunitária na Ocupação Justo, São Leopoldo, RS (Foto: ObservaSinos)

 

 

 


O Natal...

Pe. Valdiran Santos

 

Oxente, Zé, o que vamo fazer?
Onde esse Menino vai nascer?
Valei-me Deus! Vai nascer na rua.
Noite fria, que vida dura e crua,
Nem a luz da lua brilha hoje pra ajudar.
Que triste, não tem cuscuz
Nem pão, nem água nem luz.
E agora?
Vai Zé, faz alguma coisa.

Fazer o quê, Maria?
Ninguém acolhe a gente.
Nem ateu nem crente quer ajudar nós.
Vamos se esconder do vento,
Naquela gruta fria, onde estão os animais.
Meu Deus, quanta agonia,
Longe de casa e dos parentes
No meio de carência e alegria,
Nasceu o Menino Jesus,
Filho de Maria.

 


(Foto: Reprodução)

 

Nestas quatro semanas que antecedem o Natal, mais uma vez, comentou Flávio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e é agente da Comissão Pastoral da Terra - CPT, somos "chamados a descobrir o segredo da Palavra e dos Sacramentos repetidos em diferentes estações da vida pessoal e coletiva. Na verdade, o que nunca deveria ser repetitivo é o nosso viver constelado de medos, desejos, dúvidas, incertezas, perguntas, desequilíbrios, vícios e limites, busca perene do sentido, esforço para entender e acolher os outros, compromisso de ler e interpretar os acontecimentos do mundo..."

 

Eu sua vivência particular das primeiras três semanas do Advento, compartilhou, dois momentos o impressionaram. O primeiro, disse, "foi o deserto". "O Espírito convoca João Batista para o deserto e certamente a exegese a que estou acostumado coloca uma questão fundamental: o deserto é periferia, longe do Templo e dos Palácios. Como disse, no passado dia 5 de dezembro, o Papa Francisco: 'A redenção não começa em Jerusalém, Atenas ou Roma, mas no deserto'. Mas algo novo baleia nos pensamentos: deserto é também física ausência da intervenção humana; é falta; é privação; é vazio: um vazio saudável que pode dar espaço ao Espírito; um vazio em que o 'e' e o 'nós' têm cada vez menos palavras. Um vazio onde o Espírito poderia dizer e inspirar profecias. Lembro então dessa aposta do deserto que se repete na história do Ocidente Cristão: os pais e as mães de Tebaide, os anacoretas que se dissociam da traição dos mártires perpetrado pela Igreja Constantiniana, e depois os eremitas desconhecidos até Tamanrasset de Charles de Foucauld, que já havia procurado respostas no não dito, do esconderijo de Jesus em Nazaré, antes da vida pública". E acrescentou: "E, inevitavelmente, não posso esquecer o 'Bem-vindo ao Deserto do Real′, de Slavoj Žižek, que nos fala das removidas ruínas e entulhos da civilização capitalista. Um novo deserto para desvendar e namorar com João Batista e Jesus de Nazaré. O deserto de uma humanidade fracassada, violenta e genocida".

 

O segundo momento, disse, foi o "sim de Maria de Nazaré ao arcanjo Gabriel: baleia novamente em pensamentos a certeza do íntimo de Maria, sem as palavras do 'eu', sem pecado, deserto absoluto, cheia de graça, humanidade em que o Espírito Santo pode dançar e cantar. Que este Natal confirme nossa fé na misericórdia materna de Deus. Com o desejo de que possamos criar um pouco de deserto no nosso íntimo, para podermos reconhecer Jesus nos abandonados e oprimidos no deserto do real".

 

E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida Severina.

 

Créditos das fotos da animação do topo, por ordem:


1. Jesus histórico | Cícero Moraes; 2. Criança brincando com a espuma em Moma, Moçambique | Victoria Holzbach; 3. Mulher moçambicana com seu filho | Victória Holzbach; 4. Jovem haitiano | Marcello Casal; 5. Representação de Jesus | Wikicommons; 6. Homem indiano | PxHere; 7. Menino Jesus de Praga | Wikicommons; 8. Menina síria | US National Archives & DVIDS - GetArchive; 9. Mulher uigure | Wikicommons; 10. Ícone de Jesus na tradição ortodoxa | Wikicommons; 11. Mulher indígena | Mídia Ninja; 12. Beduíno | Wikicommons; 13. Refugiados líbios no Mar Mediterrâneo | MiddleEast Mirror

 

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