Paolo Dall'Oglio: “Vou tornar-me árabe”

Paolo Dall'Oglio (Foto: Jesuítas Brasil)

16 Agosto 2021

 

No dia 29 de julho de 2013, o padre jesuíta Paolo Dall'Oglio era sequestrado na Síria. Desde então, todas as pistas sobre ele foram perdidas. Oito anos depois, o eco de sua voz profética não se apaga - aliás, torna-se mais profundo. Settimana News recolhe aqui o testemunho pessoal do autor, jornalista, especialista em Vaticano, profundo conhecedor das figuras e da história do Médio Oriente contemporâneo e, em particular, da SíriaRiccardo Cristiano é o editor do livro Paolo Dall'Oglio. La profezia messa a tacere, San Paolo 2017. É vaticanista italiano e fundador da Associação de Amigos do Pe. Paolo Dall’Oglio.

O testemunho foi publicado por Settimana News, 14-08-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o texto.

 

Paolo Dall'Oglio. La profezia messa a tacere

 

Ainda hoje vítimas de discriminação odiosa, os cristãos que vivem no Oriente Médio têm o problema da aceitação da lógica da proteção. Vou me explicar: já que durante séculos a prática islâmica, não-corânica, tem mostrado que as comunidades pertencentes a outros monoteísmos devem ser protegidas por minorias - um sistema que antes era preferível ao ocidental, mas que hoje é inaceitável - muitos cristãos acabaram adequando-se a tal lógica.

 

Na aceitação resignada da proteção, se inseriram os interesses das hierarquias: Cevdet Pasha, citado por Bernard Lewis em sua importantíssima história do Oriente Médio, na época da tentativa de reforma otomana, constatava que um bispo ortodoxo apreciava aquela proteção que se fornecia, sim, aos cristãos depois aos muçulmanos, mas antes ainda aos judeus. No meio, havia certamente o exercício do poder eclesiástico sobre as comunidades, mas também a ideia de que os muçulmanos nunca poderiam mudar de atitude.

 

Todos podemos mudar

 

Mas aqueles que pensam que os outros não podem mudar, dificilmente estão abertos à mudança: talvez por isso muitos cristãos daquelas terras tenham permanecido substancialmente pré-conciliares.

 

Todos nós podemos mudar? O padre Paolo Dall'Oglio estava convencido disso.

 

Para possibilitar a mudança, empregava a teologia da boa vizinhança, dizendo que "os mosteiros cristãos na terra do Islã são a prova de que não há melhor proteção do que a boa vizinhança", justamente: era uma afirmação revolucionária para construir a cidadania comum na Síria, premissa indispensável para adquirir o olhar cósmico da fraternidade. Essa revolução teria libertado os muçulmanos do preconceito que vê os cristãos como a quinta coluna do Ocidente e libertado os cristãos do chamado preconceito do hotel, segundo o qual os países do Oriente Médio são como hotéis: se você não gostar, vá embora, porque é impossível mudá-los.

 

A teologia do Mediterrâneo - partilhada e invocada pelo Papa Francisco - surge, portanto, da necessidade constante de inovar que, para o Padre Paolo, é "a melhor forma de conservar" as tradições.

 

Como não sou teólogo - nem fui um dos amigos que acompanharam o Padre Paolo ao longo de sua longa jornada -, gostaria simplesmente de contar aqui como ele conseguiu me mudar.

 

Paolo não conseguiu de mudar o Oriente Médio porque a grande política internacional não quis e não quer que o Oriente Médio mude: os protestos em massa organizados pela Irmandade Muçulmana em Hamas e Homs para o monge cristão - Padre Paolo Dall'Oglio - expulso do regime sírio de Bashar Al-Assad em 2012, embora ofuscados por muitos, ensinaram que a mudança é possível. Por exemplo, a mudança que sabe redescobrir tradições simples, como o uso por mulheres cristãs e, da mesma forma por muçulmanas da Síria, de véu leve e aberto, em vez de jeans, de véus pretos e fechados: estereótipos e modelos impostos pela TV via satélite, mas não pela realidade popular.

 

“Preciso conhecer Samir”

 

Era 2011 e tinha acabado de escrever um livro de entrevistas com Samir Frangieh, o ideólogo da intifada libanesa de 2005, aquela que obrigou o exército de ocupação sírio a se retirar.

 

Enviei o texto datilografado ao mosteiro do padre Paolo no deserto da Síria, em Mar Musa, perguntando se ele estaria interessado em escrever uma introdução. Ele respondeu: “Você quer apressar o tempo da minha expulsão! Mas quando você tiver o livro, você terá que me apresentar Samir, eu tenho que conhecê-lo!”.

 

Para apresentar Samir Frangieh, um ex-comunista e ex-estudante nos Jesuítas - mais tarde definido por muitos como o "conselheiro do patriarca", o jesuíta Butros Sfeir -, acho que é suficiente citar o que ele me disse certa noite enquanto nós estávamos atravessando Beirute: “Tudo em que acreditamos no século passado, hoje se diz em poucas palavras: aprender a viver juntos”. Por isso Samir estava pronto para falar com todos: dos militantes do Islã político aos nostálgicos intransigentes do marxismo-leninismo, aos falangistas. Ele via apenas um muro insuperável: Bashar Al-Assad.

 

Nos tempos da guerra civil, Samir era contra os falangistas a quem acusava de odiar Beirute por seu planejamento urbano promíscuo: um pouco de Oriente e um pouco de Ocidente. Mas, quando ele estava a um passo do precipício, ele foi até Gemayel que mais tarde teve a oportunidade de dizer: “Hoje conheci um jovem com ideias diferentes das minhas. Se tivéssemos nos conhecido antes, talvez a história tivesse sido diferente".

 

Quando o padre Paolo foi expulso - escoltado a Beirute pelo próprio núncio Zenari -, ele me chamou e disse: "Estou em Beirute, pode me ajudar a encontrar Samir?". Ele evidentemente tinha decidido invadir minha vida como um furacão. Este foi o padre Paolo para mim.

 

Não pude presenciar seu encontro com Frangieh. Mais tarde, ele me falou a respeito quando já estávamos na Itália, no mosteiro de Cori. Daquela vez ficamos juntos o dia inteiro: para ele aquele dia mudou pouco, para mim muito.

 

Ele me surpreendeu ao perguntar, quase à queima-roupa: "Quem é Samir Frangieh para você?". Com essa pergunta, de todos os pensamentos que ele tinha em mente, ele conseguiu entender logo tudo sobre mim! Ele entendeu que, em Samir, eu havia encontrado o caminho que ligava o que eu havia sido no século passado com o que sou no século atual. De fato, sem a palavra intifada - que significa "levantar-se" - eu não conseguiria entender muitas coisas sobre mim agora.

 

O introvertido e gentil líder da intifada libanesa - Samir - me disse que "queria ter sido um monge tibetano". Enquanto o verdadeiro monge - jesuíta - extrovertido que os acontecimentos obrigaram a se tornar o verdadeiro líder da intifada síria - o padre Paolo - me falou do particular das cortinas da casa Frangieh, movidas por uma leve brisa que permitia vislumbres do céu. Sempre havia poesia em suas palavras quando ele falava sobre outra coisa. Samir e Paolo eram homens muito semelhantes, embora em sua absoluta diversidade de caráter. Devo muito a eles.

 

Samir disse-me: “Disse ao padre Paolo Dall'Oglio que não devia fazer, mas ele o fará. Mas, quando ele quiser fazê-lo, desaconselhe: mesmo que seja de pouca valia, será bom para você”. De fato, o padre Paolo voltou para a Síria. Ele queria se reunir em oração nas valas comuns espalhadas ao longo do vale de Oronte. Depois, ele voltou novamente e em 29 de julho de 2013 foi sequestrado. E desapareceu.

 

Samir se encontrou com o padre Paolo só naquela ocasião sobre a qual estou escrevendo. Lembro-me de como ele viveu com trepidação a expectativa daquele encontro. Quando Paolo me escreveu que havia chegado a Beirute, eu imediatamente informei Samir: eram sete horas da manhã. Eu não estava acostumado a ligar àquela hora, então mandei uma mensagem. Ele respondeu em segundos. Ele escreveu: "Há dias estava ansioso por esse encontro".

 

Sem Samir e sem Paolo, eu teria continuado a seguir meus esquemas. Se Frangieh havia aberto o caminho para mim, só o padre Paolo me conduziu pela mão para além de minhas fronteiras. Samir fazia parte do meu mundo, nativo de minha mesma laicidade: ou seja, eu me sentia em casa com ele. Paolo, por outro lado, me obrigou a ir mais longe, dizendo-me que, mesmo com Samir, ele iniciou o discurso a partir do fato, bíblico, para ele óbvio, de que Ismael - filho de Abraão expulso para o deserto por seu pai e definido o progenitor dos árabes - indica que a eleição de Deus também diz respeito aos excluídos: Ismael, o filho excluído, expulso, não nos diria que talvez também os excluídos são eleitos de Deus?

 

Os mundos dos crentes e dos não crentes foram assim recompostos para mim num único mundo de pessoas que procuram a verdade: pessoas que são diferentes umas das outras, mas sobretudo diferentes daquelas que já não têm nada para procurar e encontrar.

 

O modelo era Matteo Ricci.

 

A história do encontro com Samir me fez entender por que Paolo disse, na época, para seus familiares: "Não vou estudar árabe, vou me tornar árabe". Seu modelo era Matteo Ricci. Se os seus chineses eram os árabes, eu me senti "chinês" diante de um homem que havia me entendido, talvez o primeiro que reconheceu em mim uma espiritualidade diferente daquelas já "codificadas".

 

Tenho certeza de que, para muitos muçulmanos que o padre Paolo conheceu, a experiência foi semelhante. Com ele pude falar sobre isso e dizer: “Sabe, Paolo, temo que em vários ambientes tenha quem se junte a Assad também por causa do antigo eco do antissemitismo”. Ele me disse: “Sim! Eu tenho que escrever sobre isso. Mas é surpreendente que um negacionismo possa produzir outro?”.

 

Alguns grupos anticonciliares teriam muito que refletir sobre estas palavras: a visão do Concílio diz respeito ao Outro, porque a abertura para o outro sempre abre, não fecha. Pensei nisso depois do incrível evento da assinatura do documento de Abu Dhabi.

 

Naquela época, aquele documento ainda não existia, nem se julgava possível. Apenas sentindo a certeza de sua condição de possibilidade, sai do esquema infantil daquele gosto ocidental - antiocidental - pelo qual o mundo árabe teria sido o grande proletário que assumiu o papel de antagonista planetário do monstro de estrelas e listras.

 

Essa narrativa serve para acreditar em algo de quem a conta estando aqui, mas lá - no Oriente Médio - serve para juntar os opostos: é igual à ideologia do velho partido Baath, construída sobre um antagonismo panárabe que especula sobre aquela frustração raivosa muito semelhante à ideologia cega que inspira os atuais Qaedistas. Joga-se com a raiva dos pobres e dos incompreendidos para fazê-los odiar o mundo mau e corrupto. Essa doença transformou parte do Islã em uma ideologia contra o mundo. Mas o Islã popular não é contra o mundo, sempre se sentiu parte dele.

 

Assim o Padre Paolo - contando-me sobre o seu encontro com Samir - também me fez compreender o peso do identitarismo cristão, dizendo: nós, cristãos, “temos e teremos o outro que engendramos”.

 

Não existe nenhuma grande marcha proletária contra o mundo. Isso nunca existiu. Existem elites corruptas que exploram a dor e instrumentalizam as religiões para chegar e permanecer no poder.

 

Lembro que Frangieh havia dito a Paolo que queria apresentá-lo ao verdureiro da loja ao lado de sua casa - o xiita Ali - que era a verdadeira razão pela qual Samir nunca havia aceitado deixar o chamado "lado islâmico" de sua cidade e sem o qual ele não poderia ter começado suas jornadas.

 

Rumo a um pluralismo na comunhão

 

Comentando aquela conversa à distância, os dois me disseram que a sabedoria está em "ver e encontrar Deus em todas as coisas".

 

Paolo ficou feliz quando eu disse a ele que Samir havia me contado que uma vez ele tinha ido proferir uma conferência em Tiro, no dia de seu aniversário, entre anfitriões xiitas: à noite os xiitas o levaram ao restaurante, tirando de um envelope uma garrafa de arrak o licor de anis que eles não bebiam, mas que ficavam felizes em oferecer de presente para a festa.

 

Padre Paolo deixou claro para mim também que o "mistério teológico" do Islã não pode ser enfrentado segundo o princípio da não contradição, mas segundo a pura lógica do amor. Compreendi, pois, que o mistério de todas as crenças reside nos milhares de milhões dos meus semelhantes, seres humanos: “Não caminhamos rumo a assimilações recíprocas, nem para misturas equívocas, mas para um horizonte compartilhado, no qual se projetam sínteses capazes de pluralismo na comunhão”.

 

Percebi essas palavras de Paolo como uma descoberta - contagiante - que dizia respeito também a mim. Fiquei apaixonado com a sua ideia de que “a harmonia da obra de Deus, em toda tradição, chegará à luz do sol do último dia”. Como homem de igreja, ele via, neste sentido, o fracasso do Cristianismo: o fracasso da ocidentalização de todo crente em Jesus Cristo. Em vez disso, ele via, no horizonte, o esplendor de uma Igreja global, presente em toda cultura, mesmo ancestral.

 

Um horizonte claramente presente no apólogo - caro a Samir - que conta a história de um amigo libanês que se mudou para Paris com a família. Samir, indo visitá-lo, percebeu que havia um problema: descobriu que sua filha estava prestes a se casar com um francês. "Bem, isso é ótimo, não é?". “Sim, é uma pessoa muito boa, mas sabes, Samir, passar o resto da nossa vida indo jantar com aquela fatiazinha de carne servida no prato…”. O amigo pensava na cozinha libanesa que - tanto na mesa dos cristãos como dos muçulmanos - inclui vários pratos deixados na mesa: cada um consome o que mais lhe agrada.

 

Talvez a cozinha também explique por que em árabe a palavra "indivíduo", per si só, não existe: a tradução literal do termo mais comum é "um de um casal". Vivemos juntos, comemos juntos, unidos na diversidade. Isso acolhe.

 

Acho que não falaram sobre isso, mas sei que Paolo teria gostado desse apólogo.

 

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