Olhos de uma mulher sobre a Bíblia. Entrevista com Adriana Valerio

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03 Julho 2019

A Escritura "foi para as mulheres uma ocasião de nutrição e libertação, e não poucas vezes as apresenta como protagonistas positivas da história sagrada": é o resultado do trabalho de investigação, extremamente minucioso, ao qual chega a exegese "feminina" da Bíblia, que, desenvolvida desde a época do Concílio Vaticano II, permitiu chegar a um "conhecimento cada vez maior dos contextos culturais em que os textos sagrados nasceram", bem como a “uma interpretação mais correta de algumas passagens usadas no passado para diminuir ou marginalizar as mulheres”.

Quem explica isso é Adriana Valerio, historiadora e teóloga, professora de História do Cristianismo e das Igrejas da Universidade de Nápoles Federico II, autora de obras como Il potere dele donne nella Chiesa [O poder das mulheres na Igreja, em tradução livre] (Laterza 2016) e Maria di Nazaret. Storia, tradizioni, dogmi [Maria de Nazaré. História, tradições, dogmas, em tradução livre] (Il Mulino 2017).

A entrevista é de Iacopo Scaramuzzi, publicada por Jesus, junho-2019. A tradução é de Luisa Rabolini

Eis a entrevista.

É correto considerar a Bíblia como intrinsecamente machista? Um texto escrito por homens, expressão de uma época e da cultura patriarcal, que relega as mulheres a papéis subordinados?

Até mesmo a Bíblia, composta de numerosos livros, diferentes por origem e composição, transmitidos e escritos através de mil anos (do século X a.C. ao século I d.C.), usou códigos antropológicos linguísticos ligados a contextos culturais específicos que refletiam a visão androcêntrica das sociedades antigas, baseadas em estruturas patriarcais e hierárquicas. Além disso, o texto sagrado foi vítima de uma má exegese, por isso, erroneamente interpretado, serviu para legitimar a subordinação feminina discriminando as mulheres, afastadas das tarefas de responsabilidade por serem consideradas inferiores, impuras e inadequadas. Deve-se acrescentar, contudo, que, apesar desse quadro de referimento ligado aos limites do horizonte cultural marcado pelo patriarcado, as Escrituras foram para as mulheres uma oportunidade de nutrição e de libertação, e não poucas vezes as apresenta como protagonistas positivas da história sagrada. Vamos pensar no papel desempenhado pelas matriarcas, fundadoras de Israel (Sara, Rebeca, Raquel, Lia e Tamar); a influência exercida sobre o povo por líderes, profetisas, sábias e libertadoras (Debora, Miriam, Rute, Ester, Judite ...); a importância das discípulas e apóstolas na vida de Jesus (Madalena, Marta e Maria de Betânia, a mulher samaritana ...); ao empenho assumido por missionárias, diaconisas e colaboradores nas comunidades paulinas (Febe, Júnia, Priscila ...)”.

E os Evangelhos? Você escreveu sobre Maria como uma mulher "com uma forte carga subversiva", uma descrição que não coincide perfeitamente com uma determinada sensibilidade devocional ...

Nos Evangelhos, o papel das mulheres emerge ainda mais. Jesus conseguiu entrar em diálogo empático com elas, oferecendo escuta, participação afetiva e espaços de ação; dirigiu-lhes mensagens de esperança, superando muitos preconceitos da época; ele anunciou as necessidades do reino de Deus pedindo a elas escolhas radicais, nunca as considerando como uma categoria separada ou secundária.

Além disso, não nos esqueçamos de que um número desconhecido de mulheres o seguiu desde o início de sua missão na Galileia até a cruz e foi testemunha de sua ressurreição. A própria figura de Maria deve ser valorizada em sua humanidade e relida à luz dos fios, ainda que finos, da história, para livrá-la das sobrecarregadas interpretações dogmáticas e devocionais.

Agora vamos falar sobre a interpretação e recepção da Bíblia: existe uma exegese bíblica feminina, se não feminista? Quais ferramentas você usa? Quais resultados você obteve?

A teologia feminista, que surgiu nos Estados Unidos nos anos 1960 e se afirmou na Europa no final da década seguinte, iniciou sistematicamente um processo de revisão tanto da exegese bíblica quanto da tradição eclesial que justificaram a diversidade e a subordinação feminina.

A exegese, em particular, implementada pelas teólogas atentas ao uso de métodos mais sofisticados disponibilizados hoje para as ciências bíblicas, lê a Escritura, de um lado destacando as categorias patriarcais presentes nos textos, do outro, destacando a presença significativa das mulheres que foram, juntamente com os homens, sujeitos da história sagrada e da Tradição, em um devir histórico de mútuo enriquecimento. Os resultados dizem respeito a um crescente conhecimento dos contextos culturais em que os textos sagrados nasceram e uma interpretação mais correta de algumas passagens usadas no passado para diminuir ou marginalizar as mulheres: da criação à queda, do papel de Madalena, apóstola e certamente não prostituta, a mulheres de quem Paulo fala, ativas e dinâmicas e certamente não silenciosas e submissas, assim como queria fazer crer uma exegese pouco atenta aos papéis femininos desempenhados na realidade naquelas comunidades”.

Você pode nos contar sobre a obra que você organiza junto com outras autoras?

A novidade do projeto de colaboração internacional A Bíblia e as Mulheres: Exegese, História e Cultura, nascido em 2006 a partir de uma ideia minha e da estudiosa austríaca Irmtraud Fischer, deve-se não só à sua abordagem interconfessional e inter-religiosa, mas também à sua comparação do método exegético com a abordagem histórica.

A obra, publicada em quatro idiomas (italiano, alemão, inglês, espanhol), articula-se de fato em vinte volumes (até hoje, 10 oram publicados com a editora Il Pozzo di Giacobbe de Trapani) e atravessa tanto os textos sagrados como a história do Ocidente, para identificar as relações (complexas, conflituosas ou libertadoras) entre a interpretação do texto sagrado e a condição feminina. Grande espaço é reservado para a elaboração feita pelas próprias mulheres: que relação tiveram com o texto sagrado e como o interpretaram? A história da exegese feminina que está resultando desses estudos começou a dar respostas significativas e inéditas.

Exegese, teologia e eclesiologia: que energias pode liberar, para as mulheres na Igreja, uma diferente leitura bíblica? E quais são os limites que encontra, ou que não pode exceder?

Nos estudos não há limites que não possam ser ultrapassados. As teólogas, consciência crítica do universo religioso, introduziram novos quadros interpretativos que propõem legitimação de pluralidade de leituras que podem enriquecer ou modificar o patrimônio religioso em seus setores articulados e variados setores: da interpretação dos textos sagrados, às questões dogmáticas, morais, sacramentárias, litúrgicas e espirituais. De fato, as novas investigações reabrem temáticas nodais que envolvem as ciências teológicas: a relação entre revelação e história; o papel dos homens e das mulheres nas comunidades de fé; a linguagem litúrgica inclusiva e, portanto, mais respeitosa dos gêneros; as delicadas questões éticas e pastorais, que devem considerar o aporte feminino até agora negligenciado e, por fim, as próprias modalidades de narrar Deus, não mais como um poderoso soberano masculino, mas Pai-mãe compassivo, à luz da igual dignidade do masculino e do feminino criados à sua imagem.

Como você avalia a "questão feminina" na Igreja neste exato momento no pontificado de Francisco? Que futuro próximo você vê para as mulheres na Igreja?

O Papa Francisco expressou em várias ocasiões a necessidade de uma renovação da vida eclesial, saindo das ‘lógicas de dominação excludentes’ para experimentar novas modalidades de autoridade frutuosa, criativa e compartilhada, abertas também às mulheres. Somente um processo de desclericalização com a consequente superação da hegemonia do clero pode oferecer no futuro espaços para uma diferente e mais significativa presença feminina na realidade eclesial. É uma esperança que, no entanto, encontra ainda muitas oposições daqueles que querem defender poderes e privilégios, mas acredito seja a única maneira de garantir um futuro significativo para uma Igreja de comunhão e corresponsabilidade e que reconheça às mulheres dignidade e visibilidade das mulheres em todos os seus organismos.

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