De El Salvador para o Catar via Estados Unidos

Mais Lidos

  • Elon Musk e o “fardo do nerd branco”

    LER MAIS
  • O Novo Ensino Médio e as novas desigualdades. Artigo de Roberto Rafael Dias da Silva

    LER MAIS
  • “A destruição das florestas não se deve apenas ao que comemos, mas também ao que vestimos”. Entrevista com Rubens Carvalho

    LER MAIS

Revista ihu on-line

Zooliteratura. A virada animal e vegetal contra o antropocentrismo

Edição: 552

Leia mais

Modernismos. A fratura entre a modernidade artística e social no Brasil

Edição: 551

Leia mais

Metaverso. A experiência humana sob outros horizontes

Edição: 550

Leia mais

30 Janeiro 2018

As gangues nas esquinas do bairro com a faca de açougueiro escondida debaixo da camisa pedindo moedas em troca de não estripá-lo como uma rês no matadouro. Seu pai dizendo que não tinha dinheiro para pagar seus estudos universitários. A viagem clandestina que ele empreendeu quando era muito jovem – tinha 16 anos – da fronteira de seu país, o menor da América Central, à de outro país muito maior, cuja existência conhecia graças aos filmes de pistoleiros bronzeados que matavam vietnamitas para salvar o mundo. Durante 18 anos, Félix González, salvadorenho que mora em Worcester, Massachusetts, Estados Unidos, bloqueou essas lembranças. Agora, elas começaram a aflorar novamente.

A reportagem é de David Ernesto Pérez, publicada por revista Proceso, 18-01-2018. A tradução é de André Langer.

Em 8 de janeiro passado, a Administração de Donald Trump anunciou o fim do Status de Proteção Temporária (TPS) para 195 mil salvadorenhos. Ele é uma das pessoas que foram afetadas pela medida.

Para os salvadorenhos, o TPS tem uma longa história. Formalmente, começou em 1991 para proteger os milhares de refugiados que fugiam da guerra entre o Estado e a guerrilha da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). No ano seguinte, com a assinatura dos Acordos de Paz e a transformação dos antigos insurgentes em políticos, esse programa acabou. Após os terremotos de janeiro e fevereiro de 2001, em que morreram 944 pessoas e quase 300 mil casas foram destruídas, o governo de George W. Bush concordou em reativá-lo a pedido do falecido ex-presidente Francisco Flores.

Mas com uma ressalva: podia ser aplicado apenas aos migrantes indocumentados que pisaram em solo estadunidense antes da ocorrida catástrofe que mergulhou em um profundo caos o menor país ao sul do Rio Grande.

A partir de então, até 8 de janeiro, os sucessivos governos dos Estados UnidosBush em oito ocasiões e Barack Obama em seis – renovaram-nos principalmente com base nos argumentos que levaram à sua retomada e que John Ashcroft, procurador-geral estadunidense, resumiu em 9 de julho de 2002 nos seguintes termos: “Embora El Salvador continue fazendo progressos na sua recuperação, o desastre dificulta que o país administre adequadamente o retorno de seus cidadãos”. Disse, além disso, que era a prova de que os Estados Unidos estavam dispostos a ajudar os salvadorenhos “nesta hora de necessidade”.

Na primeira oportunidade inscreveram-se 260 mil pessoas. Nos anos seguintes, o número caiu para 195 mil beneficiários. Naqueles anos, do norte chegavam, para os mais pobres, cerca de dois bilhões de dólares em remessas.

Em 9 de julho de 2003, veio a próxima prorrogação. Foi assinada por Tom Ridge, que era na época o secretário de Segurança Interior. Ela durou 18 meses e venceu em 9 de março de 2005.

Mas aquela era de prorrogações acabou. Entrou, simplesmente, para a história. González e outros 195 mil salvadorenhos têm até 9 de setembro de 2019 para deixar por conta própria o país em que viveram nos últimos 16 anos ou lutar para que o Congresso aprove uma lei que substitua o TPS e salvá-los da tão temida deportação.

El Salvador também não quer deportações em massa, nem perseguições contra os salvadorenhos que atualmente contribuem com quase cinco bilhões de dólares em remessas; isto é, 17% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2016.

Ir ao Catar, uma alternativa

Em 8 de janeiro, Hugo Martínez, ministro das Relações Exteriores, confirmou que o Estado salvadorenho moverá todos os seus fios e recorrerá a todos os meios legais existentes para preencher o vazio deixado pelo TPS. Porque também não lhe convém que quase 200 mil “tepesianos” – como são chamados os beneficiários do extinto programa – cheguem em massa a um país que não lhes pode garantir segurança, oportunidades de trabalho ou um espaço para que possam iniciar seus próprios negócios. Jean Manes, a embaixadora em El Salvador da presidência Trump, também está ciente das espinhosas condições.

O governo também anunciou que buscará opções em outros países. O primeiro resultado é uma aproximação com o Catar para enviar os “tepesianos” interessados em trabalhar no país do petróleo.

Os “tepesianos” são os mais conscientes de que o país que deixaram nunca deixou de ser violento, perigoso, pobre e miserável. Mas, 16 anos depois, não se trata apenas deles e de seus medos. Muitos são agora pais e mães. Muitos são proprietários. Muitos também são donos de pequenas empresas. Agora eles temem pelo destino de seus filhos, de suas propriedades e de suas empresas.

“Penso na insegurança que os meus filhos podem ter. Eu, como venho de lá, consigo sobreviver, mas eles não sei”, diz González a Apro por telefone de Massachusetts. Ele está casado com outra migrante indocumentada salvadorenha e tiveram dois filhos nascidos lá. Os menores de idade têm cidadania norte-americana.

O futuro está sendo jogado no Congresso. Desde novembro de 2017 e até o presente momento, quatro congressistas apresentaram o mesmo número de propostas. O centro de cada uma delas é entregar automaticamente – exceto em caso de conflito com a lei – o status de permanência para quem é oriundo de todos os países que se beneficiaram com o TPS: Haiti, Honduras, Nepal, Nicarágua, Somália, Sudão, Síria e Iêmen.

Depois da bofetada de realidade, os “tepesianos” começaram a acordar e a se organizar, de acordo com González. Antes de outubro do ano passado, menos de 150 salvadorenhos participaram da primeira reunião com a Aliança Nacional TPS que luta no Congresso pela aprovação da lei permanente. Da segunda reunião, participaram 300. Da terceira, quase 500. “As pessoas já estão começando a se levantar do sofá, de onde apenas assistiam as notícias de longe”, explica.

O passo mais urgente é ganhar a vontade dos congressistas do Partido Republicano. Basicamente, o Partido Democrata deu provas de apoio. “Enquanto não me comprarem a passagem para sair, eu não vou embora. É por isso que estamos lutando”, reitera González.

O caminho não será fácil. Rubén Zamora, ex-diplomata salvadorenho nas Nações Unidas (ONU), explicou em uma entrevista à TV estatal que os republicanos têm o controle no Congresso. E muitos deles parecem obedecer cegamente às diretrizes do Trump.

Aparentemente, o desejo de lutar se intensificou tanto pelo fim do TPS quanto pelas declarações do próprio Presidente Trump, que recentemente qualificou, de acordo com publicações do Washington Post e do CBS News, El Salvador, Nicarágua e outros países africanos como “buracos de merda”.

Fugir da violência

O Sistema Contínuo de Relatórios sobre a Migração Internacional nas Américas, da Organização dos Estados Americanos (OEA), identifica três grandes ondas migratórias dos salvadorenhos nos últimos 100 anos. A primeira onda começou em 1932 após a queda dos preços do café e do massacre de mais de 20 mil indígenas que se sublevaram contra os grandes fazendeiros. O massacre foi ordenado pelo ditador Maximiliano Hernández Martínez. Aqueles que sobreviveram ao massacre e à miséria refugiaram-se em Honduras e trabalharam nas plantações de banana das grandes companhias estadunidenses. O fluxo era constante até pelo menos a década de 1950.

O segundo grande movimento foi registrado na década de 1970. Nessa época, os migrantes eram trabalhadores pobres, profissionais, intelectuais, entre outros. A grande maioria fugia do desemprego, da pobreza, da violência política cada vez mais crescente que resultou no assassinato de dom Óscar Arnulfo Romero em 1979 e na subsequente Guerra Civil, que durou 12 anos, com o saldo já conhecido de 80 mil mortos, 500 mil deslocados internos e o mesmo número de refugiados no exterior que encontraram um lar nos Estados Unidos, México, Guatemala, Honduras e Nicarágua.

De 2010 até hoje, as causas que levaram os salvadorenhos a migrar são a violência provocada pela guerra entre o Barrio 18 e a Mara Salvatrucha, a guerra do Estado contra as gangues, a pobreza, a reunificação familiar nos Estados Unidos e o desemprego.

A guerra do Estado contra as gangues é a causa mais recente de migração. Ou melhor, de deslocamento interno e para o exterior. Organismos internacionais e ONGs nacionais reconhecem-na como tal.

No entanto, o governo de Salvador Sánchez Cerén resistiu em aceitá-la. Em novembro do ano passado, a Sala Constitucional da Suprema Corte de Justiça (CSJ) ordenou à Procuradoria Geral da República e à Polícia Civil Federal para que proteja dois cidadãos que entraram com um recurso de amparo por falta de proteção contra ameaças de morte que eles receberam de uma gangue.

Um mês depois, a Procuradoria dos Direitos Humanos advertiu que o deslocamento forçado já se tornou um problema nacional. Entre 2011 e 2014, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) assinalou que os salvadorenhos foram os que apresentaram o maior número de solicitações de refúgio entre 2011 e 2014, em comparação com as solicitações interpostas por guatemaltecos e hondurenhos no mesmo período.

No ano passado, mais de 25 mil migrantes salvadorenhos foram deportados do México e dos Estados Unidos. É uma média superior a 68 deportações por dia. Entre aqueles que retornam, há de tudo: aqueles que trabalharam algum tempo, mas cometeram uma infração da lei, como dirigir embriagado ou se envolveram em uma briga. Os indocumentados. Aqueles que cometeram uma falta grave. Aqueles que eram reivindicados pela justiça nacional.

Mas também inclui os salvadorenhos que fugiram da pobreza, aqueles que foram para se reunir com seus pais ou irmãos e aqueles que fugiram da violência.

A viagem de Melvin

Os deportados são enviados de mãos e pés algemados pelo governo estadunidense. Em uma pequena rede de plástico (vermelha ou azul), levam uma camisa ou uma calça. Todos chegam ao Aeroporto Dom Óscar Arnulfo Romero. São recebidos por uma delegação da Direção Nacional dos Migrantes, uma unidade do Ministério das Relações Exteriores. Os funcionários oferecem-lhes um refrigerante. Em seguida, são transferidos em ônibus Blue Bird à sede da Direção no centro de San Salvador. Aí são novamente recebidos pelo encarregado, que explica que, caso necessitarem de roupas, sapatos, telefonemas nacionais ou internacionais, serviço de transporte para os terminais rodoviários mais próximos, serviços de saúde, informações sobre programas de reinserção, assistência para obter o documento de identidade, chuveiros ou outras coisas, podem solicitá-los.

Melvin S. foi um dos primeiros salvadorenhos deportados depois do fim do TPS. Sua história pode ser resumida da seguinte maneira: ele estava tentando atravessar a fronteira nos últimos dias de dezembro de 2017. Fazia tanto frio que um dos homens com quem viajava foi ficando para trás com intensas dores artríticas. Outro correu para lançar-se no Rio Grande depois que olhou para trás e viu que a polícia da imigração estava prestes a encurralá-lo junto com os seus companheiros. Alguns acreditam que ele se afogou. Outros acreditam que foi devorado por lagartos.

Ele andou mais de 2.700 quilômetros de ônibus e a pé de El Salvador a Laredo. Ele pretendia retornar aos Estados Unidos, onde morava com seus três filhos e sua esposa desde 2014. Mas deu tudo errado. No Texas, caiu nas mãos de furiosos agentes da fronteira. Eles o colocaram em um avião junto com 19 mulheres e 101 homens para enviá-lo ao país onde nasceu há 32 anos.

No final de 2013, Melvin fugiu de San Pablo Tacachico, na região central de El Salvador, porque as gangues o ameaçaram de morte. Um ano depois, um coiote levou suas duas filhas e sua esposa. Em 24 de dezembro de 2016, ele saiu de sua casa depois das 22h para pegar sua esposa. Na rodovia, um agente pediu que ele parasse. Estava sem a carteira de motorista. Ele não levava consigo os documentos. E foi deportado.

A história de Melvin acontece em dezembro. Em dezembro de 2013, viajou pela primeira vez indocumentado para os Estados Unidos. Em dezembro de 2016, foi capturado. Em dezembro de 2017, ele fracassou em nova tentativa para cruzar a fronteira.

Em janeiro, voltou para El Salvador cansado, sujo, envergonhado, esquivo e derrotado. Todos os deportados retornam assim. Ele, assim como os demais companheiros seus deportados, disse ter claro uma coisa: não vai ficar no país. “Aqui não podemos dar aos nossos filhos o futuro que gostaríamos”, comentou. É por isso que no próximo mês tentará, novamente, atravessar a fronteira.

Melvin S. e González concordaram em um ponto: é difícil abandonar a vida tranquila, longe do crime e com oportunidades de crescimento oferecidas pelo país do norte. El Salvador está nas antípodas de tudo isso.

De acordo com o estudo ‘Uma Aproximação às Políticas de Atenção aos Deportados nos Países do Triângulo do Norte’, publicado pela ONG FundaUngo [Fundación Dr. Guillermo Manuel Ungo], nos últimos anos metade dos deportados passou menos de um mês no país antes de emigrar novamente, e três de cada quatro voltaram a emigrar três meses após terem sido obrigados a retornar ao seu país.

No final de 2016, o Banco Central de Reserva de El Salvador publicou um estudo no qual indicava que a taxa de salvadorenhos que migram a cada ano é maior que a dos salvadorenhos que nascem anualmente. O crescimento demográfico oscila entre 2,5% a 2,8%, ao passo que a migração, principalmente para os Estados Unidos, é superior a 3,8%. A porcentagem migratória continuará a crescer nos próximos anos.

Leia mais

Comunicar erro

close

FECHAR

Comunicar erro.

Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

De El Salvador para o Catar via Estados Unidos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU