COP30: 'Alguém falou!' Vozes e o planeta clamam. É hora de agir. Artigo de Hermano Castro

Foto: Chris Leboutillier | Unsplash

11 Outubro 2025

"Temos o coro de quem resiste a um projeto de morte imposto pelo extrativismo predatório e pela economia fóssil. Essas vozes, separadas por oceanos e culturas, têm a chance de se encontrarem em eco na COP30. Representam a sabedoria ancestral que sempre entendeu os limites do planeta e de uma juventude global que herda um mundo esgotado em seus recursos e limites. É preciso, portanto, ouvi-las", escreve Hermano Castro.

Hermano Castro é médico e pesquisador titular da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (CESTEH). Vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fiocruz (período 2021-2025). Diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), período 2013-2021.

Eis o artigo.

Alguém falou. A frase ecoa pelo planeta como u m sussurro insistente que precede o grito. São vozes indígenas, seringueiras/os, cientistas, artistas, lideranças políticas, religiosas e comunitárias. Todas disseram, de diferentes formas e em diferentes momentos, que destruir a floresta, queimar combustíveis fósseis, poluir as águas e aquecer o ar é destruir a nós mesmos.

A COP30, portanto, não chega a um terreno de silêncio. Ela chega a um território onde ecoa as vozes de lideranças há séculos. Os povos indígenas sempre disseram que o mundo natural é um ser vivo e que seu adoecimento nos adoece. Décadas de relatórios, discursos, promessas e acordos que se dissolvem no ar poluído das capitais do mundo. Enquanto os delegados da COP30 debatem vírgulas em textos diplomáticos, é preciso ouvir quem, há muito mais tempo, não apenas falou, mas profetizou o colapso que se anuncia.

Podemos lembrar Chico Mendes, nos anos 1980, quando alertou: a luta pelas seringueiras e pela Amazônia é, na verdade, uma luta em defesa da humanidade. Pouco antes de ser assassinado, afirmou: “No começo pensei que lutava para salvar seringueiras. Depois pensei que lutava para salvar a Amazônia. Agora percebo que luto pela humanidade”.

Em 1987, o líder indígena Ailton Krenak pintou o rosto com tinta de jenipapo, durante a Assembleia Constituinte, quando declarou que a destruição da natureza era também a destruição da vida. Décadas depois, em 2021, a jovem Txai Suruí fez eco a essa fala diante da comunidade internacional na COP26: “O planeta está falando. Ele nos avisa que não temos mais tempo”. A liderança indígena Sônia Guajajara, hoje ministra dos Povos Indígenas, costuma repetir: “Defender a Amazônia é defender a vida na Terra”.

Davi Kopenawa Yanomami, cuja vida é entrelaçada com a floresta, não precisou de gráficos para descrever a febre da Terra. Viu o "céu e a terra ficarem quentes" e chamou isso do que sempre foi: uma epidemia trazida pelo "homem branco" e sua insaciável queima. Kopenawa nos ensina que a perspectiva de seu povo vai além de gráficos de CO2, fala da saúde do ecossistema como a saúde de seu povo e do planeta: "O universo é um só. Nós somos um povo único, junto com o homem branco, com negro, as montanhas, rios. Nós somos únicos, unidos.". Kopenawa alerta que a mudança do clima há muito é considerada uma epidemia e que a destruição da floresta é culpa do "homem branco que vai queimar nossa floresta". Esta é uma acusação moral que não podemos ignorar.

A sensação generalizada, muitas vezes, é de que a pluralidade de vozes que apresentam soluções para o colapso ambiental se perde em um esquecimento proposital, lembrada apenas como memória distante de que “alguém falou”, como um eco, e não um chamado para a ação. A ministra Marina Silva insiste: mesmo com desmatamento zero, se não reduzirmos as emissões de combustíveis fósseis, a floresta perecerá. O secretário-geral da ONU, António Guterres, repete que enquanto tratarmos os rios, as florestas e a atmosfera como recursos a serem explorados, estaremos cavando a "nossa própria cova".

E quem está dentro dessa cova que escavamos? O ativista e líder afroambiental Aderbal Ashogun ao apresentar o conceito de racismo ambiental, lança luz à resposta. As populações negras, indígenas e periféricas, que menos contribuíram para o aquecimento global, são as primeiras e mais brutalmente atingidas. São elas que veem suas casas serem arrastadas por enchentes, suas plantações serem dizimadas pela seca e sua saúde ser deteriorada pelo calor extremo e pela poluição. Enquanto isso, nas salas com ar-condicionado onde se decidem os destinos do mundo, sua representação ainda é praticamente nula. Organizadas em movimentos globais, essas populações lutam para mudar essa lógica, mostrando que a ação climática que ignora as desigualdades estruturais, de gênero, raça e classe está fadada ao fracasso, pois reproduz as mesmas estruturas de poder que nos trouxeram até esse terreno no qual se abre a cova.

Os jovens brasileiros, herdeiros diretos dessa dívida histórica e ecológica, não se calam. Nayara Almeida e Odenilze Ramos, líderes da greve pelo clima no Brasil, são a personificação do "recado da ciência" traduzido em urgência. Odenilze, uma jovem ribeirinha, não fala em cenários futuros; relata a desregulação climática na Amazônia com a autoridade de quem vive suas consequências: "Tudo que nós jovens não queremos é deixá-lo [o futuro] para a próxima geração". Um apelo para que os que hoje detêm o poder, cumpram seu dever.

A ciência já esgotou seus eufemismos. Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), no se materializam em dados de o que "alguém falou" indica categoricamente que cada fração de grau aquecida se traduz em milhares de vidas perdidas, em ecossistemas inteiros colapsados e em prejuízos econômicos que farão qualquer transição energética parecer barata.

O climatologista Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), alerta há anos que, se o desmatamento da Amazônia passar de 20 a 25%, o bioma pode entrar em colapso, transformando-se em savana. Esse é o chamado tipping point, o ponto de não retorno. Nobre e o físico Paulo Artaxo insistem que é "indiscutível que as atividades humanas estão causando mudanças climáticas", tornando eventos extremos como chuvas fortes, secas e ondas de calor mais frequentes e severos. Sandra Hacon, pesquisadora da Fiocruz, documenta como a fumaça das queimadas aumenta casos de doenças respiratórias em crianças e idosos. Em suma, adiar decisões e ações para conter as mudanças climáticas é repetir a lógica do adoecimento e da morte lenta.

O relatório da ONU de 2025 é inequívoco: o mundo falha categoricamente em cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Apenas 35% das metas estão no caminho certo, enquanto um alarmante 18% registram retrocessos. Estamos não apenas parados no tempo, mas sim andando para trás em questões críticas para a sobrevivência humana.

Esta crise de governança global coincide com um colapso silencioso. Um estudo publicado em 2015, na Science Advances alertou que o ritmo atual de extinção de espécies pode ser até 100 vezes superior ao da taxa natural. Para contextualizar, estima-se que 99% de todas as espécies que já habitaram a Terra nos últimos 3,5 bilhões de anos foram extintas. A existência atual representa apenas uma pequena parte da história biológica, e a humanidade está acelerando a extinção de várias espécies.

Enquanto isso, a biodiversidade se esvai e o termômetro global dispara. O ano de 2024 entrou para a história como o primeiro ano em que a temperatura média do planeta ultrapassou a barreira de 1,5 °C acima dos níveis pré-industriais, o limite estabelecido pelo Acordo de Paris para evitar os piores efeitos da crise climática. Essa marca não é metáfora é o prenuncio do ponto de inflexão científico que indica a proximidade de um “colapso climático”. Seus efeitos já não são projeções futuras, mas realidades concretas e visíveis em todo o globo. Tais como, aumento de frequência e intensidade de ondas de calor extremo, secas prolongadas, inundações devastadoras e eventos meteorológicos de destruição sem precedentes.

Enquanto isso, a biodiversidade se esvai e o termômetro global dispara. O ano de 2024 entrou para a história como o primeiro ano em que a temperatura média do planeta ultrapassou a barreira de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, o limite estabelecido pelo Acordo de Paris para evitar os piores efeitos da crise climática. Essa marca não é metáfora é o prenuncio do ponto de inflexão científico que indica a proximidade de um “colapso climático”.

Seus efeitos já não são projeções futuras, mas realidades concretas e visíveis em todo o globo. Tais como, aumento de frequência e intensidade de ondas de calor extremo, secas prolongadas, inundações devastadoras e eventos meteorológicos de destruição sem precedentes.

O Brasil ocupa um papel paradoxal e trágico. O país que abriga uma das maiores biodiversidades do planeta e ecossistemas críticos para o equilíbrio climático global figura entre os maiores emissores de gases de efeito estufa (GEE). E, diferentemente da maioria dos países industrializados, nossas emissões não vêm principalmente de chaminés industriais, mas da queimada, da motosserra e do trator. O desmatamento e as mudanças no uso da terra respondem por cerca de 75% das emissões nacionais, com a Amazônia e o Cerrado no epicentro dessa destruição. A agropecuária, estreitamente ligada a esse processo, é a segunda maior fonte poluidora. É um ciclo perverso: a floresta é derrubada para dar lugar a pastos e lavouras, o carbono estocado por séculos é liberado, e o bioma perde a capacidade de sequestrar novos gases.

O paradoxo brasileiro se agrava diante da economia política do colapso. Em 2024, a renúncia fiscal concedida ao agronegócio chegou a R$ 158 bilhões. Para efeito de comparação, o orçamento do Ministério da Saúde foi de R$ 245 bilhões, e o do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, apenas R$ 19,2 bilhões. Enquanto setores estratégicos para a garantia da saúde, de direitos e da sustentabilidade enfrentam restrições orçamentárias, o Estado continua subsidiando um modelo de desenvolvimento que aprofunda a crise socioambiental. Subsidiamos, portanto, o modelo que nos destrói.

A incoerência é gritante, proclamamos compromissos internacionais com o clima e a biodiversidade, enquanto seguimos alimentando internamente as engrenagens do colapso. A Amazônia, o Cerrado, o Pantanal e os povos que neles vivem são as primeiras vítimas desse modelo de exaustão. Cada árvore derrubada, cada curso d’água envenenado por agrotóxicos e cada comunidade deslocada são capítulos de um mesmo enredo. Há uma desconexão entre discurso político e realidade ecológica.

Perdemos o timing dos ajustes. É urgente uma transformação radical de prioridades, um reposicionamento ético e político que reconheça os limites do planeta e o direito à vida de todas as espécies em suas diversas formas. A COP30, em Belém, será um teste crucial, não apenas de diplomacia climática, mas para o processo civilizatório.

Alguém precisa ter a coragem de ouvir os que falam com coragem, com ciência e com urgência. O esquecimento e o silêncio, nesse momento, são cúmplices do fim trágico.

O que faremos com esse coro de alertas? Continuaremos a agir como o paciente que, mesmo com o diagnóstico terminal em mãos, se recusa a abandonar o vício que o mata? E no nosso caso, a indústria fóssil é o nosso vício coletivo. Parar imediatamente com as agressões ambientais, significa decretar o fim da era dos combustíveis fósseis. A COP30 demanda uma decisão política, técnica e moralmente inadiável.

Muitos já falaram. O planeta expressou seu alerta. A COP30 é o espaço para responder e declarar : “nós ouvimos e agimos.” Esse deve ser o legado da COP30.

O filósofo e líder indígena Ailton Krenak nos lembra que a crise climática é, antes de tudo, uma crise de percepção. Nossa "crise de humanidade" nos impede de nos vermos como parte da teia da vida, não como seus donos. O cacique Raoni Metuktire, liderança histórica do povo Mẽbêngôkre-Kayapó, continua a afirmar que a exploração de petróleo na Amazônia é uma sentença de morte para os rios, peixes e comunidades. O Papa Francisco já nos advertiu em sua encíclica Laudato Si': “Se continuarmos na mesma direção, este século poderá presenciar uma destruição sem igual dos ecossistemas, trazendo graves consequências para todos.” O pontífice também ressaltou que “tudo está interligado” e reforçou que a crise climática é ao mesmo tempo uma crise social e espiritual.

Temos o coro de quem resiste a um projeto de morte imposto pelo extrativismo predatório e pela economia fóssil. Essas vozes, separadas por oceanos e culturas, têm a chance de se encontrarem em eco na COP30. Representam a sabedoria ancestral que sempre entendeu os limites do planeta e de uma juventude global que herda um mundo esgotado em seus recursos e limites. É preciso, portanto, ouvi-las.

As lideranças citadas, e tantas outras anônimas, já iluminaram o caminho. Agora precisamos decidir se teremos ousadia para seguir essas vozes. O futuro não faz acordos: ele simplesmente chega. E está atento ao que fazemos neste exato momento.

Sigamos falando e que os tomadores de decisão global possam escutar e agir. O mundo de olho na COP30!

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