O texto que segue apresenta uma breve reflexão sobre passos do Concílio Vaticano II (1962-1965), escrita pelo historiador José Oscar Beozzo, padre, teólogo e coordenador geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular.
A reflexão foi realizada visando a comemoração dos 55 anos da solene abertura do Concílio Vaticano II, ocorrida em 11 de outubro de 2017. Beozzo nos lembra que ele estava presente na ocasião, na Praça São Pedro, com outros colegas do Colégio Pio Brasileiro. O texto vem dividido em quatro tópicos:
I. Abertura do Concílio na Basílica de São Pedro
II. Gaudet Mater Ecclesia - O discurso de João XXIII
III. À noite, a segunda abertura para o povo na Praça de São Pedro
IV. As anotações no Diário de João XXIII nessa noite.
José Oscar Beozzo | Foto: Arquivo essoal
O presente texto integra a coluna Vozes de Emaús, que conta com contribuições semanais dos membros do Grupo Emaús. Para saber mais sobre o projeto, acesse aqui.
O papa João XXIII fixou para 11 de outubro, festa da Maternidade de Maria, o início do Concílio Vaticano II, o 21º da longa série iniciada com o Concílio de Nicéia, no ano de 325.
Na Basílica de São Pedro, encontravam-se os mais de 2.500 padres conciliares, as delegações oficiais de 86 países e organismos internacionais, os observadores das Igrejas cristãs não unidas a Roma, os peritos e convidados; na praça, a enorme multidão que aplaudira a longa procissão dos bispos de túnica e mitra brancas e, finalmente, o Papa que a abençoava do alto da sedia gestatória.
Na entrada da Basílica, a surpresa: o Papa desce da sedia e percorre a pé toda a nave central da igreja, como irmão entre irmãos.
Dirige-se ao altar da confissão de São Pedro e acompanha a missa celebrada pelo Cardeal Tisserant.
Senta-se depois, recebe a obediência de representantes dos cardeais, patriarcas, arcebispos e bispos.
Faz sua profissão de fé, na formula do Credo niceno-constantinopolitano, e inicia o discurso de abertura do Concílio: Gaudet Mater Ecclesia, Alegra-se a Mãe Igreja.
Alceu Amoroso Lima que integrava a delegação oficial do governo brasileiro para a abertura do Concílio, escreveu à sua filha religiosa sobre o discurso do Papa: [apreciei] o que ele disse, especialmente nas passagens em que falava do “novo espírito” da Igreja, que não era de anátemas e condenações, mas de amor, fraternidade, união na verdade, em suma, tudo aquilo que venho pregando há tanto tempo em torno do espírito de universalidade, equilíbrio, paternidade, paz, amor etc. e tal, que você já está chateada de ouvir. E destacou também o “trabalho” e condenou os “pessimistas”!
De modo que o que me falou, antes de tudo, foi a palavra do Papa, ouvida (e vista) da sua própria boca, com uma voz tão firme como de um moço e uma atitude tão calma, tão desprendida, tão natural (e, portanto, tão sobrenatural) como se estivesse rezando sozinho em sua capela particular! E, no entanto, estava e estávamos vivendo um momento histórico naquela Basílica, onde agora se celebrava o maior Concílio da história.
Entrou por seus pés, e não na “sedia gestatória”, o que apreciei muito (estava torcendo que assim fosse) e também saiu assim (Lima, Amoroso Alceu, João XXIII, 1966, pps. 84-85).
Se a ideia do Concílio brotara na mente de João XXIII como “fiore d´inattesa primavera”, “flor de inesperada primavera”, chegara a hora, depois de três anos de intensa preparação, de abrir o tão esperado Concílio.
João XXIII preparou-se cuidadosamente para aquele momento. No discurso transparece uma síntese de toda sua vida: a fé e a piedade bebidas no leite materno e no exemplo laborioso de um pai lavrador; sua vocação e seu ministério, iniciado em meio aos horrores da primeira guerra mundial como capelão militar, continuado como diplomata na Bulgária ortodoxa e na Turquia muçulmana; na nunciatura em Paris e como bispo no patriarcado de Veneza e na cidade de Roma, acumulando ali o ofício de pastor universal. Condensou neste discurso toda sua experiência de vida, sua sabedoria e espiritualidade.
No mês de agosto, nas suas férias, embora movimentadas, de Castel Gandolfo, começou a esboçar o discurso. Em setembro, de oito a dezesseis, retirou-se para os Exercícios espirituais. O Papa anota no dia 10: Início do meu Retiro Pessoal para o Concílio na Torre S. Giovanni (Roncalli G. Pater Amabilis, Agende del Pontefice: 1958-1963, p. 430). Tudo aqui é preparação da alma do Papa para Concílio e, logo adiante: Vejo bem que a preocupação de servir o Concílio prevalecerá sobre as formas costumeiras dos assim chamados exercícios espirituais. No dia 11, anota: Nesse meio tempo, alinhavo também o primeiro esboço das ideias para o discurso de abertura de 11 de outubro (ibidem, p. 431).
Relativamente breve, a Gaudet Mater Ecclesia, como ficará conhecido o discurso de abertura, compreende a introdução, sete pequenos blocos e a conclusão, num total de 44 parágrafos. O Papa buscou a inspiração bíblica no evangelho de Lucas, evangelho do Espírito Santo, da alegria e do cântico de Maria. Lucas é citado 4 vezes, Mateus, 2. Recorre ainda ao Gênesis e, no Novo Testamento, aos Atos dos Apóstolos, a Paulo (II Coríntios e I Timóteo) e, enfim, ao Apocalipse. Dos Santos Padres, apenas Agostinho é evocado.
Mais do que um programa para o Concílio, João XXIII oferece uma atitude perante a história, uma postura em face do presente, um caminho para o amanhã, “como se visse o invisível” (Hb 11, 27b).
O que desejava era transmitir o espírito que devia animar o Concílio, mirando para além das fronteiras da Igreja Católica, à humanidade toda. Propõe:
Atitude confiante e positiva, afastando-se dos profetas da desventura que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo (IV.3).
Nada de condenações e anátemas, mas a serena apresentação da verdade. Ela deve responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do “depositum fidei”, isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance (VI.5).
Magistério de caráter eminentemente pastoral. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração; e dever-se-á usar a maneira de apresentar as coisas que mais corresponda ao magistério, cujo caráter é prevalentemente pastoral (VI.5).
Remédio da misericórdia. A Igreja sempre se opôs a estes erros; muitas vezes até os condenou com a maior severidade. Agora, porém, a esposa de Cristo prefere usar mais o remédio da misericórdia do que o da severidade. Julga satisfazer melhor às necessidades de hoje mostrando a validez da sua doutrina do que renovando condenações (VII.2).
Busca ecumênica pela unidade dos católicos, dos cristãos, dos fieis de religiões não cristãs e de todo o gênero humano. Veneráveis irmãos, isto se propõe o Concílio Ecumênico Vaticano II, que, ao mesmo tempo, que une as melhores energias da Igreja e se empenha por fazer acolher pelos homens mais favoravelmente o anúncio da salvação, como que prepara e consolida o caminho para aquela unidade do gênero humano, que se requer como fundamento necessário para que a cidade terrestre se conforme à semelhança da celeste «na qual reina a verdade, é lei a caridade, e a extensão é a eternidade (VIII.4).
Que o Concílio corresponda às necessidades e esperanças dos diversos povos. Queira o céu que as vossas canseiras e o vosso trabalho, para o qual se dirigem não só os olhares de todos os povos, mas também as esperanças do mundo inteiro, correspondam plenamente às aspirações universais (IX.4).
Espíritos mais alertas colheram, sob a aparente simplicidade daquelas palavras, a profunda novidade do discurso do Papa. Conforme o Concílio avançava, tornou-se a Gaudet Mater Ecclesia bússola e farol que o guiaram nos momentos de incerteza e impasses.
As emoções daquele dia não se acabaram, porém, com a longa cerimônia de abertura que durou mais de sete horas e cujo ponto alto fora o discurso do Papa. A noite reservava nova surpresa.
Uma procissão luminosa percorreu as ruas de Roma na noite daquele 11 de outubro, dia da abertura do Vaticano II.
Queria recordar, assim, a espontânea e entusiástica homenagem que, ao final do Concílio de Éfeso (431), o povo da cidade, numa alegre procissão, à luz de tochas, prestara a Maria, proclamada pelo Concílio, “Teótokos”, Mãe de Deus.
João XXIII havia escolhido de propósito esta festa da Maternidade de Maria, para a abertura do Concílio e agora, diante daquele mar de velas acesas que invadira a Praça de São Pedro e suas ruas adjacentes, assomou ao balcão dos aposentos pontifícios para abençoar a multidão:
Olhai a lua!
Esta se levantava no horizonte, iluminando a noite. O Papa emocionado dirige-se ao povo e brota dos seus lábios, inteiramente de improviso, um segundo discurso de abertura do Concílio, diferente daquele da manhã longamente meditado e amadurecido e dirigido aos cardeais, patriarcas, bispos e aos grandes da terra.
Naquele cair da noite, volta-se para o povo miúdo da cidade saído dos bairros populares e para os peregrinos do mundo todo que haviam acudido a Roma para a abertura do Concílio.
Inicia um diálogo com a multidão:
Caros filhos, escuto suas vozes. A minha é uma só, mas retoma as vozes todas do mundo; e aqui de fato o mundo está representado. Dir-se-ia que até a lua se apressou nesta noite… Observai-a no alto a contemplar este espetáculo… Concluímos uma grande jornada de paz… Sim, de paz: “Glória a Deus e paz aos homens de boa vontade”.
A minha pessoa nada conta: é um irmão que fala a vocês, um irmão que se tornou pai pela vontade de Nosso Senhor… Continuemos, pois, a nos querer bem deste modo no encontro: tomar aquilo que nos une e deixar de lado, alguma coisa que possa nos colocar em dificuldade…
Voltando para casa, vocês encontrarão as crianças. Façam-lhes uma carícia e digam-lhes: “Esta é a carícia do Papa”. Encontrarão talvez alguma lágrima para ser enxugada. Tenham para quem sofre uma palavra de conforto. Que saibam os aflitos que o Papa está com seus filhos, especialmente nas horas de tristeza e amargura…
E, então, todos juntos nos amemos: cantando, suspirando, chorando, mas sempre cheios de confiança no Cristo que nos ajuda e nos escuta, retomemos nosso caminho.
Adeus, filhinhos!
Acrescenta à bênção o augúrio de boa noite (DCM IV 592-593).
Terminado aquele dia memorável e cheio de emoções, o Papa, que acabara de ser prevenido por seu médico, poucos dias antes, acerca da grave enfermidade, que o acometera e que o levaria à morte, faz serena entrega de sua vida a Deus. Este lhe permitira abrir o Concílio, mas certamente lhe pediria que o entregasse ao seu sucessor, para seu prosseguimento e conclusão.
Escreve o Papa em sua agenda:
11 de outubro – quinta-feira.
Esta jornada assinala a solene abertura do Concílio Ecumênico. A notícia está em todos os jornais e, em Roma, nos corações exultantes de todos. Agradeço ao Senhor por não fazer-me indigno da honra de abrir, em seu nome, este início de grandes graças para sua Santa Igreja.
Ele dispôs que a primeira centelha que preparou durante três anos este acontecimento tivesse saído da minha boca e do meu coração.
Estava disposto a renunciar também à alegria deste início.
Com a mesma tranquilidade repito o “Fiat voluntas tua” [seja feita a tua vontade], a respeito do manter-me à frente deste primeiro posto de serviço, por todo o tempo e em todas as circunstâncias de minha humilde vida, e acerca do sentir-me obrigado, a qualquer momento, a passar ao meu sucessor esta tarefa de proceder, continuar e concluir [o Concílio].
Fiat voluntas tua, sicut in coelo et in terra [Seja feita a tua vontade, assim na terra, como no céu] (Mt 6, 10)” (Roncalli G. Pater Amabilis, Agende del Pontefice: 1958-1963, p. 441).