A violência, o poder e o Outro: crítica ética da violência biopolítica. Artigo de Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz

Foto: Wikimedia Commons | Arquivo Nacional

11 Outubro 2025

“Naturalizar a violência significa condenar a vida humana à perene violência. Se aderirmos a esta tese, a violência se tornaria um médio necessário para fins desejáveis. A violência naturalizada se apresenta como inevitável em todas as relações humanas. A naturalização da violência faz que o outro seja violento por natureza, homo homine lupus. Ainda que essa violência se disfarce e dilua parcialmente nos conceitos de egoísmo racional ou de interesse próprio, estes dispositivos modernos nada mais são do que formas civilizadas de violência natural contida”, escreve o Prof. Dr. Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz. E acrescenta: “Neste marco, a lógica imunitária dos autoritarismos atuais ressurge propondo utilizar como solução aquilo que nos ameaça. Na lógica imunitária, a única via que resta para combater a violência é utilizá-la como ameaça preventiva. Neste suposto, a violência só se neutraliza com mais violência. A violência maior é a única garantia das violências menores. Esta espiral violenta nos condena a viver indefinidamente sob a sombra de um Leviatã personalizado nos autoritarismos de todo tipo, com poder violento suficiente para ameaçar as violências menores. Todos os cenários de naturalização da violência confluem em formas autoritárias de governo.”

As reflexões são fruto da conferência ministrada por Ruiz no V Encontro do GT Filosofia Política Contemporânea, da ANPOF, na Universidade Estadual do Ceará – UECE, em Fortaleza, a partir das ideias reunidas na obra A violência, o poder e o outro. Critica ética da violência biopolítica (Porto Alegre: Fundação Fênix, 2025). O lançamento oficial do livro teve lugar na Biblioteca Estadual do Ceará (BECE), por ocasião do encerramento do Encontro.

Professor titular dos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia da Unisinos, Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz é graduado em Filosofia pela Universidade de Comillas, na Espanha, mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS e doutor em Filosofia pela Universidade de Deusto, Bilbao. É pós-doutor pelo Conselho Superior de Investigações Científicas. Membro da diretoria da Associação Ibero Americana de Filosofia Política (AIFP), coordena o Grupo de Pesquisa CNPq, "Ética, biopolítica e alteridade" e a Cátedra Unesco-Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança. Publicou vários livros, dos quais destacamos: La mímesis humana: la condición paradójica de la acción imitativa (OmniScriptum Management GmbH – EAE, 2016), Os paradoxos do imaginário (Editora Unisinos, 2015) e Direito à justiça, memória e reparação (Casa Leiria, 2010).

Prof. Dr. Castor Mari Martín Bartolomé Ruiz

Eis o artigo.

A violência é o combustível do autoritarismo. E a desconstrução do naturalismo da violência é o pressuposto filosófico para deslegitimar o autoritarismo. Vivemos tempos sombrios em que novos movimentos autoritários se enquistam e progridem socialmente através da imposição de uma cultura da violência. Eles promovem essa cultura da violência de todos os modos possíveis, desde a apologia ao armamento dos “cidadãos de bem”, à produção de inimigos sociais que há que perseguir, combater, expulsar ou exterminar. O objetivo desses movimentos autoritários é estabelecer um estado de guerra em duas grandes dimensões:  um estado de guerra interno contra os inimigos da sociedade, e um estado de guerra externo contra os inimigos do Estado. Ao produzirem uma cultura bélica do estado de guerra permanente, promovem a necessidade da existência de um líder forte, um “Führer”, um Duce ou um caudilho qualquer que transforme o dissenso da política numa confrontação bélica. Assim, novos governantes autoritários emergem como líderes que promovem e se auto-promovem através de uma cultura bélica pré-fabricada.

Na nossa conjuntura, a cultura da violência está se expandindo qual metástase cancerosa por uma grande parte dos tecidos sociais. É particularmente preocupante o rearmamento mundial que está acontecendo como produto da estratégia de guerra “fria” impulsionada por governos autocratas e autoritários, notadamente pelo governo Putin, da Rússia, e pelo governo Trump, dos EUA. Cada um desses governantes possui interesses específicos para promover uma cultura bélica em grande escala, porém ambos coincidem nos princípios políticos e filosóficos de que a guerra é a continuação da política por outro meios, seguindo as teses do militar prussiano Carl von Clausewitz.

Concomitantemente, há uma filosofia da violência subjacente a esse paradigma bélico da política. Nele a violência é um componente natural e essencial das relações humanas e sociais que deve ser gerenciado estrategicamente na forma de combate do inimigo. A política deve entender-se, nesse paradigma, como uma relação amigo – inimigo. Esta tese é oriunda de Carl Schmitt, que por sua vez a reformulou a partir das teses de Hobbes sobre o estado de natureza humano como um estado de “guerra de todos contra todos”.

Há que procurar as raízes filosóficas contemporâneas do paradigma bélico da política, também e talvez principalmente, em outros pensadores das ciências biológicas que serviram de inspiração para os fascismos do século XX e que posteriormente reformularam o naturalismo da violência, ainda que sem vinculá-lo diretamente ao fascismo. Essas teorias que tornam a violência como um instinto natural do ser humano, do qual não podemos nos desfazer, constituem a base filosófica da teoria política da guerra de todos contra todos.

Os novos autoritarismos e a naturalização da violência

A matriz biopolítica do poder moderno produz uma tendência à “biologização” do social, e como consequência do humano. Tal tendência é uma das consequências da guinada da modernidade que tende reduzir a bios a zoe. O social seria um prolongamento do biológico que transforma a política numa gestão eficiente da natureza humana, reduz a política à gestão eficiente da vida, confundido o bem comum com os interesses corporativos. É neste marco que temos de analisar criticamente a raiz da violência moderna, sua radical inserção nas estratégias de objetivação da vida humana.

Naturalizar a violência significa condenar a vida humana à perene violência. Se aderirmos a esta tese, a violência se tornaria um médio necessário para fins desejáveis. A violência naturalizada se apresenta como inevitável em todas as relações humanas. A naturalização da violência faz que o outro seja violento por natureza, homo homine lupus. Ainda que essa violência se disfarce e dilua parcialmente nos conceitos de egoísmo racional ou de interesse próprio, estes dispositivos modernos nada mais são do que formas civilizadas de violência natural contida. Nesse caso, a violência se tornaria, ela mesma, um meio inevitável para um fim desejável; esse fim sempre incluirá a suspeita do outro e a defesa de sua potencial violência. Nesta hipótese, estamos condenados, como verdadeiros Sísifos, a sermos vítimas de nós mesmos. Se a violência é natural, não pode se pensar a sociedade, a política, ou a vida sem o uso instrumental da violência como técnica útil para defender-se dos outros.

Neste marco, a lógica imunitária dos autoritarismos atuais ressurge propondo utilizar como solução aquilo que nos ameaça. Na lógica imunitária, a única via que resta para combater a violência é utilizá-la como ameaça preventiva. Neste suposto, a violência só se neutraliza com mais violência. A violência maior é a única garantia das violências menores. Esta espiral violenta nos condena a viver indefinidamente sob a sombra de um Leviatã personalizado nos autoritarismos de todo tipo, com poder violento suficiente para ameaçar as violências menores. Todos os cenários de naturalização da violência confluem em formas autoritárias de governo.

Para as teses naturalistas, só a violência pode neutralizar a violência. Os outros recursos são percebidos como efêmeros castelos de boas intenções idealistas, que se desmancharam como fumaça ante a violência natural. Este marco discursivo legitima como úteis e necessários um conjunto de dispositivos biopolíticos de governo da violência, entre eles o medo. O medo inerente à violência se torna uma técnica biopolítica eficiente para gerenciar os comportamentos das populações e ajustar as subjetividades. Ele possibilita legitimar o controle exaustivo e capilar da vida como meio necessário para protegê-la. Ainda, o medo justifica o dispositivo bio/tanatopolítico da exceção jurídica que suspende o direito como uma técnica política necessária para manter a ordem em nome da defesa da vida. A vida ameaçada pela violência natural invade, na forma de medo generalizado, o conjunto das relações sociais que demandam mais segurança ao preço de um controle mais intensivo. Os novos autoritarismos apresentam-se como defensores da vida, com a ameaça de uma violência maior. A exacerbação do medo tornou-se a técnica de governo através da qual se consegue a submissão voluntária das populações e a sujeição “livre” dos indivíduos.

Para tentarmos pensar estratégias de neutralização da violência além da pura violência, se faz necessário, inicialmente, uma distinção conceitual entre várias categorias semanticamente afins, embora significativamente diferentes. Conceitos simbólicos como agressividade, conflito, poder e violência são utilizados como sinônimos sem perceber que essa sinonímia encerra uma armadilha conceitual e política que temos que desmanchar para desconstruir o pretenso naturalismo da violência. É comum utilizar indistintamente todos esses conceitos, sem fazer diferenciações semânticas entre eles. A indistinção traz consigo uma confusão conceitual que naturaliza a violência como instinto básico da natureza humana e a torna insuperável nas relações sociais. Não é possível pensar numa superação da violência se englobamos nesse conceito o poder, a agressividade e o conflito, como se todos os conceitos denominassem um mesmo aspecto (violento) do comportamento humano.

É possível criar estratégias que neutralizem, em maior ou menor grau, a violência, porém não podemos pensar uma vida humana e uma convivência social sem tensões agressivas e conflitos de interesses. O conflito é inerente à vida, a violência não! É possível inibir a violência das práticas sociais, mas não é possível uma relação humana sem poder. Isso porque o poder não é assimilável à violência. O poder, no ser humano, há de entender-se como potência, como possibilidade de agir. A potência é constitutiva da ação humana tornando o poder um elemento inerente ao agir. Não é possível uma relação humana sem poder e potência.  Isso não significa que o poder seja sinônimo de dominação ou opressão, o poder pode ser, também, ação criativa, do/ação, cuidado. A distinção entre poder e violência é, entre outras, uma condição necessária para qualificar as formas de poder e diferenciar as violentas daquelas que não o são.

Muitas filosofias pacifistas fracassaram porque idealizaram o ser humano, tornando-o irreal, como sendo bom ou pacífico por natureza. Ao desconhecer que existem pulsões agressivas que se manifestam na forma de conflitos sociais e que ambos são componentes das relações humanas, imaginaram um ser humano que só existe de forma ideal. Por sua vez, correntes filosóficas pessimistas confundiram a agressividade, o poder e o conflito com a violência, defendendo que a violência é parte inerente ao egoísmo natural do ser humano. Com isso naturalizaram o egoísmo como princípio articulador das relações sociais e fizeram da violência um componente natural da convivência humana.

Há uma diferença qualitativa entre a agressividade, o conflito, o poder e a violência. Podemos sustentar que os três primeiros, de muitas formas, são inerentes às relações sociais, porém a violência nada mais é que uma forma perversa de implementar qualquer um. A agressividade, o conflito e o poder, assim como a violência, só existem significados simbolicamente na forma de valores, atitudes, comportamentos, hábitos e ações. O ser humano é o único animal que tem o poder simbólico de significar esses impulsos naturais. Esse “poder” lhe confere a potência de implementá-los de forma violenta ou não violenta. Ele é o único ser vivo que tem a potência de discernir e simbolizar o tipo de prática que pode ou não realizar. Esta abertura simbólica é condição de possibilidade da violência, mas também é o meio através do qual se podem criar meios eficazes para sua neutralização.

A fratura humana & a violência

A violência, em tanto prática social, é perpassada pelo paradoxo humano. A violência é humana porque revela a potência do agir capaz de uma “desumana” destruição intencional do outro. Não resulta fácil condensar a diversidade das violências numa definição, porém, sem pretender exauri-la numa fenomenologia, podemos entender que toda violência age como negação deliberada do outro. Essas duas dimensões - a intencionalidade deliberada e a negação da alteridade - estão presentes, de uma ou de outra forma, em todo tipo de violência.

Temos que admitir que tal negação deliberada do outro só é possível porque há uma prévia abertura do humano para a alteridade. A abertura para alteridade é a condição de possibilidade da subjetividade, que confere ao ser humano a potência da diferença. A especificidade da violência em relação às outras práticas humanas é que age com intencionalidade deliberada de negar o outro. A violência se manifesta como negação do outro, que, ao ser violentado, sofre a anulação da sua alteridade.

Encontramo-nos, pois, com o primeiro paradoxo da violência. Ela, que existe como negação intencional da alteridade humana, só pode ser humana, já que só os seres humanos podem ser violentos. Nenhuma outra espécie animal tem essa possibilidade de ser e de agir violentamente para negar o outro de forma intencional. No sentido estrito do termo, só os humanos somos violentos, entanto os animais são agressivos. Desenvolveremos posteriormente esta importante distinção conceitual que recoloca a violência no terreno da práxis humana e além do mero instinto da espécie.

A condição humana da violência torna-a uma prática histórica e não um a priori transcendental nem uma pulsão naturalista. A historicidade retira a violência da ontologia da necessidade recolocando-a no campo da responsabilidade histórica. A abertura para a alteridade faz do ser humano um sujeito que, cindido em seu ser, pode trans/cender toda ontologia determinista. A cisão originária que fraturou a natureza biológica do humano conferiu-lhe a possibilidade de abertura para além das determinações naturais. Enquanto humanos, estamos condicionados de muitas formas, porém não somos levados naturalmente a cometer a violência, senão que somos responsáveis, em diversos graus, por toda violência. A violência não é um universal que se desdobra nos acidentes históricos, nem obedece à casualidades naturais que a explicam unilateralmente. A violência existe em singular, como uma prática histórica de cada ato violento, de cada sujeito, estrutura, dispositivo ou instituição. Contudo e paradoxalmente, a violência se conjuga em plural: há múltiplas faces da violência, como veremos a continuação.

As sinuosidades que percorrem os becos da violência ofuscam nosso olhar ao ponto de a fazer aparecer como natural. Para neutralizar os novos autoritarismos, há que desnudar, desconstruir, algumas ideologias que naturalizam a violência fazendo-nos acreditar que estamos acorrentados a ela por natureza. Em tal condição, não nos restaria outra saída política senão conviver com a violência como nossa sombra inseparável apelando sempre para mais e maior violência numa circularidade fatídica que nos impulsaria a proteger-nos com aquilo que nos ameaça, seguindo as trilhas políticas de Hobbes: homo homini lupus. Se formos naturalmente violentos, não teremos outra alternativa política do que defender-nos do outro como nosso inimigo potencial. Ou seja, imunizar-nos contra as relações potencialmente violentas do outro e criar dispositivos de gerenciamento racional e útil da violência. Este é um dos pressupostos antropológicos dos discursos biopolíticos da segurança.

A violência histórica e a responsabilidade total

A violência é relativa aos contextos históricos e aos interesses que a produzem. Por isso, sua relatividade nós torna responsáveis por sua existência. A historicidade dos valores, contrariamente ao que algumas leituras do relativismo ético podem preconizar, não dilui a responsabilidade das práticas, muito pelo contrário, nos torna responsáveis por aquilo que criamos. A historicidade dos valores, longe de conduzir-nos a um niilismo desmobilizador, nos responsabiliza por tudo o que fazemos. Somos criadores dos valores e, com consequência, responsáveis por eles e pelas práticas que os legitimam. Dada esta condição, não podemos transferir nossa responsabilidade para uma suposta natureza universal, nem para um a priori transcendental que determinaria ou diluiria nosso modo de agir.

A ênfase na condição histórica da violência, não significa desconhecimento da influência e dos condicionamentos da natureza e da sociedade sobre ela. Porém, há uma diferença qualitativa entre influência e determinação. A primeira remete o sentido do agir da potencialidade humana, a segunda explica-o, em última instância, por causalidades heterônomas. Os condicionamentos da natureza, sociedade e cultura contextualizam a violência histórica, mas não explicam sua condição. Os condicionamentos deixam em aberto a potencialidade ou não de agir de uma ou outra forma. O vazio indeterminado da potência produz a responsabilidade, sempre condicionada, do agir. Somos responsáveis pela violência e pelas vítimas que ela produz. Não há violência sem vítimas, como não há prática humana sem responsabilidade. A irresponsabilidade é própria da pura natureza biológica, que não tem intencionalidade nem ética, por isso não é humana.

A historicidade da violência, além de mostrar a nossa responsabilidade, abre uma brecha crítica para sua possível neutralização; deixa em aberto a possibilidade de criar um critério (ético) que poderemos utilizar para forjar nossas verdades e legitimar nossas práticas. Elaborar o critério ético de nossas práticas também é uma prática de responsabilidade. Mas, sob qualquer hipótese, não podemos sair da criação do sentido, nem da necessidade de estabelecer formas simbólicas de valoração que se tornarão critérios éticos pelos quais somos responsáveis. O paradoxo do humano possibilita que a relatividade das práticas crie valores, tornando a simbolização uma prática constitutiva do ser humano. Somos seres simbólicos, criadores de sentido. Podemos escolher os valores, mas não podemos sair da nossa condição valorativa. Tudo que tocamos se torna uma simbolização valorativa (ética) da realidade. A violência, entanto práxis humana, partilha dessa condição simbólico-valorativa, embora não possa ser reduzida a símbolo. A condição de sermos seres de sentido transfere para nós a responsabilidade dos sentidos que criamos.

A alteridade humana: o critério ético que julga toda violência

Há uma questão aberta a respeito da definição dos critérios éticos que, sendo históricos, se tornam validadores de nossa práxis. A fundamentada crítica dos valores transcendentais própria de nossa contemporaneidade nos impede apelar para legitimações transcendentais ou naturalistas do nosso agir. Resta acolher a interpelação da alteridade como critério (ético) que julgue a validade do agir humano. A alteridade humana conjuga-se sempre em singular, o Outro. Ela existe como diferença que não pode ser reduzida ao meu sentido, nem pode ser cercada por um universal ou restringida a um conceito. A alteridade humana é histórica porque existe na diferença de cada sujeito. Mas, paradoxalmente, é um tipo particular de universal que nos singulariza como humanos. A abertura para o outro é a condição de possibilidade de ser humano. Mas, paradoxalmente, tal universalidade só pode existir na singularidade de cada sujeito. A alteridade humana não é um a priori que determina nosso agir, mas a abertura necessária para agir como humanos. Ela nos mostra o outro ser humano como diferente e semelhante. Irredutível aos meus interesses, inassimilável por meu sentido. A alteridade humana se pro/põe, ela mesma, como o critério ético do agir humano e persiste como interpelação à minha vontade, sendo a interpelação do outro uma dimensão constitutiva do meu modo de ser humano.

Se optarmos, ainda que consensualmente, por transgredir o limiar da alteridade humana como critério social aceitável do agir, entraremos inexoravelmente no campo da barbárie. E os seres humanos já demonstramos fartamente que somos capazes disso. A história humana está encharcada de consensos sociais que legitimaram a barbárie como algo natural ou como mal necessário aceitável. A racionalidade moderna ilustrada também mostrou sua capacidade de legitimar biopoliticamente a transgressão da alteridade como algo “normal”. Historicamente, por exemplo, instrumentalizou o outro nas políticas de Estado que levaram à morte a milhões de indígenas num genocídio normatizado; legalizou-se como estratégia política aceitável pelos  modernos Estados “civilizados” o tráfico, a morte e a escravidão  de milhões de afro-descendentes como algo “normal” e natural; legitimou-se durante os últimos cinco séculos as políticas de dominação colonialista e exploração econômica contra os povos mais indefesos como atos de civilização contra a barbárie. Auschiwtz e Hiroshima, mas também a destruição inumana de Gaza ou a caça e expulsão indiscriminada e até brutal de migrantes são os símbolos da barbárie de sociedades que legitimaram transgredir o limiar da alteridade humana em prol da raça, do progresso da ciência bélica ou da segurança nacional.

Desde a humildade da diferença, a alteridade humana nos olha oferecendo-se como o critério ético que julga nossa práxis. A vida humana sempre é singular, o outro ser humano é um o rosto próximo que torna o outro um semelhante/diferente. Ele revela-se, na sua diferença, como o critério ético e político que nos resta para validar nossas práticas. Se optarmos por apagar este critério ou decidirmos “livremente” transgredi-lo como um ato de pura “liberdade”, teremos diluído a liberdade na pura força tornando a violência o valor maior. Este é o marco agonístico em que vida humana se encontra esticada em nossa contemporaneidade. O ser humano continua a existir entre abismos. Ele é uma vida humana que se oferece à dupla alternativa: pode ser um objeto biopolítico governado e instrumentalizado ou pode constituir-se em alteridade julgadora de qualquer dispositivo de poder.

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