Periferia em guerra. A biopolítica do corpo sobrevivencial. Artigo de Márcia Rosane Junges

Foto: Wikimedia Commons | eflon from Ithaca, NY

08 Outubro 2025

O corpo sobrevivente desenvolve uma epistemologia própria, um saber corporal e situado: aprende a decifrar sinais de perigo, a se mover com discrição ou ousadia conforme o contexto, a tecer redes de solidariedade invisíveis ao poder. A cultura periférica – do funk ao sarau, do pixo à quebrada – é a expressão máxima desta criatividade que brota da necessidade. A sobrevivência, assim, é uma resistência cotidiana e corpórea. Se a periferia está em guerra, se esse conflito se desdobra nas mais diferentes circunstâncias, isso não ocorre sem resistências, insurgências, sem formas-de-vida agonísticas, que têm na luta seu esteio mais fundamental e profundamente estabelecido.

Paulo Ricardo Barbosa de Lima propõe a resistência que brota do asfalto, a potência do comum que se insurge contra qualquer visão fatalista: a afirmação da vida é o fruto dessa analítica da existência, da vida como ato político mais elevado. Em um ambiente no qual a morte social e física paira como uma sombra ameaçadora, a insistência em viver, em criar filhos, em celebrar, em produzir cultura e em manter laços comunitários, além de gestar outras formas de política se constitui no mais radical ato de rebeldia. É de dentro dessa concepção que se desmonta o discurso de que a periferia é um vazio a ser preenchido. Pelo contrário, a periferia é um centro produtor de novos sentidos de vida, de estéticas e de políticas. A resistência não é apenas uma reação à opressão, mas uma força autônoma, criadora, que nasce do asfalto rachado, desafiando as estruturas de poder e reinventando a possibilidade do futuro a partir das margens.

Márcia Rosane Junges é graduada em Jornalismo pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e licenciada em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano. É especialista em Ciência Política pela Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), mestra e doutora em Filosofia Política pela Unisinos e pela Universitá degli Studi di Padova (UNIPD), na Itália, onde realizou cotutela com dupla titulação. É professora permanente do PPG Filosofia da Unisinos e do curso de graduação em Filosofia e uma das jornalistas da equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Coordena o grupo de estudos "A Filosofia Política Pensada pelas Mulheres: Vozes, Ressonâncias e Insurgências"ligado ao projeto de pesquisa em desenvolvimento no PPG Filosofia "Os Dilemas das Democracias Ocidentais: Espetacularização da Política e Recrudescimento do Neofascismo – Diálogos a Partir de Nietzsche e Agamben".

Dentre suas publicações, destacamos: A transvaloração dos valores em Nietzsche e a profanação em Agamben (Cadernos de Filosofia Política da USP, Especial II Encontro do GT de Filosofia Política Contemporânea, nº 28, 2016, p. 97-108), bem como os capítulos de livros Potência-do-não e potência destituinte: uma política como forma-de-vida (ALVES NETO, Rodrigo Ribeiro (org.), Política, direito e economia no século XXI, Rio de Janeiro: Via Verita, 2019, v. 1, p. 203-214) e A potência em Nietzsche e Agamben: aberturas da política e críticas à democracia liberal (VIESENTEINER, Jorge L.; MÜLLER, Maria Cristina; NETO, Rodrigo Ribeiro Alves (org.), Filosofia política contemporânea, São Paulo: ANPOF, 2019, v. 1, p. 68-75).

Eis o artigo.

A periferia urbana brasileira é um território paradoxal, simultaneamente moldado por uma lógica estatal de segregação e controle, mas também palco de uma potente resistência vital que emerge dos corpos e das relações sociais que ali se constroem. A partir (mas não só) das ideias contidas na filosofia política de Giorgio Agamben, Paulo Ricardo Barbosa de Lima olha para este espaço e tece reflexões inquietantes, que estarão em debate no IHU Ideias desta quinta-feira, 9 de outubro, das 17h30min às 19h, com a conferência Periferia em guerra. A biopolítica do corpo sobrevivencial. Para o pesquisador, os trilhos do trem que ligam a periferia ao centro de megalópoles como São Paulo operam como um elemento infraestrutural a uma potente categoria analítica, cumprindo, primeiramente, uma função demarcatória e excludente ao atuarem como uma fronteira física e simbólica que institui e naturaliza a separação entre o "centro" (locus do poder, do capital e da cidadania plena) e a "margem" (espaço da precariedade e da população considerada excedente).

Esta geografia não é acidental, mas produto de um projeto político de segregação socioespacial. Em outro registro, os trilhos reconfiguram a função do controle e circulação. Isso porque a circulação sobre essas estruturas é o mecanismo que regula o fluxo da força de trabalho que se desloca diariamente, permitindo a mobilidade estritamente necessária para o sistema econômico, transportando corpos da periferia para os centros de produção e consumo, nos horários e condições determinados pela lógica capitalista. Os trilhos, portanto, materializam a instrumentalização da vida periférica, além de serem demarcadores especiais de uma guerra vivida diariamente nas periferias brasileiras, longe dos olhos do centro.

Paulo Ricardo fala com conhecimento de causa. Morador da comunidade de Itaquera em sua infância e juventude, atravessava São Paulo em direção ao bairro nobre de Higienópolis, onde estudou: “essa travessia diária produziu algo em meu próprio corpo e evidenciou questões sociais incontornáveis. Na faculdade de Direito, isso se intensificou, porque o meu cotidiano era um choque entre dois mundos completamente distintos: de um lado, Itaquera, a periferia com seus becos, buracos, vielas, quebradas... e de outro, Higienópolis, onde fica o campus da Universidade Mackenzie, a terra da higiene, um dos bairros de elite de São Paulo, com sua assepsia, com suas ruas projetadas, arborizadas, com suas linearidades e sua arquitetura cuidadosamente planejada.” A afirmação integra a entrevista que concedeu ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na qual conta sua trajetória de vida e as investigações acadêmicas que o mobilizam e que descortinaram as reflexões que compartilhará no IHU Ideias de 09-10-25.

Em sua pesquisa de mestrado, Paulo Ricardo enfrentou a ideia dos corpos-sobreviventes, que emergem entre as rachaduras da violência e da potência. Agora, em sua pesquisa de doutorado, em andamento na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, essa categoria ganha centralidade a partir de uma leitura a contrapelo do projeto Homo Sacer, de Giorgio Agamben, pontuando suas lacunas e a insuficiência deste modelo teórico para ler a complexa realidade das periferias do Sul Global, em que pesem os inegáveis acertos que a filosofia política desse pensador oferece para pensarmos o presente de modo crítico. Assim, o corpo periférico é o locus privilegiado da violência de Estado, com execuções e encarceramento em massa, além da violência do tráfico e da violência negligente que se configura na ausência de saneamento, saúde e educação, entre outras políticas públicas que são atribuição e dever estatais. Trata-se de um corpo permanentemente vigiado, criminalizado e exposto à morte.

À revelia desse corpo que parece ser constantemente enquadrado, violado, esquadrinhado e limitado pelo poder soberano, Paulo Ricardo propõe a noção de corpo sobrevivente, aquele que sabe e cria, transcendendo a mera passividade. Sobreviver é um ato cognitivo e político. O corpo sobrevivente desenvolve uma epistemologia própria, um saber corporal e situado: aprende a decifrar sinais de perigo, a se mover com discrição ou ousadia conforme o contexto, a tecer redes de solidariedade invisíveis ao poder. A cultura periférica – do funk ao sarau, do pixo à quebrada – é a expressão máxima desta criatividade que brota da necessidade. A sobrevivência, assim, é uma resistência cotidiana e corpórea. Se a periferia está em guerra, se esse conflito se desdobra nas mais diferentes circunstâncias, isso não ocorre sem resistências, insurgências, sem formas-de-vida agonísticas, que têm na luta seu esteio mais fundamental e profundamente estabelecido.

Pois é das brechas da vida periférica que brota uma filosofia da travessia, de saberes práticos e coletivos, a partir de um sistema de conhecimento transmitido geracional e coletivamente, forjado na experiência concreta de "travessiar" a existência, de transcender as lacunas, as faltas, os silenciamentos. É o saber que orienta como cruzar os trilhos, como negociar conflitos, como acessar recursos escassos e como preservar a dignidade em meio à adversidade. Essa forma-de-vida, para recuperar uma das categorias agambenianas que aponta para a liberdade e a possibilidade de mundos outros, opera como um contraponto essencial ao conhecimento acadêmico formal. Assim, a universidade tem o dever ético e epistemológico de não apenas estudar, mas de aprender com a periferia, reconhecendo a validade e a sofisticação deste saber produzido na prática, no transbordamento de resistências e reinvenções da vida fora do centro.

Estado de exceção permanente e a biopolítica na periferia

Infelizmente, essa resistência não apaga a brutalidade da biopolítica que se reconfigura na periferia a partir da operatividade de um estado de exceção permanente. A análise de Paulo Ricardo Barbosa de Lima sobre o Estado é contundente. Ele argumenta que, nas periferias, vigora um "estado de exceção permanente". Nesse contexto, ocorre a suspensão prática da lei, quando os direitos formais são sistematicamente suprimidos no cotidiano. Nesses espaços, a presença do Estado se dá predominantemente por meio de seu braço punitivo e militar protagonizado pela polícia, e não através de garantias sociais universais.

Pode-se falar, ainda, de uma gestão dos "descartáveis", a partir da qual a ação estatal opera uma lógica biopolítica de gestão de populações consideradas "descartáveis" ou "excedentes". Políticas de "revitalização" urbana, o genocídio da juventude negra e a precarização generalizada são manifestações desta governabilidade que se mistura com a soberania e trata vidas como problemas a serem contidos ou eliminados.

Como contraforça, Paulo Ricardo propõe a resistência que brota do asfalto, a potência do comum que se insurge contra qualquer visão fatalista: a afirmação da vida é o fruto dessa analítica da existência, da vida como ato político mais elevado. Em um ambiente no qual a morte social e física paira como uma sombra ameaçadora, a insistência em viver, em criar filhos, em celebrar, em produzir cultura e em manter laços comunitários, além de gestar outras formas de política se constitui no mais radical ato de rebeldia. É de dentro dessa concepção que se desmonta o discurso de que a periferia é um vazio a ser preenchido. Pelo contrário, a periferia é um centro produtor de novos sentidos de vida, de estéticas e de políticas. A resistência não é apenas uma reação à opressão, mas uma força autônoma, criadora, que nasce do asfalto rachado, desafiando as estruturas de poder e reinventando a possibilidade do futuro a partir das margens.

As ideias de Paulo Ricardo Barbosa de Lima oferecem uma contribuição fundamental para pensarmos o Brasil e também o Sul Global a partir de sua vivência pessoal e das fundas raízes filosóficas que construiu sobre o balanço dos trilhos de trem que o faziam rasgar São Paulo dia após dia. Ao articular a crítica estrutural com uma fina percepção das subjetividades e das táticas de resistência, o pesquisador demonstra que a periferia é o espelho mais fiel e cru de nossa formação social. Seu conceito de corpo sobrevivente é uma ferramenta analítica poderosa para desnaturalizar a violência e, sobretudo, para enxergar a potência política e humana que persiste e resiste nos trilhos e nas quebradas do país.

Paulo Ricardo Barbosa de Lima é advogado, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do ABC – UFABC, com a dissertação Vida nos trilhos: corpo, vida nua e sobrevivência a partir de Giorgio Agamben, e doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES com o projeto de tese Periferia e potência a partir de Giorgio Agamben: da sobrevivência à política-que-vem. Acaba de publicar o romance Samir: corpo em crise, pele em chamas (Mondru, 2025), disponível para aquisição aqui.

Anote e participe

Periferia em guerra. A biopolítica do corpo sobrevivencial

📍 MS Paulo Ricardo Barbosa de Lima – Doutorando na UFES

⏰ 09/10 | 17h30min às 19h

🎥Transmissão ao vivo 

YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=5AzU8s0U5VE

Facebook: https://www.facebook.com/InstitutoHumanitasUnisinos/events

Página inicial do IHU: https://www.ihu.unisinos.br/ 

📌 A atividade é gratuita. Será fornecido certificado a quem se inscrever e, no dia do evento, assinar a presença por meio do formulário disponibilizado durante a transmissão. 

📌O evento ficará gravado no YouTube e Facebook e pode ser acessado a qualquer momento. 

Inscrições e mais informações: https://www.ihu.unisinos.br/evento/ihu-ideias 

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