Continuidades e rupturas de um jovem Foucault. Entrevista com Edgardo Castro

Fonte: Flickr

23 Julho 2022

 

Um longo manuscrito escrito por um jovem Michel Foucault no início da década de 1950, quando era professor na Universidade de Lille, foi traduzido para o espanhol e permite intuir inquietações recorrentes na obra do pensador francês, bem como detectar temas, figuras e perspectivas que decidiu abandonar.

 

A obra, intitulada Ludwig Binswanger y el análisis existencial. Un enfoque filosófico de la enfermedad mental, acaba de ser publicada pela Editora Siglo XXI, editada e com texto introdutório e contextualizador escrito pelo filósofo Edgardo Castro e pela antropóloga Senda Sferco.

 

O livro também inclui um texto a modo de conclusão em que a filósofa Elisabetta Basso reconstrói o ambiente intelectual que cerca os anos de escrita do manuscrito e quais traços dele e da biografia de Foucault estão refletidos em mais de 200 páginas.

 

A relação deste pensador com Binswanger, na época um famoso psiquiatra suíço que tratou, entre outros, do historiador Aby Warburg; as críticas à psicanálise; a formação e o afastamento da fenomenologia; a redefinição da doença mental; e até mesmo os atritos entre filosofia e psicologia aparecem no livro.

 

Assim como também na conversa que Revista Ñ teve com Castro, filósofo, pesquisador do Conicet, diretor da série Fragmentos Foucaultianos, da Siglo XXI, à qual pertence a nova obra, e autor, entre outros livros, do Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores (Editora Autêntica).

 

A entrevista é de Alejandro Cánepa, publicada por Revista Ñ, do Clarín, 19-07-2022. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Vocês advertem no prólogo “para não cair na tentação de procurar aqui uma origem que contenha de maneira disfarçada” os desenvolvimentos posteriores de Foucault. Não obstante, que elementos e inquietações dele estão insinuados ou latentes nesta obra?

 

A primeira coisa a ter em mente é que com este livro se dá um fenômeno que também acontece em outros filósofos como Hegel ou Marx, quando em determinado momento as obras da sua juventude começam a ser publicadas. Ser e Tempo, de Heidegger, surgiu do nada quando eu era estudante. Agora, em vez disso, conhecemos cursos e milhares de páginas escritas anteriormente por ele. Assim, começa-se a ler esses filósofos de outra maneira. A mesma coisa aconteceu no início do século XX com a publicação dos escritos da juventude de Hegel. Ora, o que esta época nos diz sobre o jovem Foucault?

 

Em primeiro lugar, representa uma maneira de abordar os problemas. É mais uma forma de problematizar do que de resolver. Aqui surge a questão da doença mental, que é algo que acompanhará Foucault por muito tempo. Em segundo lugar, neste livro está a ideia de Foucault de sair das grades tradicionais que eram usadas para conceituar a doença mental, especialmente as da psiquiatria e da psicanálise da época. Em terceiro lugar, o que este texto e outros a serem publicados mostram é a recepção da filosofia clássica alemã, de Hegel, Husserl, Heidegger, Marx, Nietzsche, etc. Vê-se esses três elementos da obra de Foucault nessa obra e são projetados no restante da obra. Por outro lado, está prestes a ser publicada a tese de Foucault sobre Hegel. No que foi publicado durante a vida de Foucault havia pouco de Hegel e agora teremos uma tese.

 

Como uma espécie de contrapartida à primeira pergunta, que aspectos muito presentes nesta obra foram posteriormente diluídos na produção de Foucault?

 

A ruptura com Binswanger, principalmente. Já no final do livro é mais crítico com ele. Binswanger é um laboratório conceitual para Foucault e, depois deste trabalho, não mais assumirá posições próximas a ele. No entanto, o modo como Foucault se separa de Binswanger só pode ser entendido a partir da análise que faz neste livro. Há sempre continuidades e rupturas em Foucault. Nesta obra há uma preocupação sobre como um problema é construído e em que medida Binswanger é utilizado para isso, como ele utilizará posteriormente Nietzsche e Marx. E como dialoga com a tradição clássica, com Hegel, com Husserl? Como devemos entender a experiência? E como devemos entender a doença? Existe realmente uma doença ou temos que entender o paciente em toda a sua dimensão antropológica? Não quero dizer que a História da loucura esteja neste livro, mas quero dizer que a problematização que está na História da loucura começa a ser construída aqui.

 

No livro, são assinaladas as críticas de Foucault à psicanálise por não se desvincular de uma "raiz biologicista". Que outras deficiências você aponta em relação a essa corrente?

 

A palavra que deve ser usada para definir a relação entre Foucault e a psicanálise é ambígua. Teve momentos de reaproximação e outros muito críticos. Neste curso há a questão do "bios", que se refere tanto à biologia quanto à biografia, e ambos os sentidos entram na psicanálise. Por um lado, há a dimensão da história pessoal, biográfica, e, por outro, uma compreensão bastante naturalista da sexualidade e do instinto. E é preciso dizer que essas críticas à psicanálise eram bastante comuns na época. Em O Ser e o Nada, em que Sartre levanta a ideia da psicanálise existencial, a mesma crítica é feita a Freud: a herança biologicista, médica e outras. Este texto articula esses dois elementos em torno da reflexão sobre o "bios". Há uma forte crítica às raízes biologicistas da psicanálise e uma reavaliação do aspecto biográfico e histórico, uma vez que a psicanálise a leva muito a sério.

 

Em que sentido Foucault se forma e se distancia da fenomenologia?

 

Foucault foi formado na fenomenologia. Um texto da época, fundamental, são as Investigações Lógicas de Husserl e as Meditações Cartesianas. A crítica à fenomenologia é que ela já pressupõe um mundo constituído. Seria preciso começar explicando que grande parte da filosofia de Husserl é um esforço para não cair no psicologismo, para esvaziar a filosofia da psicologia. Foucault quer mostrar aqui que o doente mental mostra que não esvaziou tanto essa consciência de uma dimensão psicológica, no sentido de que o doente mental constitui um mundo, não toma isso como dado. Não há mundo do qual emergiriam os significados. O doente mental constrói um mundo. Que é um projeto, uma forma de articular a existência. É uma forma diferente do habitual, tudo bem, mas enfim é uma forma de articular a existência, uma forma de temporalidade, uma forma de espacialidade e uma forma de pensar a alteridade.

 

A figura de Binswanger estava diminuindo em termos de sua repercussão, apesar de ter se tornado muito famoso. Por que isso aconteceu?

 

Sobreveio o sucesso da psicanálise lacaniana, seja na França ou na Argentina. E, por outro lado, o enfraquecimento das correntes existencialistas. E aí há um fogo cruzado sobre a figura de Binswanger. O seu nome já não ressoa, é verdade, mas é uma família de referência para a psiquiatria europeia. Binswanger foi um dos amigos mais constantes de Freud. E nos anos 40, na França, foi a novidade. Havia a “moda Binswanger”. Depois, claramente Lacan ocupou esses espaços.

 

Sabe-se que depois de conhecer Binswanger pessoalmente, Foucault se recusou a publicar este manuscrito. Por que tomou essa decisão?

 

Há uma série de cartas entre Foucault e Binswanger, e espero que um dia sejam publicadas. Foucault visitou Binswanger. E há um intercâmbio epistolar em que se vê como Binswanger e Freud finalmente discordam sobre a noção de existência. Sobre a relação de alteridade com o terapeuta, Binswanger propõe uma teoria muito essencialista do amor, que é uma forma de autoritarismo nessa relação. E Foucault não compartilha esse olhar. Acho que foi por isso que Foucault desistiu de publicar este manuscrito.

 

Como imagina que a publicação dessa obra de Foucault modificará a interpretação geral de toda a sua produção?

 

Mudará a leitura que faz dos clássicos alemães, como Hegel. Neste texto em particular, destacam-se a noção de “bios”, a noção de experiência e a problematização da história. E vamos começar a entender muito melhor como foi construído aquele grande conceito foucaultiano de um a priori histórico, que começou a se formar nessa época e sobre o qual Foucault acabou construindo História da loucura e As palavras e as coisas.

 

Embora não seja o objeto central deste livro, como aparece em Foucault a relação entre filosofia e psicologia? Como é a ligação que ele propôs entre as duas disciplinas?

 

Em 1952, o curso de Psicologia na França era novíssimo. Foucault faz as duas graduações e, a certa altura, planejou fazer uma tese sobre a filosofia da psicologia. E estuda detalhada e profundamente o campo da psicologia. E a psicanálise também, pois estudou a obra de Binswanger. Para Foucault, a psicologia sempre foi um lugar de intervenção filosófica, não de fora. Finalmente, Foucault se decide pela filosofia. Eu entendo (risos).

 

A rivalidade histórica entre as duas disciplinas…

 

Bem, a filosofia tem alguns milênios...

 

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