‘Império’ de Negri e Hardt 25 anos depois: a atualidade de um pensamento radical contra o imperialismo. Entrevista especial com Giuseppe Cocco e Felipe Fortes

Na perspectiva dos entrevistados, o desafio hoje é defender o “Ocidente desde baixo”, aquele associado às lutas sociais, aos migrantes, à circulação de saberes e cooperação social, bem como da reinvenção democrática

Arte: Alexandre Francisco/IHU

30 Setembro 2025

Antonio Negri e Michael Hardt são autores de uma obra incontornável para pensarmos as transformações da política na virada do século XX para o XXI, propondo formas de compreensão do fenômeno para além de um esquema “neoliberal” ou “de esquerda”. De algum modo, os autores tocavam em pontos sensíveis (para não dizer tabus) de ambos os espectros políticos. “Enquanto parte da esquerda lamentava o ‘fim da história’ e o neoliberalismo e só conseguia propor soluções transcendentes, como a reforma nostálgica do Estado-nação ou uma revolução tão radical quanto abstrata, sem lastro subjetivo, Negri e Hardt tiveram a coragem de ler as entrelinhas desse processo, tal como se apresentava: múltiplo, contraditório, ambivalente, mas prenhe de resistências”, propõem Giuseppe Cocco e Felipe Fortes, em entrevista por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Há duas categorias centrais na obra, a Multidão e o trabalho imaterial, que reconfigura o modo como compreendemos os agentes sociais e suas relações. “O livro introduz a Multidão como sujeito político constitutivo: trabalhadores imateriais, migrantes, ativistas, pessoas conectadas (em rede), que vivem as tensões da globalização com capacidade de resistência e auto-organização. Outra tese central é que o trabalho imaterial, aquele que produz afetos, conhecimentos, comunicação, torna-se hegemônico, não só economicamente, mas na própria forma de vida e reprodução social”, explicam.

O intervalo de duas décadas e meia da primeira edição não tornam o livro desatualizado. O que está em disputa hoje é, tomando como ponto de partida a obra, uma compreensão menos vulgar do significado de Ocidente, que, em vez de ser combatido, deveria ser melhor compreendido em sua complexidade. “Mas esse ‘Ocidente globalista’ ou o ‘Ocidente coletivo’, como repete Putin, e que os novos autoritarismos procuram destruir, não corresponde ao Ocidente desde cima, das elites, dos aparelhos militares e financeiros, nem tampouco à história sangrenta do colonialismo. O que está em jogo, e sob ataque, é o Ocidente desde baixo: o das lutas sociais, dos migrantes, da circulação de saberes, da cooperação social e da invenção democrática. É nesse Ocidente, múltiplo, mestiço, aberto, que ainda se pode apostar”, frisam os entrevistados.

“A alternativa está necessariamente ligada às três dimensões: recompor o que está sendo desfeito e, ao mesmo tempo, reinventar para além daquilo que foi derrotado. Não se trata de voltar ao ciclo anterior da globalização, mas de o retomar, ainda mais atravessada por novas formas de cooperação, por direitos transnacionais e por uma democracia que não se limite às fronteiras nacionais. A própria crise climática mostra isso com clareza: não há saída ecológica sem reinvenção democrática, sem novos levantes e sem uma globalização capaz de articular respostas comuns”, complementam.

Giuseppe Cocco | Foto: Acervo IHU.

Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Leciona na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e é editor das revistas Lugar Comum e Multitudes. Entre outros livros, publicou: New Neoliberalism and the Other: Biopower, Antropophagy and Living Money (Lexington Books, 2018), em parceria com Bruno Cava, Entre cinismo e fascismo (Autografia, 2019), Dopo la marea (Derive e Approdi, 2021) e, em parceria com Bárbara Szaniecki, O making da metrópole: rios, ritmos e algoritmos (Rio BOOKS, 2021).


Felipe Fortes | Foto: Arquivo pessoal.

Felipe Fortes é pós-doutorando pelo PPG de Comunicação e Cultura da UFRJ, bolsista da FAPERJ e doutor em Filosofia. É mestre em Filosofia pela PUCRS onde desenvolveu uma pesquisa como bolsista integral do CNPq sobre a problemática ontológica do empirismo transcendental na obra de Gilles Deleuze

Confira a entrevista.

IHU – Império de Negri e Hardt foi publicado, pela primeira vez, há 25 anos. O mundo era, evidentemente, outro. Os EUA eram ainda uma potência global pujante, que hoje é vista em declínio. Podem nos falar sobre o que é este livro e como ele continua atual?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – Em primeiro lugar, precisamos enfatizar que não estamos vivenciando o declínio dos Estados Unidos (ou do “Ocidente”). O que importa, aqui, não é o velho debate entre declínio e antideclínio, um refrão cíclico da política americana, mas a ruptura qualitativa representada pelo trumpismo em associação, direta ou indireta, com outras forças autoritárias. Estamos assistindo, por um lado, à emergência da China e, pelo outro, ao declínio da democracia, sendo que essa é uma das caraterísticas do Ocidente (os Estados Unidos são a primeira democracia da história). Os dois fenômenos, aliás, não são separados. O projeto hegemônico chinês é abertamente autoritário. O projeto de Donald Trump nos Estados Unidos (o do movimento MAGA - Make America Great Again) também é autoritário. Do lado dela, a China apoia a agressão russa contra a soberania ucraniana e ameaça – mesmo que indiretamente – a própria Europa. Ao mesmo tempo, a China é implacável com seus “palestinos”: a etnia uigur de religião muçulmana.

O governo Trump 2.0, por sua vez, também ameaça a Europa e todos seus aliados: desde o Canada até o Brasil, passando pela Dinamarca. Há, contudo, três diferenças entre a China e os Estados Unidos:

- a primeira é que a deriva autoritária de Trump ainda não acabou por inteiro com o sistema de pesos e contrapesos da democracia americana, embora cada semana que passe acelere esse processo;

- a segunda é que, embora a China seja cada vez mais poderosa, os Estados Unidos continuam tendo o poderio militar, econômico e tecnológico mais importante;

- a terceira é que no Brasil e mais em geral no campo da esquerda, ao passo que se fecham os olhos sobre a China (e às vezes até diante da agressão russa contra Ucrânia) se confunde a virada autoritária do trumpismo com a política geral dos Estados Unidos.

Trata-se de um duplo e muito grave erro: um erro de análise e um erro político. Fala-se de “imperialismo” americano no atacado e assim relativiza-se o papel do governo de Trump. Enquanto se fala em “imperialismo americano” de forma genérica se acaba relativizando o papel específico do governo Trump. No entanto, a diferença entre Biden e Trump é gritante, visível até para o mais obtuso dos observadores. Basta lembrar: se a vitória de Trump traz consequências nefastas imediatas, como para a guerra em Gaza, a presidência de Biden foi decisiva para frustrar o projeto de golpe armado pelo bolsonarismo no Brasil em 8 de janeiro de 2023. Trump, ao contrário, faz de tudo para reerguê-lo. Veremos ao longo da entrevista se o debate sobre o livro Império, 25 anos depois de sua publicação, permite apreender as razões de fundo desses dois erros.

Publicado em 2000, Império foi uma das tentativas mais completas e inventivas de interpretar as transformações do capitalismo após o fim da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim, no auge da globalização. Era o momento dos levantes por dentro da globalização, de Seattle a Gênova (passando pelo Fórum Social Mundial de Porto Alegre), e da emergência de redes transnacionais de ativismo, de migrantes e de precarizados. É nesse terreno histórico que a obra de Negri e Hardt se inscreve. Enquanto parte da esquerda lamentava o “fim da história” e o neoliberalismo e só conseguia propor soluções transcendentes, como a reforma nostálgica do Estado-nação ou uma revolução tão radical quanto abstrata, sem lastro subjetivo, Negri e Hardt tiveram a coragem de ler as entrelinhas desse processo, tal como se apresentava: múltiplo, contraditório, ambivalente, mas prenhe de resistências.

O paradoxo, insuportável para muitos críticos, era que o livro afirmava que o Império era, ao mesmo tempo, um “não-lugar” e que, justamente por isso, não admitia um Fora, isto é, as lutas aconteciam todas dentro dele. A consequência era clara: não se tratava de recusar o Império, mas de disputar seu interior, lutar por dentro da globalização, acelerando suas tendências mais democráticas.

Como Negri escreve em 1999, em uma carta dirigida a um de nós (Giuseppe Cocco)[1], hoje parte de nosso arquivo de trabalho coletivo que estamos revisitando, o problema era o de descobrir alegremente, com as lutas, novos modos de como “viver no Império”. Em Mille Plateaux, Gilles Deleuze e Félix Guattari escreveram: “Nous avons écrit L’Anti-Œdipe à deux. Comme chacun de nous était plusieurs, ça faisait déjà beaucoup de monde” [“Escrevemos o Anti-Édipo juntos. Como cada um de nós éramos vários, isso já era muita gente – em tradução livre]. Algo semelhante poderia ser dito por Negri e Hardt a propósito dos livros que escreveram em coautoria. Mas, justamente pela multiplicidade de vozes e referências que mobilizaram, é possível perceber que havia também tensões e dissensos entre eles quanto ao significado da noção de Império.

Reprodução da capa de Império.

A carta de Negri revela uma “pegada” bastante distinta daquela da dedicatória escrita por Hardt no exemplar que me enviou (em italiano): “Finalmente un primo colpo contro l’Impero!”[2] [“Enfim, um primeiro golpe contra o Império” – em tradução livre]. Essa diferença se tornaria evidente já na primeira grande crise do Império: a que se seguiu aos ataques de 11 de setembro de 2001, quando Negri definiu a resposta de George W. Bush Jr. como um verdadeiro “golpe” contra o Império. Ainda assim, em Multitude (2004), ao tratar do “excepcionalismo norte-americano”, eles sustentam que os Estados Unidos – nas guerras do Afeganistão e do Iraque – atuaram como uma espécie de polícia de uma governança pós-soberana.

Naquele momento, a força da proposta de Negri foi de pensar o Império como algo que ia muito além do papel dos Estados Unidos. Em um certo sentido, ele antecipava um declínio dos Estados Unidos como abertura que valorizava aquilo que de mais potente e democrático os atravessava. Esse declínio não tinha nada a ver com “o” declínio desejado pelos intelectuais anti-imperialistas latino-americanos que tinham ficado duplamente desnorteados: pelo fim da União Soviética e pela própria dinâmica de “livre comércio” que a globalização promovia, desarticulando todos os projetos nacional-desenvolvimentistas. Para Negri, o making do Império significava o fim do imperialismo e isso fez, ao mesmo tempo, o grande e inesperado sucesso do livro e a onda de críticas que ele recebeu do campo da esquerda.

A difusão do livro (e dos que seguiram, particularmente Multitude) colocou as críticas das esquerdas na defensiva: ao passo que alguns autores se manifestavam de maneira veemente, outros apostavam na homologação, ou seja, num diálogo crítico com as teses de Negri: sem poder evitar de reconhecê-lo, tratavam de voltar ao horizonte de sempre, quer dizer à procura do Fora. Ao contrário do que ocorreria na fase final de sua vida, naquele período ele se manteve bastante firme. Um exemplo: propôs a Giuseppe Cocco a escrita de um livro que respondesse às críticas vindas da América Latina, projeto que resultou em GlobAL: Biopoder e luta em uma América Latina globalizada (Record, 2005). Em 2007, quando um de seus tradutores espanhóis tentou organizar, na Universidad Complutense de Madrid, um encontro entre Negri e intelectuais críticos da globalização (Giovanni Arrighi, David Harvey, Emir Sader, entre outros), ele recusou o convite [3].

Por fim, podemos reunir as críticas a Império em três grandes grupos. O primeiro é composto pelos neossoberanistas (por exemplo, os ligados ao Le Monde Diplomatique). Em seguida, havia os populistas – que desempenharam um papel importante em alguns governos sul-americanos como o da Bolívia, do Equador e da Venezuela – inspirados pelo trabalho de legitimação dos populismos como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. O terceiro grupo foi aquele dos pensadores que procuraram reafirmar um discurso anti-Império a partir da revitalização da noção de “colonialidade”.

Embora as atribulações da oposição ao projeto bolsonarista possam dar a impressão de que todos lutam pela democracia, a realidade é bem mais ambígua. Salvo raras exceções, muitos dos que se apresentam como defensores da democracia, aqui, piscam o olho para o campo autoritário, alinhando-se a posições pró-Rússia e/ou pró-China, isto é, contra o Ocidente enquanto tal. Por que diferentes linhas críticas acabam convergindo nesse vergonhoso apoio ao autoritarismo russo-chinês? Porque, no fundo, compartilham um mesmo traço essencialista. É isso que significa defender a lógica do “Fora”: todas essas narrativas (que não são marxistas, pelo menos não com um marxismo que leve em conta o ponto de vista das lutas) tratam o Ocidente como um bloco monolítico, em que lutas operárias, direitos humanos e democracia não passam de “hipocrisia”. No limite, não diferem muito do discurso da extrema-direita quando esta desdenha os direitos humanos.

Ao contrário de tudo isso, Império propõe que vivemos uma nova ordem mundial, não mais centrada nos Estados-nação ou no imperialismo clássico, mas num regime de soberania global em rede. Esse horizonte foi embora e a soberania volta com tudo. Mas essa volta é o retorno do fascismo (mesmo que seja de novo tipo) e o retorno da guerra de alta intensidade.

Essa ordem da soberania global em rede (deveria) se sustentar em instituições transnacionais, organismos jurídicos internacionais, fluxos econômicos e culturais, grandes corporações e formas difusas de poder – biopolítico, jurídico, militar, financeiro – que atuariam de modo descentralizado, mas articulado. Um terreno que ia se construindo como base nos ciclos de lutas que começaram em 1968. O livro introduz a Multidão como sujeito político constitutivo: trabalhadores imateriais, migrantes, ativistas, pessoas conectadas (em rede), que vivem as tensões da globalização com capacidade de resistência e auto-organização. Outra tese central é que o trabalho imaterial, aquele que produz afetos, conhecimentos, comunicação, torna-se hegemônico, não só economicamente, mas na própria forma de vida e reprodução social

Por fim, Império não é um livro apocalíptico, nele não encontraremos nenhuma fagulha de um pensamento do “fim do mundo”. Ao contrário de parte da retórica fraca que constitui também o pensamento do Antropoceno, que muitas vezes se ancora em narrativas de catástrofe planetária insuflando involuntariamente a paralisia política, a perspectiva de Negri e Hardt insistia em mapear as condições produtivas e constituintes do presente, reconhecendo que esse novo regime de poder oferece rupturas, fissuras, contradições, linhas de fuga imanentes, e aposta nessas brechas como locais de constituição de democracia real, na potência dos poderes constituintes da multidão.

Para nós, que partilhávamos de sua leitura, Império foi algo comparável ao Manifesto Comunista para sua geração: um livro que não apenas descrevia o presente, mas o condensava em uma narrativa capaz de mobilizar lutas e imaginar futuros. É importante lembrar que o conceito de Império não se reduzia a uma leitura da hegemonia americana. Ao contrário: deslocava a análise do eixo nacional-estatal para uma configuração global, mostrando que os EUA eram parte – central, mas parte – de uma arquitetura mais ampla de poder. Essa era uma diferença crucial em relação a leituras que viam apenas a hegemonia americana como o inimigo a ser combatido. O Império, como ordem mundial, era mais do que a soma da potência dos EUA: era um nomos planetário, uma forma de governo da globalização.

Vinte e cinco anos depois, com a crise da globalização e o refluxo dos ciclos de luta democráticos, Império pode parecer esquecido ou deslocado. Mas talvez estar deslocado em relação ao presente seja precisamente a sua virtude extemporânea, para falar como Nietzsche. A globalização, que nos anos 1990 e até a metade do que vivemos nos 2000, abria também espaços de invenção e de lutas transnacionais, entrou em crise. Nesse vácuo, o Fora do Império aparece, como o novo dentro, não como alternativa emancipatória, mas como fechamento autoritário da globalização: com Trump, Putin e tantos outros que projetam uma reterritorialização regressiva, nacionalista e fechada do espaço global. Foi nesse contexto que, com Adriano Pillati, no texto “Crise da Democracia e Império: 25 anos depois”, fizemos o esforço de repensar Império (criticando Negri e Hardt em suas formulações posteriores) como diagnóstico ainda atual daquilo que está em jogo: a disputa pela democracia planetária. Como pensar as lutas e as alternativas na crise da globalização, da democracia e da multidão, portanto, da crise do próprio Império? Devemos partir daí.

IHU – Multidão é outro conceito central neste livro. Como os autores a definem e que exemplos no mundo contemporâneo o exemplificam? Há na multidão uma pulsão de morte, representada nos invasores ao Capitólio ou nos vândalos de 8 de janeiro?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – A invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 e a dos Palácios em Brasília em 8 de janeiro de 2023 não foram expressões da multidão, mas sim do seu contrário. A turba que atacou Washington representava a face oposta das multidões que insurgiram em Minneapolis e em tantas metrópoles americanas após o assassinato de George Floyd, em 2020. Do mesmo modo, a turba que depredou os palácios dos Três Poderes em Brasília era o reverso das multidões de junho de 2013, quando corpos ocupavam os tetos dos prédios, não para depredar, mas para reinventar o espaço público como território do comum. Da mesma forma que os paramilitares trumpistas atenderam ao chamado direto do poder – Trump os convocou diante da Casa Branca, incitou o ataque ao Congresso e retardou deliberadamente o envio de reforços policiais —, os bolsonaristas que saquearam os prédios dos Três Poderes agiram amparados por uma logística militar que os abrigou por semanas diante dos quartéis, com a cumplicidade da polícia do DF e vestidos com a camiseta da seleção canarinha. Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, esses golpes fracassaram porque seus “chefes” não se sentiram suficientemente seguros e isso pelo fato que a lealdade às instituições democráticas lhes colocava riscos que não queriam correr. A multidão só existe em seu próprio fazer-se e, por isso, é a negação da pulsão de morte, essa mesma que se expressou nos dois episódios mencionados, mas também na deriva de regimes que, como o chavismo ou o evismo (de Evo Morales), assumem uma coloração de esquerda.

Portanto, uma definição mais filosófica seria a de que a multidão é um agenciamento de singularidades cooperantes no, pelo e do comum, outro conceito fundamental em Negri. Sociologicamente, ela pode ser compreendida como a classe social pós-operária, que emerge da leitura inventiva do método operaísta da luta de classes e da recomposição das lutas no pós-fordismo. Onto-historicamente, Negri ainda interpreta a multidão como o sujeito encarregado de um processo liberatório e constituinte que atravessa a modernidade: primeiro como classe operária, depois como operário social, até desaguar na pós-modernidade como esse enxame multitudinário de novas lutas e subjetividades que já não cabem na caixinha do operariado clássico.

Mas a multidão não é apenas um conceito abstrato: para nós, especialmente, ela apareceu concretamente nas Primaveras Árabes, por exemplo, e, no Brasil, na juventude metropolitana que encarnou Junho de 2013. Foi ali, para usar a imagem de Bruno Cava, que a “multidão atravessou o deserto”: ou seja, navegou as dinâmicas por dentro e contra o “ciclo do progressismo” latino-americano, ao mesmo tempo em que enfrentava os desafios do neoliberalismo. Negri acompanhou apenas parcialmente essa leitura, e isso mostra a riqueza do debate que ele mesmo colocou, mesmo além de suas próprias formulações. As multidões se constituíram também no Chile, com El Estallido, em 2020-21. Como no Brasil em 2013, temos as duas dimensões desse fazer-se das multidões: a dimensão sociológica da luta pela mobilidade nas metrópoles e a dimensão ontológica da política de radicalização democrática, essa que nos falta hoje para combater o fascismo também nas mobilizações e nos levantes.

Em suma, os movimentos de extrema-direita não são expressões da multidão, mas sim das massas ou do povo em sua face fascista. Mas, para além de Negri, precisamos reconhecer um fato: os ciclos de luta multitudinários foram derrotados. Onde a pulsão de morte se manifesta, paradoxalmente, é justamente no fascínio de amplos setores da esquerda – tanto a que se apresenta como moderada no Brasil quanto a que se reivindica radical na Europa – por regimes ou movimentos autoritários. Hoje, o único lugar em que se combate o fascismo em nome da democracia é na Ucrânia. No meio da desglobalização e na crise da democracia, a resistência ucraniana é um vetor de aceleração democrático existente, mesmo por dentro da guerra de alta intensidade. E, no entanto, praticamente toda a esquerda latino-americana, quando não se coloca diretamente ao lado do imperialismo russo, deixa de apoiar a luta ucraniana: se não o faz de forma aberta, justifica-se em nome de um pacifismo que, na prática, significaria uma nova escravidão para os ucranianos e uma ameaça mortal para o campo democrático mundial.

Onde o léxico negriano precisa ser radicalmente revisto é no que diz respeito à relação entre poder constituinte e poderes constituídos e, nesse sentido, o caso Brasileiro e do STF é importante também no plano conceitual. Um exemplo desse esforço é o dossiê que organizamos na edição nº. 70 da Lugar Comum, dedicado a “Levantes/Revoluções”, que oferece pistas relevantes para repensar essa questão [4].

Na aceleração reacionária e na crise do Império, a extrema-direita esteve mais próxima de derrubar o poder constituído e impor uma “nova constituição” – ainda que regressiva – do que as esquerdas. No Brasil, foi o poder constituído, especialmente o STF, que barrou o golpe de Estado. Ao mesmo tempo, experiências latino-americanas que apostaram em novas constituintes resultaram em regimes autoritários, como na Venezuela. Estamos diante de um enigma que se abre novamente: a relação entre movimentos sociais, instituições e democracia. E, como sempre, os problemas vêm antes dos conceitos. Para usar uma imagem deleuzeana, os conceitos são como detetives que chegam sempre depois, para investigar. Quando o campo problemático muda, da era do Império ao pós-Império, os conceitos também precisam mudar, precisam ser remobilizados e reposicionados diferencialmente. Embora o pensamento da multidão tenha carregado resíduos da relativização marxista do Estado de direito e do papel crucial do sistema de freios e contrapesos, aquele que até hoje nos salvou no Brasil e que Trump vem atacando com afinco nos Estados Unidos, talvez o problema esteja no peso quase absoluto dado à noção de “poder constituinte”. Ainda que o pensamento de Negri não tenha exercido influência direta nas trajetórias venezuelana ou boliviana, ele se deixou usar por parte desses regimes que tinham – desde o início – um viés autoritário cujo desfecho já conhecemos. Os esforços teóricos de pensar as dinâmicas instituintes podem ser uma referência importante nesse aspecto e servir como uma contramedida.

IHU – Em um texto recente, vocês escreveram que não há saída do Império? Por que não há? Diante disso, o que fazer?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – O tom da pergunta parece indicar uma angústia com a “ausência de saída”. O que é angustiante é na realidade a saída e hoje ela aparece nas faces de Trump, Putin e Xi Jinping, explicitamente como ela é: um novo fascismo cuja base material é um regime de acumulação que mobiliza novos níveis de automação da inteligência (aqui temos um debate sobre a automação do General Intellect sobre o qual será interessante voltar em uma próxima entrevista). O sistema de “crédito social” (vigilância, censura, notação massivas) montado pela China é essa “saída”. Os policiais mascarados (do ICE) que caçam os migrantes nas metrópoles americanas fazem esse trabalho do fora. O fora são os mísseis e drones russos que atacam as cidades ucranianas e até aquelas da Polônia. O fora é a limpeza étnica de Trump e Netanyahu em Gaza e a colonização messiânica da Cisjordânia. Mas o fora é também o Hamas e o regime iraniano bem como a cúpula de Beijing onde encontra um lugar de destaque o sátrapa norte-coreano com sua sucessora de apenas 13 anos.

É importante lembrar que foram Negri e Hardt que definiram o Império como um espaço sem Fora, sem exterior, isto é, uma forma de soberania que articula a produção em escala planetária, englobando todas as dimensões da vida social. Essa articulação, contudo, era profundamente ambivalente: se por um lado eliminava os espaços de exterioridade, por outro ampliava os próprios antagonismos, pois evidenciava que a cooperação produtiva da multidão é a verdadeira fonte da riqueza, criando assim as condições para novas dinâmicas constituintes. No entanto, quando retomam essa leitura vinte anos depois, em um artigo na New Left Review, os dois parecem admitir que a multidão só poderia construir uma democracia radical ao criar um espaço externo ao Império. Ora, eles voltaram lá onde Negri não queria ficar: enredado ao pensamento do Fora, portanto, reféns, para pensar as dinâmicas das lutas, de uma lógica de transcendência.

No texto que escrevemos, interpretamos essa reformulação como um sintoma da crise interna do próprio pensamento de Negri, marcado por sua dificuldade em reconhecer a derrota dos ciclos de lutas multitudinários. Não por acaso, é também o momento mais meditativo de sua obra, quando ele passa a revisitar a própria trajetória em chave quase revisionista, preocupado com a posteridade, como na sua autobiografia em que se apresenta como um “bom comunista”.

Nossa provocação foi afirmar, ao contrário, que não foi a multidão que buscou um Fora do Império, mas sim os projetos autoritários – inclusive os de esquerda – que ocupam esse espaço e buscam erigir nele um fechamento regressivo. A multidão, ao contrário, buscou acelerar as dinâmicas democráticas internas à própria forma-Império. São Trump, Putin e Xi – para citar apenas os principais – que ameaçam destruir a dimensão constitutiva, multitudinária, que havia dado forma ao próprio Império. Daí a necessidade de insistir na imanência radical: assumir o Império não só como campo de lutas, mas como resultado das próprias lutas. Que o Império americano esteja em crise, e o trumpismo é parte ativa desse processo, explica apenas parcialmente que estejamos diante da crise do Império. O que explica a crise do Império é a desglobalização generalizada: a crise global da democracia e o refluxo dos levantes democráticos e claro, aqui, o trumpismo é um agente ativo dessa desglobalização e crise generalizada.

A crítica de esquerda à globalização, muitas vezes confundida com a crítica ao neoliberalismo, foi, em grande parte, a denúncia de que ela seria apenas a expansão da racionalidade neoliberal e do capitalismo desenfreado. Mas, da mesma forma que não há capitalismo sem exploração do trabalho vivo, tampouco há internacionalismo das lutas sem globalização. Todo regime de governo, todo dispositivo de poder é e só pode ser ambivalente: ao mesmo tempo em que procura capturar e domesticar, é animado e constantemente transformado pela vitalidade do trabalho vivo das lutas. O problema do autoritarismo emergente é justamente reconhecer essa dinâmica de invenção democrática, para usar um termo de Lefort, e buscar fechá-la. O fato de que o autoritarismo, por definição, não possa eliminar a dinâmica das lutas e das resistências totalmente, e de que sempre existirão linhas de fuga, não significa que ele não possa agravar e muito a nossa situação. E arriscamos a dizer: é exatamente isso que está acontecendo.

IHU – O que significa dizer que os movimentos de emancipação precisam hoje lutar ao mesmo tempo contra e “pelo” Império?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – Durante a pandemia da Covid, o ex-ministro das Relações Exteriores de Bolsonaro, Ernesto Araújo – um negacionista e conspiracionista de carteirinha – estava lendo Império, de Toni e Michael. Sua conclusão era de que o livro seria a “bíblia do globalismo” e representaria exatamente o projeto que a extrema-direita precisava destruir. Essa anedota já responde, em parte, à questão: ela mostra como a extrema-direita (ecoando também certas críticas da própria esquerda à globalização e à democracia) procura ocupar o discurso do Fora, reduzindo a globalização a conspiração e demonizando justamente a sua dimensão democrática. Trump vem aplicando essa cartilha ao pé da letra, destruindo o soft power americano em escala global, a começar por seus próprios aliados históricos. Não por acaso, muitos analistas afirmam que, ainda que não seja subjetivamente um agente russo, na prática ele age como tal. Lula o chama de “imperador”, mas trata-se de um imperador de um Império em ruínas, que começam pela corrosão do próprio império americano, inclusive de sua moeda, o dólar.

Quando Negri e Hardt escreveram Império, tratava-se de uma tendência, uma forma emergente de soberania global. Vinte e cinco anos depois, essa tendência parece se desfazer no horizonte. Lutar contra o Império significava ontem resistir às formas de captura, exploração e fechamento autoritário que, hoje, se intensificam exatamente na sua crise, quando os vetores democráticos estão sendo bloqueados. Mas lutar pelo Império significa hoje disputar as formas de globalização democrática que ele também carrega, as redes de cooperação, os direitos transnacionais, os fluxos de migrações, as instituições que, por mais contraditórias que sejam, foram abertas pelas lutas.

Hoje, o nome Império reaparece no debate, mascarado sob diferentes rótulos: wokismo, globalismo e até mesmo Ocidente. Mas esse “Ocidente globalista” ou o “Ocidente coletivo”, como repete Putin, e que os novos autoritarismos procuram destruir, não corresponde ao Ocidente desde cima, das elites, dos aparelhos militares e financeiros, nem tampouco à história sangrenta do colonialismo. O que está em jogo, e sob ataque, é o Ocidente desde baixo: o das lutas sociais, dos migrantes, da circulação de saberes, da cooperação social e da invenção democrática. É nesse Ocidente, múltiplo, mestiço, aberto, que ainda se pode apostar. É o Ocidente (a América da Progressive Era) que o jovem Mario Tronti – com seu método operaísta – afirmou como modelo de referência do movimento operário.

IHU – Em que sentido o Império hoje se organiza por uma lógica “constituinte”, nos termos do próprio Negri, e não propriamente por uma lógica “imperial”? Quais os riscos e potencialidades desta perspectiva?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – Infelizmente, o Império hoje não se organiza – se desfaz – e ainda menos em uma lógica constituinte. Quando Negri escreveu Império, ele afirmava com coragem como essa dinâmica era um dos vetores da globalização. Era uma leitura afirmativa, propositiva, aceleracionista da globalização e da democracia que ela ia constituindo. Quando Negri falava em constituinte, portanto, ele se referia ao poder de invenção das lutas, dos direitos, da multidão, aquilo que, em qualquer organização social, emerge a partir de lutas e movimentos sociais. É o que poderíamos aproximar – com todas as simplificações e problemas de tradução que isso envolve – ao “molecular” em Deleuze e Guattari, em oposição ao “molar”. Já o poder imperial, ou constituído, é o reflexo dessas lutas desde cima, formalizado: ele captura, institucionaliza, organiza, mas também limita a potência constituinte. Ou seja, a forma-Império é sempre ambivalente: ela contém tanto a dimensão constituinte da multidão quanto a dimensão “imperial” de comando, controle e captura. Com a crise do Império, obviamente essas categorias entram em certo curto-circuito. Trump, por exemplo, destrói essa ambivalência ao afirmar um projeto de tipo monárquico. Nesse cenário, o que nos resta é justamente apostar na dimensão constituinte e, também, na dimensão instituinte, aquela que Lefort, Castoriadis e, mais recentemente, Esposito, enfatizaram como expressão da criatividade institucional democrática. Em Negri, essa questão aparecia de modo mais difuso, vinculada ao debate sobre as instituições do comum. O Império será constituinte ou não será. Quando Negri escreveu Império, tratava-se de descrever uma dinâmica material; hoje, porém, ele precisa ser formulado como projeto político explícito.

IHU – Três crises atuais são mencionadas: da democracia, do poder constituinte e da globalização. Como cada uma delas se caracteriza e quais alternativas temos para sairmos delas?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – Quando falamos em três crises, da democracia, do poder constituinte ou da multidão e da globalização, estamos nos referindo a aspectos distintos, mas que se entrelaçam. A crise da democracia se manifesta na ascensão dos novos autoritarismos e no enfraquecimento das instituições representativas, com a corrosão progressiva dos direitos. Vimos isso com Trump, Putin e no Brasil com Bolsonaro. Mas vimos também que instituições ditas “liberais” – como o STF no Brasil – funcionaram, ainda que de modo frágil, como barreiras contra as derivas golpistas. Nos Estados Unidos, a própria Califórnia, um bastião progressista, revela esse paradoxo: enquanto o governador enfrenta a agenda trumpista e defende os direitos de migrantes, o braço federal opera através do ICE (Immigration and Customs Enforcement), com políticas violentas de deportação, prisões em massa e perseguição a comunidades migrantes no coração produtivo do país. Ou seja, a crise democrática não se limita ao nível nacional, mas atravessa a tensão entre esferas estaduais, federais e transnacionais. Por isso, não se trata apenas da crise das “democracias liberais”, mas da própria possibilidade de a democracia se expandir como invenção social e radical. Nesse primeiro nível, fica evidente que democracia representativa precisa ser defendida e precisamos não dar espaço a nenhuma relativização: a revisão da tradição da esquerda radical é, nesse sentido, necessária e urgente.

A crise do poder constituinte, por sua vez, é justamente o que temos discutido nas outras questões: a derrota dos ciclos de luta multitudinários, que foram desarticulados. O paradoxo é que a extrema-direita esteve mais próxima de mobilizar a linguagem do poder constituinte, como no Capitólio em 2021 ou no 08-01-2023, do que as forças democráticas. Eis o enigma: como recompor a relação entre movimentos, instituições e invenção democrática sem cair na tentação autoritária ou na ilusão de um Fora transcendente? Em outros termos: como democracia consegue enfrentar seu próprio esgotamento para ter a força de combater a deriva fascista? O único lugar onde as multidões enfrentam esses enigmas, por dentro de uma democracia que enfrenta a guerra, é a Ucrânia, que resiste ao fascismo e – não por acaso – boa parte das esquerdas são contra os ucranianos.

Por fim, temos a crise da globalização, talvez a mais visível: o ciclo dos anos 1990, marcado pela interdependência produtiva, pela internet e pela circulação planetária, entrou em refluxo. Em seu lugar, emergem os soberanismos nacionalistas, o protecionismo econômico reacionário, o “multipolarismo” autoritário, as guerras de anexação de alta intensidade, como a da Rússia contra a Ucrânia, e o discurso antiglobalista da extrema-direita.

A alternativa, nos parece, está necessariamente ligada às três dimensões: recompor o que está sendo desfeito e, ao mesmo tempo, reinventar para além daquilo que foi derrotado. Não se trata de voltar ao ciclo anterior da globalização, mas de o retomar, ainda mais atravessada por novas formas de cooperação, por direitos transnacionais e por uma democracia que não se limite às fronteiras nacionais. A própria crise climática mostra isso com clareza: não há saída ecológica sem reinvenção democrática, sem novos levantes e sem uma globalização capaz de articular respostas comuns. É aqui que se joga o desafio: escapar dos novos autoritarismos que exploram o discurso da catástrofe e, mais recentemente, até mesmo a retórica de uma “globalização multipolar”, defendida por regimes como o de Xi Jinping, para justificar formas renovadas de autoritarismo e fechamento soberanista. Em vez disso, trata-se de abrir horizontes para uma política planetária e radicalmente democrática, por dentro da crise do Império.

IHU – Em que sentido experiências aparentemente tão díspares – embora igualmente trágicas – é possível comparar a violência de Estado empreendida nas favelas brasileiras com a resistência ucraniana na guerra com a Rússia, na medida em que a Ucrânia recebe investimentos pesados da Otan e dos EUA, enquanto na favela esta resistência está jogada à própria sorte?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – Essa pergunta, nos parece mal formulada e ao mesmo tempo nos oferece a possibilidade de explicitar a importância da resistência ucraniana. Em primeiro lugar, não há nenhuma resistência nas favelas – brasileiras ou latino-americanas – que precisaria ser “armada”. Ao contrário, a violência nas favelas e nas periferias precisa ser desarmada, desmilitarizada. É exatamente o oposto do que ocorre na Ucrânia, no qual, contra a resistência ucraniana, se insurge esse debate bunda-mole contra a “desmilitarização europeia”, que serve apenas para mascarar uma guerra de agressão.

No Brasil, para que as lutas sejam possíveis, para que a democracia – inclusive a representativa – encontre um outro patamar e se emancipe desse ventre mole que foi chamado “centrão”, é preciso romper o ciclo da violência. Do ponto de vista da emancipação, essa violência não faz sentido nenhum: ao contrário, ela produz a maior perda de sentidos, um adoecimento geral. O discurso da esquerda – quando não é meramente oportunista – tenta resolver essa situação infeliz por uma retórica que saberia dizer quem é o amigo e o inimigo nessas guerras travadas nos morros, favelas e nas periferias.

Aliás, a truculência de um Bolsonaro ou até de um Tarcísio de Freitas (que recusava as câmaras corporais nos policiais de SP) fornece uma aparência de verdade a essa narrativa. Mas ela continua sendo falsa. Se os matadores confessos de Marielle Franco vestem o figurino do bolsonarismo, o mandante estava sentado no governo da cidade do Rio até ser preso, um governo aliado do lulismo. As polícias mais violentas do Brasil (e do mundo) não estão em São Paulo, mas na Bahia. Governada há 20 anos sem interrupção pelo PT, a polícia baiana matou em 2023 – em números absolutos – uma vez e meia o que mataram todas as polícias americanas (sendo que a Bahia tem 14 milhões de habitantes e os EUA 320 milhões). Aqui, não há nada para “armar”, muito pelo contrário: as figuras do amigo e do inimigo são todas misturadas e só a democracia conseguirá romper esse sortilégio.

O caso da Ucrânia é exatamente o contrário: há uma democracia (lá com todos seus defeitos) atacada por um inimigo externo (o antigo poder imperialista que escravizava aquela região) e a ataca exatamente porque não pode suportar um exemplo da consolidação da democracia uma ex-colônia. Na Ucrânia há sim um inimigo (a potência invasora) e um amigo (o povo ucraniano que luta por sua independência) e isso de maneira nítida. Claro, o apoio ocidental é duplo: por um lado, defende a democracia ucraniana; pelo outro, defende-se a soberania da Europa (que está toda ameaçada). Com Biden, os Estados Unidos, jogavam esse mesmo jogo. Com Trump não mais: se Trump não abandona de vez a Ucrânia é porque ele não conseguiria esconder as consequências catastróficas inclusive para os Estados Unidos. Mas ao passo que os europeus apoiam a Ucrânia como aliada, Trump — quando a apoia — o faz tratando-a como com um vassalo.

O tabu, em muitos círculos críticos, em reconhecer a legitimidade da resistência ucraniana deveria causar uma grande estranheza. Quando se trata da Ucrânia, que enfrenta a invasão e o massacre promovidos por Putin, surgem ou um silêncio cúmplice, ou acusações de que reconhecer sua luta seria “ceder à OTAN” ou ao “imperialismo americano”, reproduzindo, nesse ponto, a própria narrativa putinista. É um raciocínio semelhante à crítica indiscriminada ao Ocidente, que muitas vezes se converte em eco das justificativas do Kremlin.

A questão central é que a recomposição democrática global passa pela Europa, e mais concretamente pela resistência ucraniana. O Euromaidan já havia mostrado que a Ucrânia era um laboratório de invenção democrática, e é por isso que sua derrota, na guerra atual, interessa tanto aos novos autoritarismos que se consolidam ao redor da Rússia, da China e da América trumpista, que não está nem aí para a Ucrânia, nem para a Europa. Trump, nesse sentido, funciona como um verdadeiro ativo russo: seu projeto de desmantelamento da ordem transatlântica, sua hostilidade aberta à OTAN e seu alinhamento ideológico com Putin convergem diretamente com os objetivos do Kremlin. Ignorar isso é não perceber que a crise ucraniana não é periférica, mas central para o futuro da democracia no plano global. Não se trata apenas de defender um território e uma nação, mas de abrir a possibilidade de uma Europa verdadeiramente federal, atravessada pelas lutas democráticas que Putin e seus aliados mais abominam. Mario Tronti escandalizou a esquerda ao afirmar que era preciso pensar Marx em Detroit, no coração dos Estados Unidos. Hoje, precisamos pensar Marx em Kiev, em Kharkiv, no cerne de uma guerra que coloca em jogo o futuro da democracia no continente europeu e no mundo.

IHU – Quais são as verdadeiras perguntas que o Império dirige a nós diante do cenário complexo que vivemos? Que questões são capazes de nos tirar desta encruzilhada?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – Não se trata de “quais perguntas o Império nos faz”, mas de quais problemas ele ajuda a iluminar hoje, em meio às crises que atravessamos. O que está em jogo hoje é justamente como lidar com a crise da democracia, da globalização e dos levantes democráticos sem cair nas falsas saídas, “falsas” pois aprofundam as crises, oferecidas pelos novos autoritarismos ou mesmo pela esquerda presa em dogmáticas inertes.

A primeira pergunta é: como recompor um horizonte global democrático diante da desglobalização autoritária? O trumpismo, Putin e Xi se apresentam como alternativas ao chamado “globalismo” e, como previsto, são projetos de fechamento soberanista, nacionalista e identitário. A segunda pergunta é: como reinventar a relação entre levantes democráticos e instituições, sem recair na ilusão de um “Fora” transcendente que só abre espaço para novos autoritarismos? E a terceira: como acelerar as tendências democráticas da globalização – migrantes, lutas algorítmicas, lutas sociais, inteligência coletiva – antes que sejam bloqueadas ou capturadas pelo tecnofascismo emergente e pelo nacionalismo regressivo e repressivo (aqui o debate sobre inteligência social e inteligência artificial é estratégico).

São essas algumas das perguntas capazes de nos tirar da encruzilhada. Não se trata de negar o Império, ou seja, a democracia, a globalização e as lutas, mas de disputar sua crise, levando adiante a única aposta consequente: a reinvenção da democracia em escala global.

IHU – Qual a diferença entre antiglobalização e alterglobalização e que movimentos apontam para uma perspectiva civilizatória no bom sentido do termo?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – Essa diferença entre antiglobalização e alterglobalização é, em si mesma, ambivalente em Michael Hardt e Toni Negri. De um lado, eles reconhecem que muitas lutas dos anos 1990 e 2000 – de Seattle a Gênova, passando por Porto Alegre – se apresentavam sob o rótulo da “antiglobalização”. Mas, ao mesmo tempo, insistiam que a intuição central dessas lutas não era rejeitar a globalização, e sim disputar o seu sentido. Por isso, preferiam falar em alterglobalização: não menos globalização, mas uma globalização outra, feita de direitos transnacionais, redes de cooperação, circulação de saberes e invenções democráticas: no entanto, esse outro não era um fora, mas um dentro, era constituinte da própria globalização.

Em nossa perspectiva, insistir nessa diferença hoje é fundamental. O discurso da antiglobalização, apropriado pela extrema-direita, mas ainda presente em setores da esquerda, vê a globalização apenas como catástrofe neoliberal. É uma crítica que busca esse Fora, seja na forma de um retorno soberanista ou protecionista, que no fim das contas abre caminho para projetos autoritários como os de Trump, Putin ou Xi Jinping. Já a alterglobalização se move em outro registro: reconhece que não há exterior, e por isso aposta em transformar a globalização, ou a sua crise, de modo imanente. Essa era, afinal, a própria intuição de Império.

Hoje, se falamos em “perspectivas civilizatórias no bom sentido”, são justamente aquelas que se movem nesse registro alterglobalista. São os herdeiros dos levantes democráticos que atravessaram o século XXI – da Primavera Árabe ao Junho de 2013, passando pelo Euromaidan – e aqui destacamos novamente a resistência ucraniana. Mas também os movimentos de migrantes, que nos obrigam a pensar a partir de um verdadeiro perspectivismo: ver o mundo não de um ponto de vista único, nacional ou soberanista, mas da multiplicidade de trajetórias que compõem o comum.

Os migrantes produzem um verdadeiro trabalho das linhas: não são apenas sujeitos que “atravessam” fronteiras, mas aqueles que redesenham as próprias linhas do mundo, que compõem o nomos da terra. Eles nos permitem pensar para além dos blocos geopolíticos rígidos, mostrando que é a linha que produz o território e sua desterritorialização e não o território que deve simplesmente “abrigar” os migrantes. Essa inversão é decisiva: desloca a ideia de fronteira de um limite fixo a ser defendido para um espaço móvel, vivido, que se reinventa a cada travessia.

Nesse mesmo plano se inscrevem as mobilizações feministas, antirracistas e ecológicas, e as redes que disputam o controle algorítmico. Todas essas experiências podem apontar para uma reinvenção da democracia global. Mas, para isso, precisam também vencer o próprio sucesso de suas lutas: o risco de se fecharem em identidades estanques ou em movimentos autocentrados, perdendo de vista a dimensão transversal que lhes deu força desde o início. A questão é como recompor essa transversalidade, esse plano comum, sem apagar as diferenças, mas afirmando-as como motor de uma nova imaginação democrática. É justamente aí que as migrações aparecem como potência decisiva: porque forçam cruzamentos, deslocam fronteiras e reabrem a possibilidade de recompor as diferenças em um horizonte verdadeiramente planetário.

IHU – Como construir, contra o socius extrativista, parasitário e necropolítico típico de um vetor de Império, um regime de acumulação do comum metropolitano, algorítmico, democrático e desde baixo?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – A pandemia deixou evidente como a interpretação do Império em chave puramente extrativista, parasitária e necropolítica era, na realidade, reacionária. Quando o filósofo italiano Giorgio Agamben passou a afirmar que a Covid-19 não passava de uma “gripezinha” usada para instaurar um “estado de exceção” – exatamente como diziam Bolsonaro e Trump –, a novidade não estava na narrativa do filósofo, mas na dos presidentes. Agamben sempre defendeu essa leitura; uma vez desmentido por governos democráticos que, ao contrário, implementaram políticas biopolíticas de proteção da vida, ele permaneceu preso à sua visão reacionária de poder (nada mais distante aqui, da leitura de Foucault). Trump e Bolsonaro, ao contrário, escancararam algo novo: foram a expressão de uma ruptura regressiva, em que o poder assumiu abertamente uma dimensão necropolítica e eugenista. Essa narrativa sobre extrativismo e necropolítica se consolidou justamente após o esgotamento das revoluções árabes e marcou uma grande restauração dentro da esquerdaglobal”, uma esquerda que, ao mesmo tempo, perdeu seu pluralismo e abandonou a análise da composição de classe, isto é, da produção da inteligência coletiva.

Para Toni Negri, o Império nunca funcionou pela violência direta, mas sobretudo de modo biopolítico: isto é, produzindo e organizando a vida. Não apenas comandando de fora, mas regulando fluxos de afeto, comunicação, mobilidade, trabalho imaterial, redes sociais de cooperação. O problema é que a crise do Império, marcada pela desglobalização e pela decomposição dos ciclos de lutas, intensifica essa dimensão que podemos chamar de “necropolítica”, ou seja, os mecanismos de governo que deveriam sustentar a vida passam a administrar a morte. A pandemia deixou isso evidente. No exato momento em que a globalização mostrava a necessidade de uma resposta planetária, vacinas, protocolos, cooperação científica, vimos surgir projetos políticos que negavam a vida em nome de cálculos imediatos de poder.

Em Commonwealth, Hardt e Negri afirmam que o comum já se tornou um regime próprio de acumulação e de produção. Não se trata apenas de uma promessa futura: o comum está presente nas formas de cooperação social, no trabalho imaterial, nos saberes compartilhados, nas redes digitais, nos cuidados e nas lutas coletivas. Nesse sentido, provocam os autores, o “comunismo” – seria melhor dizer, comumnismo, para evitar os stalinistas – já aconteceu, porque ele existe no interior da produção contemporânea, atravessando as metrópoles, as tecnologias e a vida social em sua totalidade. O resultado é a coexistência de dois regimes de acumulação em permanente tensão: de um lado, o regime capitalista, que procura expropriar e privatizar o comum, seja pelo extrativismo de dados, pela financeirização da vida ou pela captura biopolítica; de outro, o regime do comum, que se afirma nas práticas de cooperação, nas redes de solidariedade, nas invenções democráticas e nas mobilizações sociais. Pensar em um “regime de acumulação do comum” aqui já não é projetar algo distante, mas reconhecer que ele já estava em disputa. O desafio é deslocar essa correlação de forças: reduzir a captura parasitária e intensificar as dinâmicas de invenção democrática que brotam do comum.

A novidade desde a pandemia é que esse embate se acelerou em torno dos algoritmos. O regime biopolítico se tornou também um regime noopolítico: não se governa apenas a vida biológica, mas sobretudo a mente, a atenção, os fluxos de informação e de linguagem, ou seja, o nosso “cérebro social”. O noopoder não é apenas comando, mas captura e modulação da própria capacidade de pensar e sentir em comum. É aqui que retorna, de forma renovada, a questão do General Intellect: se em Marx ele designava a inteligência coletiva das forças produtivas, hoje essa inteligência se expande e se reorganiza através da inteligência artificial. A IA pode ser instrumento de captura e extração, subordinando o pensamento vivo a lógicas de controle; mas, ao mesmo tempo, ao transformar radicalmente a nossa produção social e a própria inteligência coletiva, como vem transformando, ela recompõe e reinventa o General Intellect. A questão é como ampliar as capacidades de cooperação e de invenção democrática em escala planetária por dentro desse processo. Em nossa perspectiva, é nesse terreno da noopolítica, onde se disputa a própria mente coletiva e que se joga hoje o futuro do comum e da democracia global.

IHU – Império de Hardt e Negri e suas derivas filosóficas, sociais e políticas são bastante tributários de um pensamento europeu e do Norte Global. Ailton Krenak (especialmente em Guerras do Brasil) e Davi Kopenawa (em A queda do céu), também estão debruçados sobre os temas do comum e do alterglobalismo. Parece-nos que estes autores estão muito mais próximos da matriz espinosista de pensamento que fundamenta e organiza a proposta multitudinária de Negri e Hardt, do que autores como Lazzarato. Como olhar para este pensamento de origem alterglobalista e radicalmente fundado no comum para fazer avançar as forças e as paixões alegres da Multidão?

Felipe Fortes e Giuseppe Cocco – Você tem razão, Maurizio Lazzarato, depois de ter trabalhado tão próximo de Negri, hoje só reproduz o ponto de vista do Fora e em nada mais acrescenta ao debate e, mesmo involuntariamente, parece ter se tornado um ativo do putinismo. Por isso mesmo, a reflexão que a sua pergunta propõe é instigante. No livro Mundobraz, um de nós (Giuseppe Cocco) já havia ensaiado uma aproximação entre o perspectivismo ameríndio e o pensamento pós-operaísta, mostrando como a hibridização entre a antropofagia do pensamento ameríndio e a multiplicidade e o comum metropolitano podia expandir as intuições de Império. É uma obra que poderia ser retomada à luz das coordenadas atuais. Mais recentemente, Bárbara Szaniecki lançou um livro muito importante, Uma Floresta de Imagens, em que desenvolve essa noção belíssima de um “reflorestamento dos imaginários democráticos”, tomando como ponto de partida a crise climática e a própria crise da democracia.

A questão que podemos colocar, portanto, é a da necessidade de um reflorestamento da democracia. Ou seja, pensar a democracia não apenas como forma institucional estática, herdada da modernidade, mas como um campo vivo e dinâmico de multiplicidades, perspectivismos e invenções coletivas que atravessam todo o planeta. É nesse sentido que a aproximação entre Krenak e Kopenawa, de um lado, e Negri em sua matriz espinosista, de outro, pode nos permitir hibridizar o pensamento da floresta com o pensamento da metrópole, descobrindo, na realidade, os atravessamentos e as singularidades cooperantes em cada um.

Notas: 

[1] “Viver no Império”. Carta de Toni Negri a Giuseppe Cocco. Roma, 1º de dezembro de 1999. Cf. exemplar no arquivo privado de Giuseppe Cocco.

[2] “Enfim, um primeiro golpe contra o Império”. Cf. exemplar de Império do arquivo privado de Giuseppe Cocco.

[3] Giuseppe Cocco participou com Yann Moulier-Boutang.

[4] Dossiê Levantes/Revoluções. Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia, Rio de Janeiro, n. 70, 2024. Disponível aqui.

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