Entre cinismo e fascismo: Depois de junho de 2013, narrativas e constituição

Foto: José Cruz/Agência Brasil

10 Dezembro 2020

"A singularidade do livro Entre Cinismo e Fascismo com relação a essa trajetória reside, não apenas numa atualização das tragédias nacionais, de acordo com os últimos e lamentáveis acontecimentos políticos, mas no esforço em sugerir, mais uma vez, um deslocamento de perspectiva. A atualização dos dispositivos fascistas é real, mas ela não decorre de um confronto dual e evidente entre forças progressistas e autoritárias. O fascismo, lembra o autor, sempre foi a terceira via", escreve Alexandre Mende em resenha sobre o novo livro de Giuseppe CoccoEntre Cinismo e Fascismo: Depois de Junho de 2013, narrativas e constituição (Autografia, 2019). O texto é publicado por Rede de Laboratórios Moitará, 24-11-2020.

 

Eis a resenha.

 

O mais recente livro de Giuseppe CoccoEntre Cinismo e Fascismo: Depois de Junho de 2013, narrativas e constituição (Autografia, 2019), se insere na linha de continuidade de outras produções recentes do autor, em especial os livros New Neoliberalism and the Other: Biopower, Anthropophagy, and Living Money (Lexington Books, 2018) e O Enigma do Disforme (Mauad, 2018), ambos publicados em co-autoria com Bruno Cava. Nestes livros, os autores desenvolvem três eixos teóricos fundamentais, todos retomados na obra Entre Cinismo e Fascismo, e que, articulados, permitem uma nova leitura dos dilemas políticos brasileiros, no interior de uma globalização em crise.

 

O primeiro eixo propõe uma análise que, seguindo a proposta metodológica de Michel Foucault, recusa transformar o neoliberalismo em um conceito universal e englobante ou em um pressuposto moral a priori para um sem-número de denúncias e críticas, que seriam tão proliferantes quanto ineficazes. Para os autores, o neoliberalismo não é:

 

(i) nem um construto simbólico criado para a defesa do capitalismo;

(ii) nem uma ferramenta geopolítica dos novos imperialismos;

(iii) nem apenas o objeto de uma infindável analítica do poder, sempre pronta a acender o sinal de alerta quando novas formas de dominação aparecem.

 

Na leitura de Giuseppe e Bruno, o neoliberalismo, pelo contrário, é afirmado em toda a sua ambiguidade. Segundo os autores: “o biopoder que compõe a sua governabilidade [neoliberal] é o mesmo que produz, suscita, mobiliza, o mesmo em que a formação dos sujeitos está implicada. O problema é de estratégia e não de clivagem” (Cava e Cocco, 2018, p.12).

 

O segundo eixo, prolongando hipóteses desenvolvidas desde a publicação com, Antonio Negri, do livro Glob(AL): biopoder e lutas em uma América Latina globalizada (Record, 2005), enxerga nas resistências encontradas na América Latina e no Brasil, uma potência do disforme que pulsa no interior do biopoder exercido no continente, visto, agora, a partir de uma longa duração. Se Foucault usa o modelo das reformas urbanísticas, da política agrária ou da medicina social, para entender a especificidade da biopolítica na virada para o século 18, os autores, seguindo de perto o trabalho do historiador Luís Felipe de Alencastro, projetam a análise do biopoder para o espaço histórico e intercontinental do comércio transatlântico e da organização do poder colonial. É assim que, diz os autores, a pax lusitana precisou, desde o início da colonização, lidar, não apenas com as revoltas e os motins, mas com a força ambivalente das migrações, das mestiçagens, dos êxodos e das diásporas. Para isso, não forjou um modelo disciplinar do tipo apartheid americano, mas um biopoder que, ao multiplicar e modular as fronteiras, a violência e o controle do trabalho, internalizou a normalização diretamente nesses fluxos ambíguos e imprevisíveis.

 

 

O terceiro eixo retorna diretamente à contemporaneidade, no início da década de 2000, para compreender o conflito biopolítico que irrompe no interior do próprio lulismo. Ao contrário da estabilidaderooseveltiana” imaginada por autores como André Singer (2012), o que definiria o lulismo é o impressionante embate entre as mobilizações produtivas (a potência do disforme) – fortalecidas, paradoxalmente, por políticas sociais de cunho liberal ou neoliberal (bolsa família, cotas raciais, expansão do trabalho por precarização etc.) – e um projeto de Estado ou de um “ensaio desenvolvimentista” (Singer, 2016) que acabou se impondo de forma autoritária e decisionista sobre essas mesmas forças. Os levantes de Junho de 2013 não só podem ser lidos a partir dessa perspectiva, como encerram um ciclo político subdividido pelos autores em três momentos: a) a primeira fase do governo Lula, como um momento de abertura e ambiguidade que trouxe elementos positivos e interessantes (políticas de renda, expansão universitária, pontos de cultura etc.); b) o final do governo Lula e início do governo Dilma, o período pós-crise de 2008, no qual esses elementos são esmagados pelo fechamento desenvolvimentista e autoritário estimulado, inclusive, pelas esquerdas soberanistas; c) a terceira fase, representando a falência total – em todos os níveis, políticos, sociais e econômicos – da aposta progressista e desenvolvimentista, diante do “poder de assombro” (Arantes, 2014) de Junho de 2013 e de uma crise produtiva real que conduziu o país para a depressão econômica e para a reversão apavorante de todos os indicadores sociais.

 

A singularidade do livro Entre Cinismo e Fascismo com relação a essa trajetória reside, não apenas numa atualização das tragédias nacionais, de acordo com os últimos e lamentáveis acontecimentos políticos, mas no esforço em sugerir, mais uma vez, um deslocamento de perspectiva. A atualização dos dispositivos fascistas é real, mas ela não decorre de um confronto dual e evidente entre forças progressistas e autoritárias. O fascismo, lembra o autor, sempre foi a terceira via. Uma terceira via que se torna possível pela falência simultânea do socialismo e da democracia liberal, no momento em que estes, não apenas se revelam inadequados para atender às aspirações de liberdade e igualdade, como tentam driblar esse fracasso pelo apelo constante à hipocrisia e ao cinismo.

 

 

Um exemplo, escolhido por Giuseppe Cocco no livro, pode ilustrar a hipótese. Quando as mudanças reais ocorridas nas relações com o corpo, com o gênero e com os regimes de prazer se convertem em afirmação abstrata de identidades fragmentadas e incapazes de sugerir uma plataforma política autônoma e plural, o fascismo resolve a questão através da simples afirmação de uma identidade da Maioria – um triunfo dos normais diante do cinismo das minorias. O resultado, para o autor, é um duplo constrangimento para os movimentos:

 

(i) de um lado, precisam defender o marketing vazio do progressismo (no Brasil, leia-se “lulismo”) buscando esquecer as razões reais de sua falência e, no limite, associando-se às suas práticas mais nefastas;

(ii) de outro, precisam constantemente se defender dos microfascismos sociais estimulados pela alt-right, pelo atual governo e, não raro, pelo próprio identitarismo radical fomentado pelos aparelhos de propaganda do progressismo.

 

A crise, no entanto, não se refere apenas à capacidade de mobilização dos movimentos organizados, mas se estende ao problema democrático como um todo. Recorrendo a Merleau-Ponty, o autor lembra que a resposta que o fascismo oferece a uma democracia que sucumbe ao cinismo, menosprezando e ridicularizando as forças reais que compõem uma sociedade, é a própria eliminação da perspectiva democrática: “o que o fascismo faz é, sim, reconhecer que ‘a igualdade e a liberdade não são dadas’, mas, ao invés de dizer que precisam ser construídas, ‘ele renuncia à igualdade e à liberdade’; Ou, então: “pois que os Direitos Humanos são apenas formais e hipócritas, vamos mesmo destruí-los formal e materialmente” (Cocco, 2019, p. 16).

 

 

O decisionismo fascista, portanto, não deve ser entendido como o simples triunfo de uma vontade unilateral e homogênea, mas como um jogo permanente que atua para multiplicar as falsas opções e chantagens binárias. Atualizando Merleau-Ponty poderíamos dizer: diante de uma defesa abstrata da democracia, que ignora as fraudes eleitorais, os abusos do poder econômico e político, as ditaduras emergentes ou consolidadas, o fascismo propõe a eliminação da democracia enquanto tal. Diante de uma defesa abstrata dos direitos humanos, que ignora as ocupações militares em favelas, a destruição dos modos de vida minoritários e do meio ambiente nas grandes barragens e projetos, o encarceramento em massa e a violência policial, o fascismo propõe a própria eliminação dos direitos humanos.

 

 

Um perigoso revezamento entre o absoluto e o relativo se estabelece. Uma força política se apresenta como a única defensora dos valores inegociáveis e absolutos da democracia, enquanto relativiza graves violações democráticas ocorridas sob a sua tutela ou a de seus aliados estratégicos. A outra força encarna o próprio relativismo, defendendo a legitimidade de qualquer medida que seja necessária à derrota do velho sistema, tomando a tarefa como um imperativo absoluto. Nos dois casos o mesmo paroxismo: “a defesa moral de princípios absolutos que serve à defesa da mais absoluta falta de princípios”. Se, como afirmam Deleuze e Guattari, nos relacionamos antes com máquinas sociais do que técnicas, é, precisamente, esse revezamento perverso que estabelece – nos modos atuais de construção da crença – as condições de proliferação das chamadas fake news, das teorias da conspiração e das diversas formas de mistificação política.

 

Vale destacar que uma das vantagens do livro com relação a esse debate, é a recusa em aderir a mais uma teoria redentora ou fórmula universal que possa “solucionar” o impasse. Pelo contrário, a crise é afirmada enquanto tal, com todas as suas dificuldades, ambivalências e possibilidades. A perspectiva acaba se desdobrando em dois desvios teóricos:

 

(i) O primeiro, refere-se ao reconhecimento de que uma chamada “saída maquiaveliana” do binômio relativismo/moralismo, defendida pelo pós-operaísmo italiano, em especial por Antonio Negri no livro O poder constituinte: ensaios sobre as alternativas da modernidade (2002), não funciona mais. Em breve síntese, isso teria ocorrido porque o “ponto de vista das lutas” ou “de classe” não encontra mais uma paralelismo evidente com os movimentos sociais e com o espírito crítico que, a partir de 1968, percorre o terreno da globalização. Este deslocamento pode ser encontrado na própria mudança na composição da multidão no período pós-Primavera Árabe: enquanto, as sociedades contemporâneas se politizam completamente a partir de um novo tipo cidadanismo engajado (democrático ou não), os movimentos sociais organizados se confinam cada vez mais em trincheiras falsamente protetoras e defensivas. A situação lembra o conto A muralha de China, de Kafka: enquanto o soberano unifica os súditos a partir da ordem de construção de enormes muralhas circulares, sabendo de sua inutilidade, os bárbaros são encontrados caminhando livremente em pleno centro da aldeia.

 

(ii) O segundo desvio retoma a discussão sobre o neoliberalismo, presente nos trabalhos anteriores. O autor reatualiza a crítica foucaultiana e resiste à tentação expansiva sugerida em vários trabalhos recentes sobre o tema, recusando o atalho das sucessivas e genéricas adjetivações: “neoliberalismo autoritário”; “neoliberalismo fascista”, “neoliberalismo militarista” etc. Afirmar a crise, neste sentido, significa dizer que o impasse que atravessa a globalização é real e imprevisível, e inclui as velhas fórmulas de estabilidade oriundas do apogeu da globalização econômica. Para continuar com Foucault, diria que não estamos diante dos efeitos um grande projeto sombrio e racionalizador, mas enfrentando uma verdadeira “crise de governamentalidade” ou da “condução das condutas”, com efeitos transversais que afetam a relação entre sujeito, verdade, saber, modificando o próprio sentido do que entendemos por política (Mendes; Teves, 2019).

 

Embora o autor não siga por esse caminho, duas pistas para pensarmos a crise são traçadas no livro:

 

i) A primeira, retomando as reflexões sobre a relação entre moeda e produção de subjetividade, presente no livro New neoliberalism (2018), afirma que a crise se refere a um descompasso definitivo entre economia e sociedade, manifestado pela impossibilidade de construir uma confiança a priori baseada em pactos que tenham como horizonte a liberdade e a igualdade. Paradoxalmente, a globalização, com seus fluxos generalizados e descodificados, estaria enfrentando crises semelhantes àquelas que desafiaram o projeto colonial, a partir daquilo que Achille Mbembe denomina, a propósito, de “devir-negro do mundo” e, o próprio Giuseppe, de devir-Brasil do mundo. A pergunta não deixa de ser que tipo de paz queremos construir. Por isso, segundo o autor: “o que precisamos é pensar o Novo Pacto que pode produzir as equivalências necessárias à conversão da violência em política, da guerra em paz” (Cocco, 2018, p. 176); “Ao invés de a reforma da Previdência ser a condição de confiança e da sustentabilidade, o que precisamos é de outra confiança para a reforma da Previdência. Em outros termos, diremos que a reforma da Previdência só é sustentável se ela se desloca nessa direção de pagar (pacificar) uma proteção social mais adequada.

 

 

ii) A segunda pista pode ser identificada com o descompasso, agora, entre justiça e direitos humanos. Numas das páginas mais instigantes do livro, o autor retoma o pensamento de Simone Weil para imaginar uma saída da retroalimentação perigosa entre democracia formal e regressão fascista. O problema dos direitos humanos, na democracia liberal, é ter forjado um conceito sagrado de pessoa humana que se sobrepõe genericamente aos sujeitos tidos em toda a concretude, permitindo um relativismo que ataca o homem mas salvaguarda a pessoa. O problema da resposta fascista é ter retomado uma dimensão coletiva do sagrado, mas sob o preço da mistificação autoritária e, no limite, do próprio suicídio da comunidade. Para Simone Weil, pelo contrário: “em cada homem há algo sagrado. Mas não é a pessoa. Não é nem sequer a pessoa humana. É ele, esse homem, simplesmente”. O que é importa não é a pessoa, mas o que em um ser humano é impessoal e, ao mesmo tempo, concreto: “eis um transeunte na rua (…). Não é nem sua pessoa tampouco a pessoa humana nele que me é sagrada. É ele. Ele inteiro. Os braços, os olhos, os pensamentos, tudo. Não prejudicarei nada disso tudo sem infinitos escrúpulos” (Weil, apud Cocco, 2018, p. 27). A justiça deixa de ser o exercício de uma força cujo limite é o estado de exceção, para seguir as linhas corporais e efetivas de cada modo de existência, por menor que ele seja. Nem os pilares neoclássicos do Estado de Direito, nem a profundidade romântica da comunidade fascista, é uma espécie de maneirismo surge da obra de Weil, atento aos corpos, aos contornos e a sacralidade de cada existência.

 

É este convite – seguir as linhas de um Brasil-menor e de sua possível constituição – que é realizado por Giuseppe Cocco em seu novo livro. O leitor não encontrará nele uma grande narrativa ou projeto a ser seguido, mas uma espécie de pragmática do disforme: algumas peças, ferramentas, fragmentos e junções que podem sugerir novas formas de interrogar os problemas da atualidade.

 

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