04 Outubro 2025
"Vamos nos mover, porém, porque ele já se mandou das profundezas do bosque".
O artigo é de Giulio Busi, estudioso do misticismo judaico, publicada por Il Sole 24 Ore, 31-08-2025. A tradução é de Luisa Rabolini.
Além da hagiografia. O ‘poverello’, cuja morte completará 800 anos em 2026, está em perene movimento, mas é também o homem de contemplação: é uma figura difícil de apreender. Giulio Busi dedica a ele seu novo livro
Eis o artigo.
Ele se virou algumas vezes. Atrás dele, a cidade se tornou um ponto no horizonte, até desaparecer completamente. Está prestes a entrar no bosque. Vasto, silencioso, antigo. É então que sente o primeiro floco nos cabelos. Começou a nevar novamente. A princípio timidamente, suavemente. Depois, a neve se torna cada vez mais espessa, raivosa. O vento a sopra em fortes rajadas contra ele, e as árvores se curvam, balançam, tremem. Para se dar coragem, começa a cantar. Sente medo. E sente frio, vestindo apenas uma capa, que não é suficiente nem para cobrir sua pequena figura. Mas, junto com o medo e o frio, sente uma nova emoção. Treme por inteiro e não consegue parar. E nem quer. O tremor o sacode enquanto o vento açoita a floresta. Se as árvores conseguem, pensa, eu também consigo. O bosque sabe que a tempestade é para o bem. E para o bem deixei Assis, a casa do meu pai, dos meus amigos e da minha mãe. Pelo bem estou na estrada. Pelo bem sinto frio. Pelo bem é o meu medo, o cair da noite, o chiado gélido que me ensurdece. Como começou, a tempestade se acalma.
Francisco canta, e sua bela voz não é mais abafada pelo vento. O bosque inteiro o ouve cantar. E, no bosque, os bandidos o ouvem. Um comerciante estúpido, cheio de dinheiro, vagando pela floresta cantando? Num piscar de olhos, Francisco é cercado, derrubado ao chão. Não é um comerciante, fizeram uma emboscada a um mendigo. A esperança do saque se transforma em zombaria. “Quem é você, miserável? O que há para cantar?” Francisco tem a resposta pronta. “Eu sou o arauto do grande rei; o que isso lhes importa?”
Não apenas esfarrapado, mas também descarado; então eles o espancam e o deixam em uma vala neve. Quando vão embora, ele se puxa para fora e continua seu caminho. E canta, a plenos pulmões. Francisco canta, no bosque, na neve, na noite. A solidão, a canção no denso do matagal, a agressão. E então, depois das pancadas, novamente a canção. Francisco está pela estrada, como tantas vezes estará em sua vida. Mas está sozinho, sem companheiros e sem guia.
O episódio é contado nas biografias mais antigas e parece autêntico, pelo menos em sua essência. Estamos em 1206, a primeira viagem que Francisco faz depois de se despojar publicamente de seus bens e de suas roupas. Um escândalo, diante dos olhos de toda a cidade. Ele ficou nu e, assim, sem nada, saiu dos portões de Assis em direção ao campo. O que busca? O que quer? O que encontra?
Que seja inverno, que o bosque seja perigoso, que a neve seja alta e hostil, tudo importa. Cada dificuldade importa, cada inconveniente deve ser levado em consideração. Os obstáculos, a neve do inverno e a neve nos corações, são parte essencial de sua história. Sem o gelo, sem a noite, sem os espancamentos, não existe Francisco. Ele não pode ser compreendido e é impossível alcançá-lo. Os bandidos o espancam e o jogam em uma vala. Ele os deixa fazer, espera que se afastem. Ouve-os vociferando ao longe, segue o ritmo dos seus cavalos, cada vez mais fraco. Então, levanta-se e começa sua própria canção.
Onde começa o reino dos céus? Como se entra nele? Onde está a porta, qual é a passagem, quem são os guardiões? Se perguntarem a Francisco, que acaba de começar a caminhar e ainda não sabe para onde vai, ele responderá pondo-se a cantar.
Imaginem que a canção, melodiosa, mas quase indecifrável, ainda esteja ecoando no bosque, flutuando sobre a neve. E que atraia, hoje como então, os bandidos armados de varas. Ao vê-lo miserável e esfarrapado, jogam-no numa vala e zombam dele com despeito. Não há dúvida de que Francisco sabe resistir e é capaz de retomar sua oração. Mas a graça que lhe está reservada não vem depois da adversidade. De alguma forma misteriosa, a graça para Francisco é a própria adversidade. Para ele a graça são os bandidos e a vala cheia de neve. O dom que Francisco traz ao mundo, ou melhor, o que o distingue, não é a resiliência, a capacidade de se adaptar e resistir aos traumas.
As fontes relatam um detalhe importante. Francisco canta em francês, como costuma fazer quando está embaraçado ou transbordando de alegria. Outras testemunhas próximas a ele acrescentam que ele fala mal e mal o francês. Encharcado, machucado, vagabundo, Francisco canta em uma língua que mal conhece. Para quem canta, se não há ninguém na estrada? Os malfeitores, eles sim, o ouvem declamar e o atacam. É assim que um louco se comporta. Não foi ele quem se definiu “um novo louco no mundo” ("unus novellus pazzus in mundo”)? Por que a Igreja proclamou santo tal desequilibrado, apenas dois anos após sua morte? Um erro de perspectiva, um mal-entendido, uma instrumentalização? Francisco está em perene movimento. Ele não fica inerte, parado onde está, pronto para suportar o destino, bom ou ruim que seja. Ele busca os insultos, as palavras duras, as rejeições e os espancamentos, ou pelo menos se coloca em viagem e, ao longo do caminho, cai na armadilha da adversidade. Esse aspecto do Francisco peregrino será um tema importante em todo o livro. Mover-se, vagar, partir são suas palavras de ordem. Mas não esqueçamos que há também o Francisco da contemplação e da paz, que sabe se isolar do mundo. Peregrino e imóvel, na quietude e na inquietação, Francisco é difícil de apreender. Pensávamos ter compreendido o segredo de sua paciência e agora somos obrigados a recomeçar do início. Devemos segui-lo e persegui-lo, se quisermos compreendê-lo.
Vamos nos mover, porém, porque ele já se mandou das profundezas do bosque.
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