22 Agosto 2025
"A paz armada não visa a paz mas é uma pacificação imposta por Trump. Ela pressupõe que a realidade é uma arena onde se travam permanentemente conflitos e guerras. A convivência entre as pessoas, as comunidades e os povos é possível mas ameaçada de permanentes rupturas".
O artigo é de Leonardo Boff, filósofo e ecólogo, autor de Comer e beber juntos e viver em paz (Vozes, 2006).
Jamil Chade, jornalista brasileiro e internacional, expressou muito bem o projeto de geopolítica de D. Trump: ”Ele já deixou claro: não irá fazer diplomacia. Atuará com a força, tanto bélica quanto econômica e comercial. Sua construção de uma nova ordem não passa pela paz. Mas pela capitulação do adversário". Os acertos das tarifas com quase todos os países são mais imposições dele do que fruto de uma negociação. Isso se chama capitulação. É mérito do governo brasileiro, reconhecido por grandes nomes da economia e da política mundiais, de não se curvar mas soberanamente rejeitar a imposição de 50% sobre nossos produtos, por razões injustificáveis. Trump é militarista e imperialista.
Precisa-se, portanto, buscar as causas escondidas atrás desse imperialismo e da negação da diplomacia e ameaçar com a guerra e capitulação. É sua a vontade de dominação, segundo o mantra “um mundo, um só império” (dos EUA). Importa reconhecer que há um grande conflito de interesses geopolíticos, étnicos, econômicos e a existência de profundas desigualdades especialmente no Sul global, face ao Norte global, que podem ameaçar o império estabelecido.
Faz-se mister identificar estas conexões ocultas, como condição para entender a geopolítica de Trump e também para conseguir uma paz verdadeira e duradoura. Como resposta não é outra guerra. Mas uma paz desarmada e que desarma segundo o atual Papa. Esta paz desarmada utiliza-se de meios políticos, diplomáticos, as articulações com outros governos que também querem a paz, os movimentos sociais, a mobilização das religiões e igrejas e o envolvimento com grupos com práticas alternativas.
Chico Mendes na Amazônia era um adepto deste tipo de paz desarmada. Mobilizava os povos da floresta, os seringueiros e indígenas para fazerem frente aos postos avançados de desmatamento, organizando os famosos “empates” (reunião de todo tipo de pessoas, crianças, mulheres, pessoas idosas e trabalhadores com seus instrumentos de trabalho que se colocavam diante dos tratores que derrubam a floresta).
Esse tipo de paz que se confronta com a violência, é simultaneamente uma geopolítica com sua estratégia e tática mas também um espírito de paz profunda que renuncia ao recurso da violência como forma de resolver conflitos e de se lidar com eles, procurando que sejam o menos destrutivos possível. Assim é anti-imperialista e exclui a guerra como meio de criar uma nova ordem entre as nações como quer Trump. A guerra é perversa porque dizima vidas, especialmente, inocentes como na Faixa de Gaza. Ela se opõe frontalmente ao mandamento transcultural: “não matarás”.
A paz armada não visa a paz mas é uma pacificação imposta por Trump. Ela pressupõe que a realidade é uma arena onde se travam permanentemente conflitos e guerras. A convivência entre as pessoas, as comunidades e os povos é possível mas ameaçada de permanentes rupturas. Os estados-nações e os países centrais que hegemonizam a condução da história são campos de luta pelo poder para ver quem é o mais forte e com a eventual “destruição mútua assegurada”.
O grande jurista e politólogo Carl Schmitt (1888-1986), em seu O conceito do político (Vozes, 2003), sustenta a tese de que a identidade de um povo se define e se reafirma na medida em que é capaz de identificar um inimigo e de dar-lhe permanente combate, na forma do preconceito, da difamação e da satanização do outro. Não sem razão foi o ideólogo de Adolf Hitler.
Carl von Clausewitz (1780-1831: Da guerra, 1976) dá centralidade à guerra na condução da história e vê a política como a guerra conduzida por outros meios.
Foram tais visões de violência que produziram primeiramente o assassinato administrativo praticado pelo colonialismo europeu na África, na América Latina e na Ásia, dizimando em poucos anos milhões de indígenas como foi o caso do México e do Caribe no século XVI.
Com a guerra total, inaugurada por Hitler na Segunda Guerra Mundial, vem acoplada à “fabricação sistemática de cadáveres nos campos de extermínio nazista” (Hannah Arendt). Estas “fábricas de extermínio” não possuíam nenhuma necessidade militar. Aí imperava a execução banal, burocrática e técnica da morte sem qualquer escrúpulo e sem qualquer sentimento moral. Era a pura expressão do racismo e do ódio. Somente no século XX foram mortos 200 milhões de pessoas nas muitas guerras que ocorreram. Isso representa alto nível de barbárie e negação de qualquer princípio civilizatório.
Por fim, nos últimos anos surgiram as armas de destruição em massa, especialmente aquelas que usam a Inteligência Artificial Geral com seus bilhões de algoritmos, capazes de pôr fim à espécie humana e grande parte da biosfera.
Esta modalidade de guerra alterou profundamente a percepção que o ser humano faz de si mesmo. Ele pode acabar consigo mesmo. Seu fim não resulta de um cataclismo natural nem por vontade divina, mas pela própria decisão humana ou pela delegação à IA autônoma, cujas decisões escapam ao controle humano. Depois de termos nos apropriado do alfabeto genético da vida, o ser humano acaba de se apropriar da própria morte.
Tal fato ganha dimensões metafísicas que fazem pensar sobre quem é o ser humano e seu lugar no universo. Ele foi o último dos seres maiores a entrar no processo da evolução: será que não o foi para pôr fim a este processo, sendo o grande assassino de nosso sistema solar e afetando todo processo de cosmogênese?
São tais constatações de alta perversidade que estão na cabeça de Trump. Apurou-se que os EUA, desde sua fundação, sempre estiveram metidos em alguma guerra, tendo apenas guerra 17 anos de paz.
Nem por isso deixamos de confiar no ser humano, capaz de criar relações pacíficas e assim dar espaço à paz desarmada e não à guerra.