05 Agosto 2025
"Queremos uma América e um Brasil que façam desta sua dotação natural e histórica uma oferta de esperança e de sonho de uma humanidade mais solidária, mais tolerante, mais respeitadora das diferenças, mais benevolente e mais espiritual", escreve Leonardo Boff, filósofo e ecólogo, autor de Habitar a Terra (Vozes, 2022), Brasil: Concluir a refundação ou prolongar a dependência? (Vozes, 2018) e Terra Madura (Planeta, 2023).
Estamos entrando no mundo multipolar, questionado pela visão unipolar dos Estados Unidos. Neste contexto, a América Latina e o Brasil ocupam um lugar importante no debate geopolítico. Aqui estão os elementos essenciais que garantem a continuidade de nossa civilização e da vida. Tanto Trump quanto a China, em disputa, os colocaram sob seu olhar cobiçoso.
No que tange aos tarifaços, não se trata apenas de uma medida pessoalíssima de Trump, mas de todo um sistema que vê no Sul global um perigo para o dólar e para a hegemonia dos USA. O tarifaço sobre o Brasil quer significar uma lição para toda a América Latina, e para os BRICs, de submissão aos interesses imperiais. O Brasil, como nenhum outro país, está de forma soberana e serena, contrapondo-se à essa pretensão imperialista de alinhamento e até de submetimento. O que, finalmente, nós queremos? Queremos uma América Latina e um Brasil que estão nos nossos sonhos. O grande sonho é este:
Em primeiro lugar não queremos uma América Latina e um Brasil que os outros sempre quiseram: uma permanente feitoria do capitalismo em suas várias formas de realização histórica, um espelho dos países metropolitanos, um eco da voz dos patrões do mundo, uma neo-colonização, uma porção exótica do mundo onde há indígenas, povos ancestrais, papagaios e o inferno verde.
Particularmente queremos uma América Latina que resgate o sentido originário do nome que os povos que há milênios aqui vivem a chamavam: Abya Ayala que significa a Terra Madura. Esse nome é profético para todas as terras. Todas elas devem ainda madurar para que a Terra como planeta seja realmente Abya Ayala, a Terra Madura para ser a morada comum de todos os humanos, irmanados entre si e com todos os demais seres da natureza como se refere a Carta da Terra (2003, Preâmbulo) e a encíclica do Papa Francisco Laudato Si': sobre o cuidado da Casa Comum (2015). Queremos uma América Latina e um Brasil que sejam uma América indo-afro-asio-latino-americana, lugar onde se realiza seguramente o maior ensaio histórico de sincretização de todas as raças. Pois para essa porção da Terra vieram representantes de quase todas as raças humanas. Só no Brasil vieram representantes de 60 povos diferentes.
Aqui nos trópicos está imergindo uma civilização sincrética como a própria natureza, de raiz multicultural, antecipação daquilo que deverá ser a humanidade unificada num único Planeta com a consciência de um único destino comum. Ela se assenta sobre uma base ecológica promissora: a maior biodiversidade da Terra e a maior riqueza hídrica do Planeta.
Queremos uma América e um Brasil que façam desta sua dotação natural e histórica uma oferta de esperança e de sonho de uma humanidade mais solidária, mais tolerante, mais respeitadora das diferenças, mais benevolente e mais espiritual. A América do Sul é um continente místico. A realidade é vivida empapada de energias divinas que acompanham o ser humano em sua trajetória dando-lhe um sentido de transcendência, de cordialidade, de humor e de leveza.
Queremos uma América e um Brasil que consideram a Terra como a Pacha Mama, a grande Mãe, a Terra sem Males e a Gaia dos modernos e que a respeitam e veneram como se venera e respeita a nossa própria mãe.
Queremos uma América e um Brasil onde os seres humanos, homens e mulheres, se sintam filhos e filhas dessa grande Mãe e se proponham viver na sinergia e na irmandade, o ideal andino do bem viver e conviver.
Queremos uma América que não se sinta mais América mas que se sinta como a própria Terra que aqui chegou a essa consciência universalista, carregada de fraternura e de vontade de construir uma única história: a história da humanidade que encontrou seu caminho de volta à pátria comum, ao planeta Terra, após milênios de dispersão nos continentes, nos estados-nações e nos limites das culturas. Agora é o tempo de construção da Casa Comum.
Queremos uma América e um Brasil que veem os povos como tribos do único povo dos humanos, espécie do homo sapiens sapiens em sintonia com as demais espécies na mesma aventura histórica e cósmica sobre esse Planeta: uma fraternidade universal e terrenal.
Queremos uma América e um Brasil que se sintam sob o arco-íris da nova aliança (um contrato social planetário) que os humanos estão fundando entre si, aliança de convivência na sinergia, na compaixão uns para com os outros e com os demais seres, convergente na diversidade e diversa na unidade, arco-íris que simboliza a permamente aliança de Deus com tudo o que existe e vive para que nunca mais haja a devastação dos dilúvios naturais e históricos mas que todos possam sempre viver mais e melhor.
Essa América e esse Brasil só serão um dos nomes da própria Terra se nós mesmos, seus filhos e filhas, assumirmos esse chamado e vivermos consoante esse imperativo. É a própria Terra que fala e clama através de nós para que inauguremos essa nova fase da história planetária. Que esse sonho ancestral, sonhado por Bolivar, José Marti e Darcy Ribeiro se historize enquanto ainda temos tempo e se não sucumbirmos ao aquecimento global ou à alguma outra tragédia de dimensões planetárias.