12 Julho 2025
"Em última análise, acredito, que, diante do fracasso do Ocidente, que envolve diretamente a nossa Igreja, que, ao longo dos séculos, foi sua promotora e cúmplice, podemos nos salvar da decadência e ruína da civilização, voltando à prática e à Palavra de Jesus."
O artigo é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Nestes últimos dias me incomoda com frequência uma pergunta insistente: será que, nestas atuais dramáticas conjunturas, podemos aceitar como suficientemente evangélica a mera repetição do apelo aos governantes do mundo para depor as armas e garantir a paz?
Foi Bento XV (pontificado 1914-1922) que levantou a voz, pela primeira vez, durante a Primeira Guerra Mundial, para proclamar a paz: “Appello contro l’inutile strage”, “Appel aux chefs des peuples belligérants”. (1917).
Pio XI (1922-1939) condenou o nazismo com firmeza profética, única anómala, singularíssima, na famosa encíclica Mit brennender Sorge (1937), escrita em alemão e lida, surpreendendo Hitler, em todas as igrejas.
Pio XII (1939-1958) foi profeta de paz diante do horror da Segunda Guerra Mundial. Lembre-se a radiomensagem do dia 24-08-1939, mas também a sua oscilação entre prudência diplomática e omissão ética diante do extermínio dos hebreus, atitude que provocou polêmicos debates historiográficos entre vários estudiosos.
Em seguida, em 1963, na conjuntura da “guerra fria”, João XXIII (1958-1963) publica a encíclica Pacem in Terris (1963), para promover a paz entre todas as nações, a partir da justiça e dos direitos humanos.
Paulo VI (1963-1978) via a paz como fruto da justiça, do diálogo e da solidariedade entre os povos. Durante seu pontificado, ocorreram: a guerra do Vietnã, os conflitos no Oriente Médio, as ditaduras na América Latina, os Anos de Chumbo na Itália, a continuidade da Guerra Fria. Ele defendeu com coragem e firmeza a necessidade da reconciliação e da Esperança.
Em 1968, Paulo VI instituiu o Dia Mundial da Paz, celebrado todo 1º de janeiro.
João Paulo II (1978-2005) foi também incansável defensor da paz, se opondo abertamente à guerra dos EUA contra Iraque em 2003.
Bento XVI (2005-2013) na Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2006, “Na verdade, a paz”, foi firme ao condenar a guerra. Em 2006, na Universidade de Ratisbona, durante um discurso, que provocou reações negativas no mundo islâmico, condenou toda violência praticada em nome da religião.
Papa Francisco (2013-2025), condenou inúmeras vezes os conflitos na Síria, Ucrânia, Gaza, África... insistindo em soluções fraternas e diplomáticas dos conflitos.
Papa Leão XIV recentemente renovou com força profética ao apelo à paz: diante da intensificação dos conflitos no Oriente Médio, declara que “a guerra não resolve, mas amplifica os problemas” e clama para a atuação da diplomacia internacional para “silenciar as armas”.
O sintético relato nos mostra com clareza que este papel global assumido pela Igreja Católica para se opor às guerras e defender a paz é relativamente recente. Um papel cujo começo coincide com o primeiro sintoma da crise civilizacional que assola o mundo ocidental: a primeira guerra mundial, que, em 1914, já revela o tamanho da falência das apostas e promessas da modernidade ocidental. E, até hoje, as últimas cinco gerações conviveram e convivem com a violência genocida e suicida do Ocidente: guerras neocoloniais, Shoah, Hiroshima e Nagasaki, fome, migrações, poluição ambiental, colapso climático, eventos tão pavorosos que fazem pensar, sem medo de desmentida, à iminência do fim deste mundo.
Estamos vivendo entre o “tudo o que é sólido desmancha no ar” (1843) de Karl Marx, e a liquidez de Zygmunt Baumann, duas narrativas que definem este tempo que corrói irremediavelmente as relações afetivas e sociais, impõe a fluidez das identidades em constantes processos de redefinição, algoritmizadas, moldadas pelo consumismo e a estetização em rede.
O que fica inevitavelmente desestabilizado são as instituições outrora seguras e previsíveis: família, religião e estado. E não é por acaso que, hoje em dia, as direitas soberanistas e neofascistas, religiosamente inspiradas, saudosas de um passado mitificado, e não reconhecido na sua incontestável obsolescência, querem impor, com renovada violência, a tríade ‘Deus, Pátria, Família’.
Assim, a crise contemporânea nos obriga a confrontarmos com a realidade nua e crua de poderes que sem pudor afirmam que eficiência e eficácia justificam a hegemonia capitalista, ignorando as consequências trágicas do extrativismo sem limites, que produz e elimina os pobres; e ameaça de morte a própria vida. A crise permite que seres humanos possam, descaradamente, afirmar que o único paradigma político eficaz é a violência do mais forte econômica, tecnológica e militarmente. Nega-se prepotentemente não somente o que sobrou – raros escombros – do sonho fraterno e solidário da democracia e escancara-se, sem maquiagens e ocultações, a identidade constitutiva do Ocidente europeu: colonialismo predador e racista a partir das máquinas dos estados nacionais.
Máquinas de fazer guerras, nos diz recentemente Agamben:
“O que chamamos de Estado é, em última análise, uma máquina de fazer guerras, e mais cedo ou mais tarde essa vocação constitutiva do Estado acaba surgindo além de todos os propósitos mais ou menos edificantes que ele pode dar a si mesmo para justificar sua existência. Isso é particularmente evidente hoje. Netanyahu, Zelensky, os governos europeus seguem a todo custo uma política de guerra para a qual objetivos e justificativas certamente podem ser identificados, mas cujo motivo final é inconsciente e repousa na própria natureza do Estado como uma máquina de guerra. Isso explica por que a guerra, como é evidente para Zelensky e para a Europa, mas como também é verdade no caso de Israel, é perseguida mesmo ao custo de enfrentar sua própria possível autodestruição. E é inútil esperar que uma máquina de guerra possa parar diante desse risco. Vai continuar até o fim, seja qual for o preço que terá que pagar.”
Em suma, os estados nacionais, sobretudo aqueles que têm indiscutível superioridade tecnológica e militar, revelam hoje o que sempre constitutivamente foram: a milícia do capitalismo e protagonistas da competição entre antigos e novos imperialismos, inimigos mortais da humanidade e da Terra. Nisso tudo, o princípio do estado de direito e o papel administrativo do estado quase desaparecem, relativizados pela definitivamente desmascarada identidade bélica e colonizadora das instituições.
Se esta leitura radical dos estados como meras maquinas de guerra forjadas para colonizar, explorar e destruir os fracos e pequenos, corresponde à verdade, resulta ingênua e ineficaz a confiança no diálogo diplomático como estratégia de contenção e solução dos conflitos.
Pelo contrário, o que deveríamos fazer é a denúncia profética da identidade diabólica do estado, nos afastando progressivamente, num êxodo ideológico e político, de sua influência e seus poderes. A nossa Igreja poderia se salvar da ruina da civilização europeia, renegando a sua secular aliança com os impérios e os estados e renunciando à continuidade do papel do papa como capelão do Ocidente. Tarefa urgente esta, que envolve também a Igreja Luterana, que poderia se salvar do fracasso do Ocidente, renunciando a teologia das duas mãos de Deus, o Reino Espiritual e o Reino Temporal, saindo finalmente da tutela do estado e acolhendo a profecia martirial da Igreja Confessante de Dietrich Bonhoeffer (1906-1945).
Cito um exemplo não propriamente ocidental, mas que, ao meu aviso, parece-me mostrar a inviabilidade da estratégia diplomática na relação entre estados. Atualmente, convidada a dialogar pelo governo comunista chinês, a Santa Sé quase renova, ainda que provisoriamente, o paradigma do Padroado, que pensávamos obsoleto e que, na longa estação da cristandade colonial, na Terra de Santa Cruz, sagrava o direito da católica monarquia lusitana de eleger bispos, párocos e controlar as ordens religiosas.
Este acordo entre a Santa Sé e o governo chinês buscaria caminhos para reconciliar uma Igreja dividida entre a Igreja patriótica, oficial, reconhecida pelo estado e a Igreja clandestina, que sobrevive sob constante vigilância, repressão, reeducação ideológica, prisões de bispos, padres e fiéis.
Parece me, porém, que esta aposta diplomática, que busca a garantia da liberdade de culto numa convivência pacifica, possa pôr em segundo plano a fidelidade evangélica e martirial da Igreja clandestina.
Em última análise, acredito, que, diante do fracasso do Ocidente, que envolve diretamente a nossa Igreja, que, ao longo dos séculos, foi sua promotora e cúmplice, podemos nos salvar da decadência e ruína da civilização, voltando à prática e à Palavra de Jesus.
O que nos resta, diante da “morte de Deus”, que, já há muito tempo, “graças a Deus”, não funciona mais como garante da legitimidade jurídica das instituições, mas não deixa de ser insistentemente submetido às blasfêmias teocráticas e aos contemporâneos “Gott mit uns”, é somente o evento e a Palavra de Jesus de Nazaré.
A nossa Igreja continua nos doando, desde o Batismo, a única perola preciosa da presença e memória de Jesus de Nazaré, o Messias crucificado e ressuscitado, com o convite irrenunciável à imitação de sua praxe e obediência a sua Palavra nas circunstâncias, sempre novas e desafiadoras, de nossa história.
Jesus, reconhecido como o único kurios, o único Senhor, em profética oposição aos senhores do mundo.
Ele se opôs amorosa e radicalmente às instituições do seu tempo, enfrentando, desarmado, em primeiro lugar, o Templo e a casta sacerdotal e decretando que o poder político é coisa do diabo e nunca será saudável organizador e protetor das relações sociais (Mt 4,9). Nos diz, diante de Pilatos, que o seu Reinado está presente e próximo, mas não obedece à lógica deste mundo.
Nos sobra somente a Sua presença e o nosso atrevimento de dizer a verdade e de ser a verdade, abraçando a Cruz.