24 Junho 2025
"Para Ambrósio, a Criação, enquanto manifestação da sabedoria divina, reflete uma realidade metafísica ordenada, proposital e hierarquizada, pelo que a estrutura narrativa de seis dias é para ele, por exemplo, uma manifestação linguística do caminho do Caos para o Cosmos, uma ideia em que ecoam cosmologias anteriores, mas que é emoldurada exclusivamente pelo monoteísmo judaico-cristão".
O artigo é de Paulo Ramos, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e tradutor, publicado por 7Margens, 20-06-2025.
As circunstâncias de vida de Ambrósio, um dos mais influentes Padres da Igreja, são bem conhecidas: costuma situar-se a data do seu nascimento algures entre 333 ou 340; o seu pai era praefectus praetorio Galliarum, em comissão em Tréveris, moderna Alemanha, onde nasceram todos os seus filhos. Após a prematura morte do marido, a mãe, recém-viúva, leva os três filhos para Roma onde Ambrósio, o mais novo, frequenta as escolas de retórica, preparando-se para uma carreira pública. Alcançou o ofício de cônsul por volta de 370, administrando duas províncias do Norte. A sua eleição como bispo de Milão após a morte do bispo ariano Auxêncio ocorreu poucos anos mais tarde, em 374. Por estranho que nos possa parecer, houve um tempo em que ao povo de Deus era consentido escolher os seus bispos…
A sua afabilidade, o seu sentido de justiça e sobretudo a sua solicitude pastoral tornaram-no imediatamente notado, traços ainda hoje perfeitamente evidentes nas suas cartas, catequeses e, sobretudo, homilias. De entre elas, o Hexaemeron – nove homilias sobre os seis dias da criação, pregadas durante a Semana Santa de 387 – sintetizando as aspirações intelectuais e espirituais de uma época, tal como a nossa, de profunda transformação, mantém um extraordinário poder de nos convocar, à distância de séculos, para a contemplação da Criação, do sentido do humano e de uma ordem moral da sociedade.
Apresentando-se enquanto profundo trabalho teológico e exegético, o seu significado, contudo, transcende a mera interpretação das Escrituras, pois concorre para uma síntese entre o pensamento clássico e a doutrina cristã, moldando a teoria política medieval e determinando o desenvolvimento teológico da civilização ocidental.
Educado em retórica e filosofia clássica, Ambrósio mobiliza as tradições platônica, estoica e aristotélica, reinterpretando-as à luz da bondade intrínseca à experiência de ser: a sua reflexão sobre a Criação enfatiza, pois, a racionalidade, reverberando o conceito platónico de um cosmos moldado por uma causa perfeita e transcendente. Para Ambrósio, a Criação, enquanto manifestação da sabedoria divina, reflete uma realidade metafísica ordenada, proposital e hierarquizada, pelo que a estrutura narrativa de seis dias é para ele, por exemplo, uma manifestação linguística do caminho do Caos para o Cosmos, uma ideia em que ecoam cosmologias anteriores, mas que é emoldurada exclusivamente pelo monoteísmo judaico-cristão.
As reflexões de Ambrósio sobre o lugar da humanidade na criação enfatizam o imago Dei, não enquanto prerrogativa ou privilégio existencial, mas como base para a dignidade humana e para a responsabilidade moral diante do próximo e de toda a Criação, ideia a que subjazem profundas implicações éticas e que dará forma às noções medievais e modernas de direitos humanos e justiça, por exemplo: partindo de princípios estoicos para argumentar que o mundo natural reflete a ordem divina e serve de guia para uma vida virtuosa, Ambrósio descreve a natura como uma espécie de ‘mestre moral’ em cuja harmonia e equilíbrio o homem deve beber a gratuidade, a liberdade, o risco e a confiança do gesto arrebatador que lhe deu o Ser.
Mais ainda, a estrutura ordenada da Criação serve, para Ambrósio, como uma analogia de uma justa governança, insinuando que o exercício do poder deve espelhar a sabedoria e a justiça divinas, promovendo a harmonia e o bem comum – noção que antecipa toda a teoria política medieval, particularmente a ideia do direito divino de reis temperados pela responsabilidade moral.
Para a elaboração destas homilias, Ambrósio muito deve à célebre obra sobre o mesmo tema do seu contemporâneo São Basílio, cujas homilias sobre o mesmo tema foram proferidas cerca de 17 anos antes das do seu admirador latino e, tal como as de Ambrósio, no decurso de uma semana da Quaresma, mas seria um erro presumir que a obra de Ambrósio é uma mera tradução. Trata-se, na verdade, de uma adaptação livre, em estilo latino, repleta de reminiscências da vasta leitura dos clássicos feita por Ambrósio, e que parece ter guardado na memória desde os seus tempos de estudante em Roma.
Seguindo os passos do seu grande modelo, Ambrósio transformou estes sermões numa série de reflexões cristãs e humanísticas sobre a natureza e sobre o homem na sua relação com o Criador, que os formou a partir do nada. Elaborando este pensamento a partir do multiforme corpo das Escrituras, Ambrósio recorreu também, além disso, a inúmeras referências ao seu mais amado poeta latino: a filosofia teocêntrica de Virgílio, expressa especialmente nas Geórgicas, tornou-se objeto de fascínio para o seu compatriota – seu conterrâneo, na verdade, pois Virgílio passou parte da sua infância e adolescência como estudante em Milão. Ao contrário de Basílio, Ambrósio mantém algo do espírito do poeta romano que igualmente se surpreende com as maravilhas do mundo criado numa linguagem frequentemente cheia de charme: “Todo o encanto de todas as Musas, tantas vezes florescendo numa palavra solitária.” Ambrósio amalgamou muitas destas ‘palavras solitárias’ neste seu mosaico reflexivo sobre a criação: das 103 reminiscências de Virgílio, cerca de metade são retiradas das Geórgicas; a Eneida forneceu mais de 40; e há oito passagens que sugerem que Ambrósio também nutria alguma estima pelas Éclogas.
O Hexaemeron de Ambrósio – infelizmente não disponível em português – permanece um texto imprescindível, propondo ao leitor moderno ousados desafios sobre perenes questões filosóficas e éticas: o retrato da Criação realizado por Ambrósio enquanto reflexo da sabedoria divina convida à reflexão sobre a necessidade de uma ética ambiental e os limites da intendência do homem sobre um mundo natural que lhe foi oferecido, mas não lhe pertence; e a sua insistência na dignidade do homem enquanto imago Dei desafia as sociedades modernas a ponderar as desigualdades como produto do mal; o texto exemplifica, enfim, como a fé e a investigação racional podem coexistir, promovendo um diálogo que continua absolutamente imperioso numa sociedade aberta e plural como a nossa.
Na nona e última homilia, pregada na Vigília Pascal, Ambrósio procura compreender, com tocante leveza e humanidade, o significado do agrado de Deus diante de tudo quanto criou: as coisas não são, pois, a essência, mas um sinal da presença de Deus no mundo.
Do grupo de batizados dessa noite, fazia parte um jovem catecúmeno em cujo interior ecoaram essas palavras e essa revolucionária ideia de o Ser, enquanto pura mediação entre Deus e as coisas, ser aquele lugar em que a realidade se ilumina porque “Deus viu que era tudo muito bom”. Chamava-se Agostinho e, muitos anos mais tarde, também ele bispo, confessaria em parágrafos magistrais o quanto essa noite e essas palavras haviam testemunhado a sua vida.