10 Mai 2025
Movimento negro critica a ausência de representantes com poder decisório nas reuniões enquanto 586 territórios na Amazônia e outros 1.351 no país aguardam titulação.
A reportagem é de Jullie Pereira, publicada por InfoAmazônia, 08-05-2025.
A Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), entidade que reúne as associações de quilombos de todo o país, deixou a 18ª Mesa Quilombola, reunião promovida pelo Incra e pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) para discutir as titulações dos territórios. A ausência do presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), César Aldrighi, e de outros ministros para efetivação dos acordos foi um dos principais motivos apontados. O movimento também cobra mais compromisso do governo federal.
“A nossa principal fala é de que falta um respeito mesmo. A gente chama isso de racismo institucional, porque a nossa luta não está sendo reconhecida, o nosso povo não está sendo reconhecido”, diz Silvano Santos, coordenador executivo da Conaq. Atualmente, 586 comunidades da Amazônia e 1.362 de outras regiões do país aguardam a conclusão de seus processos de titulação, segundo dados do Incra.
A Mesa Quilombola, oficialmente chamada de Mesa Permanente de Acompanhamento da Política de Regularização Quilombola, foi criada pelo Incra em 2013 e regularizada pela Portaria n.º 397, de 24 de julho de 2014. Ela é uma instância de contato com as organizações da sociedade civil, e visa monitorar e informar às comunidades sobre os processos de titulação. Ela foi retomada em abril de 2024, depois de um hiato de seis anos, entre o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o primeiro ano do governo atual, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
Em 24 de abril, quando ocorreu a última reunião, os representantes da Conaq estavam em Brasília para participar e se apresentaram na sede do Incra, mas foram surpreendidos com a ausência do presidente da instituição. Na programação, estavam previstas a participação de Aldrighi e de representantes da Diretoria de Territórios Quilombolas e da Diretoria de Desenvolvimento do órgão. Também estava prevista uma declaração do Ministério da Igualdade Racial (MIR).
Sem a presença de Aldrighi, a Conaq decidiu se retirar da reunião. Para retornar ao debate, eles também cobram a participação do Ministério Público Federal (MPF), do Ministério do Meio Ambiente (MMA), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH) e do Ministério da Fazenda.
“Na mesa de abertura, a gente já observou que o presidente do Incra não estava. Dos diretores que têm ‘poder de caneta’ [podem decidir ações], não havia ninguém. E a gente já começou a ficar triste porque as nossas demandas não seriam decididas”, conta Santos.
Em resposta às ausências, uma nota foi publicada pela Conac exigindo maior participação ministerial e a apresentação de um cronograma de titulação dos territórios, com datas a serem cumpridas para a publicação de relatórios territoriais, documentos que oficializam a delimitação física das terras. A cobrança dos líderes quilombolas tem um contexto longo de espera, já que a Mesa Quilombola foi criada em 2013, mas ficou paralisada durante seis anos, até ser reativada pelo Governo no ano passado.
“A responsabilidade e o comprometimento das autoridades responsáveis são pontos essenciais neste momento de tantos embates que a luta dos quilombos do Brasil enfrenta. Considerando a morosidade do órgão em regularizar terras quilombolas e proteger nossas vidas, o número de assassinatos das nossas lideranças e, sobretudo, a ausência de políticas públicas dentro dos nossos territórios, a Conaq se opõe à falta de compromisso com a pauta quilombola no contexto da política de regularização fundiária. Em função dessa falta de comprometimento, não se vê sentido na continuidade da mesa de diálogo”, escreveu a entidade.
O Incra informou à InfoAmazonia que, desde a criação da mesa, em 2013, representantes do órgão participam de todas as reuniões, mas que não irá comentar a saída da Conaq. O órgão também deixou claro que está à disposição para novos diálogos e planejamentos junto às comunidades. “O Incra tem pautado suas ações a partir do diálogo e respeito à autonomia dos movimentos sociais, logo, não comenta suas decisões. A mesa é um fórum que debate a pauta quilombola e planeja as ações voltadas às comunidades, logo, a presença das representações quilombolas é necessária”, disse.
A InfoAmazonia entrou em contato com o Ministério Público Federal (MPF), Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDH) e com o Ministério da Fazenda. A reportagem perguntou se são verdadeiras as alegações de ausências nas reuniões, como dito pela Conaq, e por qual motivo os órgãos não estariam participando. Também questionou se há acompanhamento das discussões feitas na mesa de alguma outra forma.
O MJSP não respondeu a todas as perguntas, mas explicou que mantém diálogo com os órgãos de defesa dos territórios quilombolas, como o Incra, a Fundação Palmares e o Ministério de Igualdade Racial, e é informado sobre as demandas necessárias para a agenda do movimento quilombola. Também destacou sua participação no último ano. “Apenas no ano de 2024, a Saju [Secretaria de Acesso à Justiça, um braço do MJSP] integrou comitivas de missões interministeriais para diálogo com comunidades quilombolas no Maranhão, na Bahia, em Minas Gerais e no Pará, com foco na articulação em casos de conflitos territoriais, recebimento de denúncias e realização de oficinas de acesso à justiça”, disse. Leia a nota completa aqui.
Os outros órgãos citados não responderam.
1. Certidão de registro: a comunidade se reconhece como um quilombo e procura a Fundação Cultural Palmares para buscar a ‘Certidão de Registro’ e ser incluída no ‘Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades e Quilombos’.
2. Elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID): O Incra abre um grupo de trabalho para realizar o RTID, documento formado por estudos antropológicos, fundiários, mapeamento e cadastro das famílias.
3. Publicação do RTID: O documento é avaliado e, após aprovação, publicado no Diário Oficial da União e enviado aos órgãos competentes. Esta fase pode envolver mais de dez instituições, como o Ibama, ICMbio, IPHAN, AGU, Funai e Casa Civil. Eles devem informar se existe alguma restrição.
4. Portaria de reconhecimento: Depois de aprovado por todos, a presidência do Incra publica portaria reconhecendo os limites territoriais e declarando a terra como quilombo.
5. Decreto de desapropriação: O documento garante a retirada, reassentamento e pagamento de indenizações às famílias que não são quilombolas e vivem no território, os chamados “posseiros”.
5. Titulação: Documento expedido com as informações oficiais do quilombo.
Na Amazônia, há 586 processos de titulação em andamento, o que representa 30% dos 1.937 de todo o país, segundo dados do Incra. São 31 no Amapá (AP), quatro no Amazonas (AM), 427 no Maranhão (MA), 58 no Mato Grosso (MT), 73 no Pará, oito em Rondônia e 37 no Tocantins (TO). Os números correspondem aos pedidos feitos entre 1 janeiro de 2004 e 2 de abril de 2025, período da base de registros do órgão.
O processo mais antigo na Amazônia, o de 2004, é o da comunidade Cunani, no Amapá, onde vivem 38 famílias que buscam o título há 21 anos. O último trâmite ocorreu em novembro de 2023, quando o Incra publicou uma portaria declarando e reconhecendo o território como um quilombo. Agora, eles esperam um decreto de desapropriação, quando os posseiros são retirados do local, e a emissão do documento oficial de titulação.
Os processos de quilombos podem envolver mais de dez órgãos da esfera estadual e federal, que precisam avaliar os documentos e garantir que não haja conflitos de terras. As comunidades afirmam que essa demora está deixando as terras vulneráveis a invasores e destacam que sua capacidade de preservação é maior quando os territórios já estão titulados. Em 2022, a InfoAmazonia mostrou que 99% dos quilombos da Amazônia estão intactos, formando escudos de proteção na floresta.
“O governo criou, por meio do MDA e do Incra, uma coisa que eles estão chamando de agenda nacional de titulação. Só que essa agenda não tem um cronograma específico, não está construída para que as titulações realmente aconteçam”, diz Silvano Santos.
Em 2023, o governo Lula lançou o programa Aquilomba Brasil, por meio do Ministério de Igualdade Racial e do Incra, com quatro eixos de trabalho, entre eles o “acesso à terra”, para executar e acompanhar as titulações de terras quilombolas. Até agora, o governo titulou 32 territórios, de acordo com informações do Incra.
Em setembro do ano passado, foi criada a Diretoria de Territórios Quilombolas, que está responsável por acelerar os processos de regularização. Neste ano, a meta é entregar o documento de 35 terras, mas nenhuma foi registrada até agora.