06 Mai 2025
Neste tempo marcado por sistemas de vigilância onipresentes e algoritmos de reputação, o conclave ocorre sob o signo da superexposição digital. Nunca os cardeais foram tão minuciosamente analisados e publicizados. Com isso, emerge uma espécie de “eclesiologia da vigilância”, por meio da qual se tenta influenciar decisões eclesiais com base em estratégias de mineração de dados e campanhas digitais de opinião pública.
O comentário é de Moisés Sbardelotto, professor da PUC Minas.
Historicamente, desde o século XIII, quando a Igreja se preparava para a eleição de um novo papa, bastava trancar a porta da Capela Sistina com chave para garantir o sigilo dos cardeais reunidos em conclave. A “fechadura” não era apenas simbólica, sinal da clausura necessária para o discernimento colegiado de um novo sucessor de Pedro, mas também material. Ao brado de “extra omnes”, só os cardeais ficavam sabendo o que ocorria lá dentro, fechados a toda interferência externa.
Em tempos digitais, porém, portas, fechaduras e chaves não são mais suficientes. No conclave de 2005, que elegeu Bento XVI, os celulares, já disseminados entre os cardeais, não foram proibidos de passar pelas portas. Com isso, de acordo com o site Interference Technology, um cardeal alemão, ainda dentro da Capela Sistina, teria supostamente enviado uma mensagem de texto informando uma emissora de televisão alemã que Joseph Ratzinger havia sido eleito. O canal, então, teria divulgado ao mundo o nome do novo papa antes do anúncio oficial na Praça São Pedro.
Vinte anos depois, com a rapidez dos avanços tecnológicos, o conclave deste ano não poderá ser blindado apenas com portas de madeira e aldravas de ferro contra a ação de sujeitos humanos e não humanos como os sistemas de vigilância. Serão necessárias outras portas, chaves e fechaduras mais poderosas, especificamente digitais.
Segundo a revista Wired, o Vaticano implementou medidas tecnológicas rigorosas para garantir a confidencialidade deste conclave. Entre as precauções, está a instalação de um segundo piso na Capela Sistina, não apenas para proteger o pavimento histórico, mas principalmente para permitir a instalação de bloqueadores de sinal de internet, bluetooth e radiofrequência, transformando a capela em um verdadeiro bunker eletrônico. Esse “cone de silêncio” se estenderá até à Casa Santa Marta, onde os cardeais estão hospedados. Nenhum celular, rádio ou transmissor conseguirá funcionar dentro desses ambientes.
Como ainda não existe nenhuma tecnologia capaz de ver através das paredes, as reuniões continuarão sendo a portas fechadas, mas também serão aplicadas películas opacas nas janelas, para evitar monitoramentos clandestinos por satélites ou drones. A segurança será ainda mais reforçada por inspeções rigorosas em busca de dispositivos não autorizados, como microfones e microcâmeras. Todos os participantes e assistentes do conclave serão revistados duas vezes por dia para garantir que não introduzam tecnologias proibidas, como os celulares pessoais.
Com a sombra do escândalo Vatileaks ainda pairando sobre a Santa Sé, tais medidas visam a evitar tanto os vazamentos de dentro para fora da Capela Sistina – por meio de mensagens e gravações – quanto as infiltrações de fora para dentro – como tentativas de manipulação e ingerência nos votos. Com isso, a criptografia se sobrepõe às trancas de metal, os bloqueadores de sinal se sobrepõem ao sigilo cerimonial, e o sinal de fumaça permanece vivo, ativo e necessário em tempos de sistemas de IA e drones.
O desafio maior, contudo, não se restringe à infraestrutura. Ao longo da história, a eleição de um papa nunca ocorreu em um limbo social, mas sempre no interior de um ecossistema comunicacional permeado por fatos e boatos. Durante séculos, houve tentativas de influenciar a eleição papal por interesses políticos de reis, imperadores e Estados.
O processo de digitalização das últimas décadas provocou, também para a Igreja e a fé, uma verdadeira midiamorfose, na qual a experiência religiosa é reconfigurada ao ser vivenciada em novos ambientes sociais como os digitais. Isso vale inclusive para os processos mais reservados e tradicionais do catolicismo. O conclave, nesse sentido, não escapa à lógica da midiatização da religião, tornando-se atravessado por lógicas midiáticas, fluxos informacionais e dinâmicas comunicacionais digitais problemáticas, como estratégias de infodemia e de desinformação eclesiais.
Hoje, os cardeais eleitores não vivem mais em feudos isolados, mas em redes informacionais que moldam a maneira como eles percebem o mundo, a Igreja e seus próprios pares. Além disso, o conclave de 2025 será muito mais global: estarão presentes 131 cardeais eleitores provenientes de 71 países, em comparação com as 48 nações representadas no conclave que elegeu o Papa Francisco 12 anos atrás. Em uma Igreja globalizada, os cardeais conhecem o mundo e se conhecem entre si também – e talvez principalmente – por meio do que circula nas redes digitais: informações e desinformação em postagens, entrevistas, fotos, vídeos, memes. O mundo e a comunidade eclesial em geral, por sua vez, também têm acesso aos cardeais principalmente por meio daquilo que circula e é filtrado digitalmente.
Por isso, o pré-conclave atual – mais extenso e com mais encontros presenciais entre os cardeais nas Congregações Gerais – é uma tentativa de recuperar a corporeidade e a imediaticidade do encontro e da convivência que a mediação digital sozinha não garante – e, muitas vezes, até distorce, por meio de estereótipos, vieses de leitura, impressionismos e pré-conceitos midiáticos. A presença física torna-se uma forma de restaurar a gramática da comunhão em meio à babel das plataformas.
E isso se mostra ainda mais necessário diante de casos como os boatos em torno da saúde dos cardeais, ou de vídeos antigos que voltam a circular fora de seu contexto, ou ainda de memes que promovem deboche e zombaria inclusive com casos explícitos de racismo e homofobia sobre os cardeais. Tais campanhas de desinformação e difamação chegaram até ao máximo nível político-governamental com o recente tuíte do presidente dos EUA, republicado pela conta oficial da própria Casa Branca, com uma imagem gerada por IA retratando Trump como papa (com um lapso do ponto de vista do vestuário: a mitra é usada apenas com as vestes litúrgicas, e não com o hábito talar...).
Neste tempo marcado por sistemas de vigilância onipresentes e algoritmos de reputação, o conclave ocorre sob o signo da superexposição digital. Nunca os cardeais foram tão minuciosamente analisados e publicizados. Nos bastidores do conclave, atuam projetos como o The College of Cardinals Report, que vasculham e divulgam dados e informações públicos e até privados sobre o pensamento e o posicionamento de cada cardeal, sem critérios claros sobre como e por que isso é feito.
Historicamente, os cardeais buscavam se informar sobre seus colegas por meio de discussões privadas e correspondências, particularmente na Idade Média e no Renascimento, quando o número de cardeais frequentemente não ultrapassava uma dezena. Depois, com o surgimento dos jornais, informações e detalhes sobre os principais candidatos passaram a ser publicados abertamente. Outra fonte de informação eram os chamados “tableau de cardinaux”, no século XVIII, em que diplomatas e outras pessoas de confiança compilavam biografias mais detalhadas e confiáveis dos cardeais e as distribuíam publicamente.
“Ironicamente – afirma o projeto em seu site – hoje, apesar da abundância de informações acessíveis na internet, esse tipo de pesquisa detalhada e confiável é mais difícil de encontrar e, portanto, mais procurada do que há 500 anos. [...] Este site, portanto, visa ajudar a preencher essa lacuna de conhecimento, auxiliando os cardeais eleitores de forma modesta em seu discernimento, bem como ajudando a informar a mídia e qualquer pessoa interessada em quem pode se tornar o líder religioso mais influente do planeta.”
Em tese, tais iniciativas se propõem a oferecer transparência. Na prática, contudo, esses “vigilantes digitais” traçam perfis ideológicos e sugerem elegibilidades com base em métricas político-teológicas nem sempre claras. Os itens destacados pelo The College of Cardinals Report para avaliar cada cardeal, por exemplo, são questões ligadas à doutrina e à disciplina, como a ordenação de mulheres, a bênção a casais do mesmo sexo, o celibato facultativo, a retomada da Humanae vitae, a comunhão a pessoas divorciadas e recasadas. No entanto, o site não explicita em nenhum lugar as motivações, os vínculos institucionais, nem as visões teológicas e eclesiológicas dos promotores do projeto.
Com isso, emerge uma espécie de “eclesiologia da vigilância”, por meio da qual se tenta influenciar decisões eclesiais com base em estratégias de mineração de dados e campanhas digitais de opinião pública. A lógica das plataformas digitais – com sua tendência à polarização, à simplificação e à viralização – alastra-se até nos corredores da Cúria e, como fumaça (mas em sentido contrário ao da célebre chaminé), tentará infiltrar-se também na Capela Sistina.
Mais importante do que as tecnologias de controle é a consciência teológica e pastoral que deve animar o caminho eclesial que tem no conclave uma de suas etapas mais importantes. O que está em jogo, no fundo, é uma nova eclesialidade digital e global, em meio às inter-relações sociais emergentes e às redes de poder e de informação que moldam as decisões pessoais, comunitárias, institucionais e sociais. Um conclave precisa ser espaço de discernimento, livre de pressões externas e internas, mas também sensível e crítico à realidade de uma Igreja que se move em rede, com seus riscos e possibilidades.
Mais do que nunca, o conclave não é apenas um ato de governo, mas também um ato de comunicação. A Igreja, como rede de redes, é desafiada a ressignificar o sentido de “católico” em um mundo onde o “universal” se torna acessível ubiquamente, filtrado por plataformas e algoritmos, e onde o silêncio sagrado do conclave precisa disputar espaço com o ruído incessante das redes.
As “chaves digitais” do conclave de 2025 não são apenas um aparato de segurança cibernética, mas também um símbolo da “tradição em transição” neste período da história: da Igreja fechada em si mesma a uma Igreja aberta ao mundo e a caminho em meio a mecanismos e processos sociais, tecnológicos e eclesiais que, muitas vezes, tentam capturá-la e encerrá-la novamente. Se o Espírito sopra onde quer, como crê a fé cristã, é papel da Igreja garantir que Ele não seja abafado por algoritmos nem posto em segundo lugar por narrativas em rede. O desafio é discernir os sinais dos tempos provenientes dos códigos e protocolos que estruturam o presente da cultura digital e também condicionam o futuro eclesial.