07 Janeiro 2025
Embora a legislação não contemple o asilo por razões climáticas ou ambientais, vários especialistas exigem que os deslocados por razões ambientais tenham o mesmo estatuto que aqueles que fogem de guerras ou perseguições políticas.
A reportagem é de Marta Teixido, publicada por El Diario, 04-01-2025.
Uma fina linha de areia era a única coisa que separava a casa da família de Sin Seck, conhecido como Baye pelos amigos, do oceano. Da infância no Senegal ele se lembra dos dias que acompanhava o pai na pesca ou das tardes improvisando jogos de futebol na praia. Ele também se lembra dos avós, sempre elegantes, caminhando em direção ao litoral para cumprimentar os pescadores quando o sol começava a se pôr.
Ano após ano o nível do mar subia. Até que um dia engoliu sua casa e também tirou sua vida no bairro de Guet N’dar, localizado na cidade de Saint Louis, no Senegal, e com ela, o sonho que herdou de gerações: ser pescador. Diante da devastação, ele não teve escolha senão deixar tudo para trás. Certa noite, ele embarcou em um barco, sem saber se chegaria ao seu destino e muito menos se voltaria a pisar em seu país.
Embora a maioria das mobilidades relacionadas com o clima sejam movimentos internos, há também aqueles que atravessam fronteiras internacionais. Apesar disso, pessoas como Sin permanecem invisíveis.
Isto porque não podem requerer asilo ou proteção. E o termo “refugiado climático” não tem reconhecimento legal. As causas climáticas não são abrangidas pela Convenção de Genebra, que apenas reconhece a perseguição por motivos políticos, religiosos, étnicos, de nacionalidade ou de conflito armado.
Esta invisibilidade é agravada porque os efeitos das alterações climáticas estão a afetar o Sul Global de forma muito mais severa. Embora ainda não tenha chegado à Europa com a mesma intensidade, como salienta Miguel Pajares, autor do livro Refugiados Climáticos: o grande desafio do século XXI, “os deslocamentos vão demorar mais, mas também vão acabar por ocorrer na Espanha processos de geração lenta, como a desertificação, acabarão por nos deslocar”, alerta.
Elena Muñoz, advogada especializada em Direito do Asilo, destaca a dificuldade de identificar e reconhecer aqueles que são deslocados por razões climáticas. “Não temos estatísticas oficiais sobre quantos casos existem, pois, além de a categoria de refugiado climático não existir legalmente, em muitos casos as alterações climáticas não são a única causa da fuga”. Estas situações estão frequentemente interligadas com outros fatores, como os conflitos armados, a perda dos seus meios de subsistência ou a sobre-exploração dos mares em determinadas zonas de pesca.
Uma responsabilidade política
Ndaga Seck tem as mesmas memórias da sua infância. Ambos cresceram como pescadores no mesmo bairro. Eles não se conheciam, mas algum tempo depois descobriram que eram primos. Aos 14 anos escolheram o caminho da pesca, entrando nas águas do Atlântico. “A pesca é tudo para mim, é a nossa cultura e a nossa forma de viver em Guet N'dar”, afirma Ndaga. “Nossos antepassados, avós e pais também eram pescadores; É o património que temos”, acrescenta.
Na estreita península arenosa conhecida como Langue de Barbarie, que separa o rio Senegal do Oceano Atlântico, fica o bairro de Guet N'dar. Localizada na cidade de Saint Louis, é uma das mais populosas e dinâmicas da região. A maioria dos seus habitantes pertence à etnia Lebou, que há séculos se dedica à pesca.
Enquanto os homens vão para a água quando as condições o permitem, as mulheres processam o peixe e as crianças enchem as ruas, o nível do mar sobe todos os anos, tendo avançado até seis metros em poucos anos. Isto “intensifica a erosão costeira e ameaça a habitação, as atividades econômicas e a estabilidade da área”, afirmam os investigadores Loïc Brunning, Marion Fresia e Alice Sala, da Universidade de Neuchâtel.
Papa Sow, especialista em alterações climáticas e migrações do Nordic Africa Institute, destaca que, embora o fenómeno tenha componentes naturais e esteja claramente ligado às alterações climáticas, “a subida do nível do mar e a modificação das tempestades aceleraram o problema da erosão”.
A isto somam-se dois fatores diretamente relacionados com a intervenção humana, que agravam ainda mais a situação atual. Entre estes, Sow salienta o impacto do aquecimento global, da construção intensiva na Langue de Barbarie, que ampliou a deriva de areia causada pelas ondas, e de políticas de planeamento urbano inadequadas que agravam a vulnerabilidade desta frágil região costeira.
Por isso, especialistas como Miguel Pajares consideram que falar em ‘refugiados climáticos’ torna visível a responsabilidade dos governos e das empresas nesta questão. Ele ressalta que, diferentemente de outras mudanças climáticas ao longo da história geológica, a atual não é natural: é consequência da ação humana. “Embora os governos estejam conscientes desta realidade e tenham assinado tratados, como a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas em 1992, as emissões não pararam de aumentar”, acrescenta.
“Este fracasso transforma as alterações climáticas num problema político e as suas vítimas em vítimas de decisões políticas. Portanto, embora o termo ‘refugiado climático’ não implique asilo legal, serve para exigir que os governos assumam a sua responsabilidade para com aqueles que fogem destes impactos”, conclui.
Abaixo do nível do mar
Ndaga estava convencido de que, mais cedo ou mais tarde, o mar iria levar-lhe a casa. Ele não conseguia mais viver da pesca porque os navios das grandes multinacionais haviam inundado a costa. Para além dos problemas climáticos, a pesca artesanal, vital para a economia dos países da África Ocidental, está a ser seriamente afetada pela indústria pesqueira internacional. Destruindo uma das principais fontes de emprego da região e deixando inúmeras famílias sem meios de subsistência.
Ndaga teve que ajudar a família e, para progredir, em 2006 decidiu embarcar uma noite num barco com 60 pessoas. Depois de uma semana navegando, chegou a Gran Canaria. Cinco anos depois, em 2016, nada restou da sua casa em Guet N'dar.
Atualmente, Ndaga vive com a mulher, Fatou Amet, também longe do mar, em Artesa de Segre, uma pequena localidade de Lleida, rodeada de campos e montanhas, a mais de 100 quilômetros da costa.
À noite refugiaram-se na casa de conhecidos que estavam hospedados longe do litoral. “Na manhã seguinte, um amigo me acompanhou para limpar o que restava da minha casa”, conta. Lembre-se de como o mar ainda estava agitado e, de repente, a força da água levou tudo embora. “Naquele momento, minha família e eu perdemos tudo”, ele sussurra, com a voz embargada. No dia seguinte, restavam apenas paredes quebradas do que antes era sua casa.
Uma viagem sem garantias
Após 15 dias navegando quase sem água e comida, uma parte do frágil barco quebrou, obrigando-os a retornar ao ponto de partida. Conseguiram-no graças aos pescadores que nele viajavam, que conseguiram reparar o barco e regressar a Guet N'dar. Só cinco meses depois Sin viajou para a Gâmbia, embarcou em outra canoa e finalmente conseguiu chegar à ilha de La Gomera, nas Ilhas Canárias.
Beatriz Felipe, investigadora especializada em migrações climáticas, acrescenta que, tal como aconteceu com a interpretação da Convenção de Genebra nos casos de perseguição com base no género ou na violência sexista, onde não foi necessário alterar o texto original, poderíamos começar a aplicar uma interpretação mais ampla para incluir as pessoas afetadas pelas causas climáticas.
“Os Estados, aos poucos, poderiam incorporar essas situações sem a necessidade de modificações formais”, conclui. Ou seja, como salientam os especialistas, o vazio jurídico obriga as razões climáticas a serem incluídas nos números já existentes e há espaço para expandir a sua interpretação.
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