30 Abril 2024
"A arte, quando é verdadeiramente arte, sempre transformou ou subverteu os regimes de visibilidade e falabilidade permitidos numa determinada época", escreve Marcello Tarì, pesquisador independente italiano, em artigo publicado por Settimana News, 26-04-2024.
(Foto: Settimana News)
A misericórdia tem olhos para ver,
ouvidos para ouvir,
mãos para levantar...
(Audiência Jubilar do Papa Francisco de 30-06-2016).
O Pavilhão da Santa Sé na sexagésima Bienal de Arte de Veneza está aberto ao público há alguns dias, representando um “acontecimento” por vários motivos, especialmente o de ser a primeira bienal que contará com a presença de um pontífice. O Papa Francisco estará na cidade lagunar no próximo domingo, 28 de abril.
O da Santa Sé, porém, não se apresenta de forma alguma como um “pavilhão” no sentido clássico em que é entendido, pois é, na realidade, a prisão feminina da ilha de Giudecca, em Veneza, ainda em pleno uso de suas funções como casa de detenção.
Tem-se falado muito sobre esta seção expositiva, ainda antes da sua inauguração, e alguns críticos já conseguiram argumentar que a seção da Santa Sé promete ser a mais interessante de toda a exposição. É possível, se desejar, ouvir ou ler as diversas apresentações oficiais deste “não pavilhão” e as diversas entrevistas com os curadores, Chiara Parisi e Bruno Racine, e com o Cardeal José Tolentino de Mendonça, enviado do Vaticano para este projeto do qual acompanhou pessoalmente a construção. Além disso, algumas imagens significativas das obras já estão visíveis on-line.
O título do projeto artístico sediado em Giudecca é With My Eyes, o que já nos dá muito o que pensar. Na verdade: são eles os olhos de quem? Quem está olhando para quem, principalmente porque é uma prisão? São os meus olhos de visitante ou os das mulheres que habitam aquela prisão? São os dos guardas ou de alguma entidade supervisora mais abstrata? Ou é o olhar dos artistas?
Ou seja, daqueles que Francisco, no discurso que lhes dirigiu no passado dia 23 de junho, assim descreveu: "Vocês são aliados do sonho de Deus! Vocês são olhos que observam e sonham. Não basta apenas olhar, é preciso também sonhar." Depois, porém, devemos pensar que entre as possibilidades concretas está a de que esses meus olhos possam ser os do olhar de Deus. De um Deus que sonha por nós, conosco e em nós.
Em todo o caso penso que, como muitas vezes acontece com as questões relacionadas com a arte, é uma questão destinada a permanecer sem resposta unívoca e que, de fato, a força de um gesto artístico reside em pairar no cume da ambiguidade. Afinal, faz parte do seu mistério. Mas também se poderia apostar no fato de que, através da arte e com a ajuda do Espírito - Francisco diz sempre de fato que "o artista lembra a todos que a dimensão em que nos movemos, mesmo quando não temos consciência disso, é a do Espírito" -, ali mesmo, no espaço intersticial entre a prisão e o "fora" a que a arte dá acesso, cria-se outra situação em que os olhares e os sonhos vivos de todos se encontram: o meu, o seu, o dos reclusos, o do guardas, os artistas e também o de Deus.
E pode então acontecer que todas estas diferenças de olhar se combinem numa visão e num sonho comuns. Em suma, que formem misteriosamente comunhão, para que através de um gesto criativo consigamos quebrar tanto a invisibilidade social como a visibilidade do controlo a que os presos são principalmente submetidos, como se fosse para uma “duplicação” da sua pena. Então, talvez possamos também dizer de quem não são os olhos: não são os olhos daqueles que os usam para julgar, condenar, descartar.
De todos os presentes, no entanto, gostaria de me concentrar nas obras de apenas um artista, nomeadamente nas duas instalações que Claire Fontaine colocou na prisão, tanto porque conheço e acompanho o seu trabalho há muito tempo, como porque o a contemplação destas obras tem um potencial imperceptível de mover algo internamente, sugerindo uma forma “longa” de pensar, que produz uma reflexão inesperada ao mesmo tempo que ativa um afeto muitas vezes adormecido. Aquelas coisas que, considerando tudo, são o que se espera de uma obra de arte que não é descartável.
É preciso lembrar que Claire Fontaine, uma "artista coletiva" e ready-made como ela mesma se define, formada por Fulvia Carnevale e James Thornhill, além de participar diretamente do que gostamos de chamar de pavilhão não Vaticano, também deu o título, através de uma de suas famosas instalações, em toda a Bienal de Arte de Veneza deste ano: Estranhos por toda parte.
O tema da estrangeiridade, da alteridade embora declinada, é de fato um dos grandes tópicos da obra de Claire Fontaine, a partir da sua reflexão sobre o estatuto de pessoas que aqui, na Europa, são muitas vezes chamadas de “clandestinas”, para não dizer invisíveis: são os indesejados, como são descritos pelo coletivo artístico, que se assemelham muito aos rejeitados tão presentes nos discursos de Francisco.
Na verdade, Claire Fontaine escreve: "Para onde vão os indesejados quando desaparecem da nossa vista? Os termos utilizados falam por si: são 'detidos' em campos, são 'expulsos', o vocabulário fecal não engana: não só o capitalismo não resolveu o problema dos resíduos, mas cada vez mais rapidamente o estatuto de resíduo é aplicado ao que até então ontem não era adequado, isso se aplica tanto às coisas quanto às pessoas” (Claire Fontaine, A greve humana e a arte de criar a liberdade, Derive Approdi, p. 42).
(Foto: Settimana News)
Portanto, um dos efeitos buscados por Claire Fontaine é criar com suas obras situações através das quais seja possível ativar uma visão no espírito desses resíduos, desses indesejáveis que para a sociedade tal como ela é também as pessoas que habitam a prisão de Giudecca. Mais ainda: criar obras que nos levem a perceber a estranheza como um atributo de cada um e de todos numa sociedade alienada e alienante.
E a prisão é obviamente a ponta do iceberg desta fábrica social de alienação. Através do afeto ativado pela obra trata-se, portanto, de tornar-se estranho à estranheza imposta, de fazer um êxodo das representações dominantes, para redescobrir e reconhecer a si mesmo e aos outros. Como é fácil imaginar, nada mais é do que a tradução artística de um movimento clássico da filosofia, a partir de Hegel e Marx, mas também da espiritualidade, basta pensar na xeniteia praticada pelos primeiros monaquismos.
Prisão, presos e carcereiros, portanto, com os quais se construiu um não pavilhão porque, como explicaram os próprios curadores, neste caso não se tratava de instalar uma espécie de museu na penitenciária nem de transformá-la em galeria de arte, que certamente teriam sido operações cheias de glamour mas falsas e também de gosto duvidoso, mas para permitir que os presos e os artistas trabalhassem juntos e tivessem uma experiência comum de liberdade, pois se a arte não funciona como meio de liberdade é nada, e depois propõem-no ao público: os artistas com as suas obras, os reclusos guiando os visitantes para as descobrir (eles as obras, eles os reclusos, eles os próprios visitantes, eles todas as pessoas indesejadas).
Por outro lado, autodenominar-se “artista coletivo” para Claire Fontaine também tem esse significado, ou seja, o de produzir gestos artísticos públicos, comuns e, portanto, habitáveis, apropriáveis ou pelo menos atravessáveis por uma infinidade de “quaisquer singularidades”, como o artista adora repetir, apropriando-se de um conceito cunhado por Giorgio Agamben. Suas famosas luzes neon, aliás, costumam exibir frases, expressões, enunciados frequentemente encontrados nas paredes ou na “lixeira da história” - Claire Fontaine trabalha um pouco com o estilo poético/profético do negociante de segunda mão em Passagens de Walter Benjamin - que, uma vez percorridas na obra artística, adquirem um significado diferente ou aprofundam e ampliam o que já continham, mas que, em todo o caso, se apresentam como dispositivos especiais que alteram a visão.
Por outro lado, a arte, quando é verdadeiramente arte, sempre transformou ou subverteu os regimes de visibilidade e falabilidade permitidos numa determinada época. A este respeito, o Papa Francisco, no seu discurso aos artistas, citou Romano Guardini, que os comparou a "videntes", e disse: "Vocês são um pouco como os profetas (...) como sentinelas que estreitam os olhos para perscrutar o horizonte e exploram a realidade além das aparências (...) Como os profetas bíblicos, vocês nos colocam frente a frente com coisas que às vezes nos incomodam, criticando os falsos mitos de hoje, os novos ídolos, os discursos banais, as armadilhas do consumo, os truques do poder."
Uma das duas obras de Claire Fontaine presentes na prisão de Giudecca é uma instalação luminosa composta por um grande olho barrado colocado num canto da casa de detenção, mesmo na parede por baixo de uma das torres de guarda. Como todos facilmente percebem, é aquele olhar fixo que aparece nos meios digitais juntamente com escritos como “conteúdo sensível”, “perturbador” ou “violento” e que assim esconde uma imagem, muitas vezes imagens de violência ou, em qualquer caso, imagens que acredita-se que possam perturbar a sensibilidade do público. Mas esse olho bem aberto também significa que, ao escolher o indivíduo, é possível clicar na função “mostre-me”, abrir o olho e depois vê-lo.
(Foto: Settimana News)
Como observaram alguns comentadores, esta obra de Claire Fontaine pode significar a impossibilidade de os reclusos verem o exterior da prisão, bem como a impossibilidade de quem está do lado de fora e não consegue perceber o interior. Na verdade, pareceria a explicação mais lógica, mas também a mais óbvia.
É claro que, como a instalação está anexa à torre de vigia, pela qual e a partir da qual os internos são constantemente monitorados, ela certamente representa o significado de uma barreira para ambas as visões acima. Porém, se devolvermos esse olho estilizado à sua função original, significa também e sobretudo que existe a possibilidade de ver se o quisermos.
Aquela instalação funciona mais como uma oração e um incentivo à superação da barreira, do que como representação de uma simples proibição: “Senhor, abre os olhos, para que vejam” (2 Reis, 6, 17).
Neste sentido a obra adquire pelo menos uma dupla possibilidade de utilização que depende da nossa escolha. Podemos de fato coincidir com a não visibilidade, prevista e desejada pelo regime epistémico dominante, que nos leva a não saber e a não querer dizer nada sobre uma determinada situação, portanto a “seguir em frente”, mas também poderíamos optar por pare, siga outro caminho e force essa barreira para ver/ouvir o que e quem está por trás dela.
Ou seja, pessoas que, em todo caso, sofrem a violência da detenção, mas que também têm uma vida: são mulheres que sonham, que lembram, que contam histórias, que rezam e que tentam olhar além. E o mesmo se aplica às mulheres presas, ainda que ao contrário, ou seja, podem optar por abrir esse olho, atravessar essa barreira e sentir/olhar a vida daqueles que estão além daquela cerca. Em ambos os casos, o resultado é o da “destituição” da função abstrata da torre panóptica e da “restituição” aos reclusos e visitantes de um uso diferente e não superficial do ver.
Ou seja, a da experiência de ver e viver além e apesar dos muros e dos preconceitos, como se todos fôssemos potenciais sentinelas da esperança. Esperança mesmo nas coisas que não são imediatamente vistas e que também têm uma substância própria que sabemos que existe porque nos toca. Com um “clique” na alma, então, toda uma dinâmica de olhares e desejo mútuo é acionada. Além disso, para os cristãos, através da liturgia e dos sacramentos, esta forma de “ver e viver além”, a ponto de já poder saborear algo do Reino que hoje está por vir, é também muito familiar.
Assim escreveu Claire Fontaine num dos seus escritos de 2007 sobre o "estado de exceção" promovido pelo estado de guerra permanente (The Human Strike, p. 82) e continuou refletindo sobre como encontrar uma "pessoa verdadeiramente humana nesta noite de o mundo", aqui mesmo, no meio de soldados anónimos enviados para o matadouro e de cidadãos integrados que se consideram únicos e diferentes de todos os outros, ao mesmo tempo que são "singularidades insignificantes" na rede de relações produtivas.
E respondeu que só o amor é capaz de o fazer, porque: "A experiência, por mais empobrecida que seja, ensina-nos que o amor não adere a um sujeito predefinido, que em suma aquilo que amamos ou a que nos vinculamos na sua singularidade como tal é outra (...) uma singularidade amada é qualquer e não intercambiável, enquanto uma singularidade produtiva é isolada e individualizada, mas substituível a qualquer momento” (p. 82-83).
Parece-me que esta é uma boa chave introdutória para a outra obra de Claire Fontaine presente no pátio da prisão de Giudecca, um grande neon azul luminescente que diz Estamos com você à noite. Esta frase foi retirada de um escrito que apareceu nos muros da cidade na década de 1970 em solidariedade aos presos políticos, uma forma de quem estava fora da prisão comunicar aos presos que, mesmo no momento mais sombrio do julgamento, a força era forte, que na solidariedade em pouco tempo éramos próximos deles, que afinal os amávamos.
(Foto: Settimana News)
Agora, porém, na nova localização da escrita que lhe foi dada por Claire Fontaine, parece que a direção da mensagem se inverteu. É como se os internos dissessem para quem está de fora: estamos com vocês, mesmo neste momento sombrio para todos, porque nos preocupamos com vocês e amamos vocês por quem vocês são, cada um em sua singularidade. Este pobre neon iluminado à noite não toca talvez o coração?
Padre David Maria Turoldo escreveu de forma “esclarecida”: “Cristo escolheu também a noite para vos dizer o que talvez não tenha podido dizer aos homens durante o dia (...) Sim, todas as coisas decisivas acontecem à noite e no deserto (...) É a noite como tempo de crime e de graça" (Minha vida para amigos, Mondadori, p. 152-153).
O Cardeal Tolentino disse numa entrevista sobre a exposição que, com a ajuda da arte, a vida, os sonhos e o sofrimento das mulheres presas tornaram-se “uma parábola” que conta também as nossas vidas, os nossos sonhos e os nossos sofrimentos, ou melhor, “os sonhos desta era da história".
E é assim que um gesto artístico, que pode ser vivido por todos, pode tornar-se uma obra de misericórdia corporal e espiritual, que permite, como disse Francisco durante o Jubileu da Misericórdia, "visar o essencial (...) olhar para Jesus no faminto, no preso, no doente, no nu, naquele que não tem emprego e tem que constituir família (…) Olhai Jesus neles, nestas pessoas. Por quê? Porque é assim que Jesus olha para mim, olha para todos nós”.
Neste cruzamento de olhares, talvez se revele o sentido “noturno” daquele título perturbador: Com meus olhos. E chegou também o momento de usar as “mãos para levantar”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Santa Sé na Bienal de Veneza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU