22 Março 2024
O padrão de comportamento demonstrado pelas lideranças jesuítas na gestão de pelo menos um escândalo de grande repercussão em curso tem atrás de si séculos de prática institucional. É o que afirma um proeminente historiador, Ulrich Lehner, da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, que acaba de publicar um estudo em alemão sobre a forma como os jesuítas lidaram historicamente com os abusos cometidos por seus membros.
A reportagem é de Chris Altieri, publicada por Crux, 20-03-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em uma ampla conversa com Crux em março, Lehner explicou que, na realidade, o que pode parecer um desdobramento relativamente recente na vida da Igreja é o capítulo atual de uma crise cujas raízes remontam a vários séculos recentes e quase certamente ainda mais longe.
“Esta não é uma crise que começou nos anos 1960”, disse Lehner ao Crux, “longe disso”.
Lehner é professor da cátedra William K. Warren de História na Universidade de Notre Dame, em South Bend, Indiana. Especialista na história do cristianismo do século XVI até o presente, Lehner é autor ou coautor de mais de uma dezena de livros, tanto acadêmicos quanto populares, incluindo um volume de 2022 sobre “The Inner Life of Catholic Reform: From the Council of Trent to the Enlightenment” [A vida interior da Reforma católica: do Concílio de Trento ao Iluminismo].
A obra mais recente de Lehner é “Staged Chastity: Sexual Offenses in the Society of Jesus in the Seventeenth and Eighteenth Centuries” [Castidade encenada: ofensas sexuais na Companhia de Jesus nos séculos XVII e XVIII] (Berlim: De Gruyter, 2023, 314 páginas), publicado em alemão e disponível para download sob o título “Inszenierte Keuschheit: Sexualdelikte in der Gesellschaft Jesu im 17. und 18. Jahrhundert”.
Inszenierte Keuschheit: Sexualdelikte in der Gesellschaft Jesu im 17. und 18. Jahrhundert (Foto: Divulgação)
No livro, Lehner revela uma mistura entre poder, dinheiro, ambição e influência – grande parte exercida sobre “figuras problemáticas” na Companhia de Jesus por razões que são em si mesmas irrepreensíveis, senão até louváveis – que é facilmente reconhecível no comportamento dos clérigos hoje.
Algumas das histórias são horríveis e incontáveis – embora Lehner tenha se esforçado para encontrar as fontes primárias que as relatam – e ainda mais terríveis pelo quão familiares elas são.
Uma em particular, a história do jesuíta Theoderich Beck, do século XVII, tem uma semelhança surpreendente com relatos muito menos distantes de nós no tempo. Confessor do cardeal Friedrich von Hessen, Beck também mantinha sob seus cuidados numerosos jovens alunos da escola de gramática (em uma idade próxima aos dos estudantes do Ensino Médio atual), muitos dos quais ele forçou a praticar atos sexuais.
“Eles sabiam que esse homem tinha raptado, continuamente, estudantes do Ensino Médio da escola jesuíta, convidando-os para irem ao castelo e raptando-os durante semanas como ‘férias de verão’”, disse Lehner. “Pense na casa de praia de McCarrick”, disse ele. “O geral [jesuíta] queria prender esse homem, mas ele estava ao lado de um protetor muito poderoso e influente, por isso não sabiam realmente o que fazer.”
Os jesuítas tentaram convencer von Hessen a libertar Beck, mas “nada funcionava. Então, no fim, durante quase 35 anos, eles tentaram fazer com que esse jesuíta voltasse” e se separasse de seu cardeal protetor. “Pode ter havido um relacionamento aí também”, observou Lehner. “Aquilo nunca aconteceu”, disse Lehner, “então o cardeal levou seu homem para Roma, que permaneceu como seu confessor até morrer.”
Quando um historiador bávaro, Karl Ritter von Lang, descobriu registros dos abusos e começou a contar a história no início do século XIX, os jesuítas atacaram Lang e minimizaram – com sucesso durante algum tempo – a conduta criminosa de seu coirmão há muito falecido.
“Staged Chastity” abrange uma grande área ao longo de dois séculos – XVII e XVIII – nos quais a ordem jesuíta já tinha se estabelecido como uma força importante na Igreja cada vez mais global e na política europeia.
O livro explora principalmente material de fontes primárias de áreas da Europa Central – registros de arquivo e relatos de comportamento abusivo e também de métodos institucionais para lidar com ele –, mas sua investigação abrange uma ampla faixa do território continental, incluindo Espanha e Portugal (e seus territórios imperiais ultramarinos) no Novo Mundo, principalmente mediante fontes secundárias e por comparação), todos ligados de uma forma ou de outra ao aparelho governamental central dos jesuítas e da Igreja em Roma.
“Os arquivos jesuítas eram maravilhosos”, disse Lehner ao Crux. “Quando solicitei à província [alemã] algum financiamento para disponibilizar o livro abertamente online – inicialmente eu hesitei – eles foram extremamente gentis e generosos.”
Os jesuítas também ofereceram assistência prática. Quando Lehner precisava de algo dos arquivos romanos, ele recebia o que precisava quase imediatamente. “Eu enviava um e-mail para eles de manhã”, disse ele, “e recebia o documento escaneado já pela tarde.”
“Mesmo em séculos anteriores, houve crimes sexuais cometidos por clérigos”, disse Lehner.
Isso não é novidade em si, mas é dolorosamente revelador e necessário, explicou, reconhecer a mistura tóxica de preocupação para evitar o escândalo – para preservar não só o bom nome dos maus clérigos, mas também a reputação geral da Companhia de Jesus – e para proteger a instituição da Igreja de forma mais ampla.
“Os jesuítas tinham a reputação de serem a ordem mais casta”, disse Lehner, observando um equívoco popular tanto naquela época quanto agora, segundo o qual juntar-se aos jesuítas poderia curar quase magicamente uma pessoa de impulsos sexuais desordenados.
“Seria interessante saber em que escala isso aconteceu”, acrescentou Lehner. “É um paralelo com os casos que documentamos no século XXI”, disse Lehner também, “em que temos pessoas – nós as chamaríamos de ‘personalidades imaturas’ – que pensam que ingressar no sacerdócio ou em uma ordem religiosa – com a recepção das Sagradas Ordens – torna-os automaticamente capazes de lidar com seus desejos sexuais.”
“Os próprios jesuítas teriam dito que essa não era uma compreensão apropriada” de sua espiritualidade, “e eles tinham padrões realmente elevados para selecionar seus candidatos”, disse Lehner. “A cada passo”, desde o noviciado, passando pelas várias fases formativas da vida jesuíta, até à ordenação e mais além, “você estava constantemente sob um controle de qualidade.”
“Isso era provavelmente melhor do que em qualquer outra ordem religiosa”, disse Lehner, “e certamente melhor do que no clero secular.”
Parte do problema, em outras palavras, era que os jesuítas eram realmente bem treinados e frequentemente tinham um calibre intelectual e moral muito elevado. Os jesuítas “provavelmente tinham uma qualidade muito melhor na seleção dos candidatos”, disse Lehner, “e um processo de formação muito longo. Por isso, penso que, no geral, a qualidade dos jesuítas era superior à das ordens mendicantes”, como os franciscanos, carmelitas e dominicanos.
Depois, porém, Lehner aprofundou um pouco mais e lhe pareceu que apenas poucas pessoas haviam olhado, mesmo que apenas um pouco, para quantos jesuítas haviam sido demitidos de seus votos. Os jesuítas, concluiu ele, “eram muito mais liberais na dispensa de seus membros do que outras ordens religiosas”, muitas vezes até do que o clero secular.
“Inicialmente”, disse Lehner, “eu pensei: espero que eles não joguem alguns criminosos horríveis para as feras”. Depois, porém, ele olhou os arquivos. “Na primeira geração, houve muitas demissões”, descobriu Lehner. Esse era um padrão que continuaria durante a segunda geração da vida jesuíta e além, pelo menos até o século XVII.
“Muitas pessoas dizem que a ordem jesuíta cresceu rápido demais e, portanto, que muitas pessoas que foram aceitas não deveriam ter sido”, disse Lehner, acrescentando que a centralização do governo jesuíta foi uma faca de dois gumes que ajudou a tornar a Companhia uma força poderosa para os esforços cada vez mais globais da Igreja para difundir o Evangelho, mas também, às vezes, tornava mais difícil lidar com figuras problemáticas e maus atores.
“Se você fosse um jesuíta ainda não professo”, ou seja, um jesuíta que ainda não tinha feito o quarto voto especial de obediência particular ao papa, “a província poderia demiti-lo”, explicou Lehner. Caso contrário, o processo poderia levar anos. Com uma frequência alarmante, jesuítas professos que eram maus atores eram simplesmente transferidos, e seus crimes, encobertos.
A investigação de Lehner até agora revelou apenas alguns casos de abuso sexual perpetrados contra crianças menores de 14 anos.
“Os crimes sexuais contra crianças menores de 14 anos são extremamente raros”, disse ele. “A maioria dos casos envolve vítimas que eram meninos adolescentes e mulheres jovens – adolescentes e maiores de idade – e depois, é claro, relacionamentos adultos.”
Em outras palavras, Lehner acha que o registro histórico oferece alguma indicação de uma prática de longa data não só de encobrir o abuso, mas também de ignorar o papel da disparidade de poder na compreensão da dinâmica psicológica e espiritual das relações abusivas. Dito de forma simples, a Igreja tem dado pouca atenção ao abuso de adultos há muito tempo.
“Não faço nenhuma afirmação sobre estatísticas”, disse Lehner, “não saberia como fazer isso com as fontes irregulares que temos.” Muitos registros se perderam, enquanto outros podem ter sido destruídos.
“Foi difícil fazer a pesquisa, porque, para a maioria ou para muitas províncias, eu acho que nós podemos não ter mais os registros – eles foram destruídos”, disse Lehner. “Em outros arquivos da Igreja, eles foram destruídos deliberadamente”, afirmou. “Essa também seria uma pergunta interessante a se fazer: temos mandatos explícitos sobre quando destruir certos registros?”
Por um acidente histórico, talvez paradoxalmente providencial, a supressão dos jesuítas entre 1773 e 1814 significou que, “para as províncias alemãs, todo o arquivo foi quase perfeitamente preservado”.
“Isso”, disse Lehner, “foi definitivamente uma grande vantagem”, mas dificilmente universal.
“Foi muito doloroso para mim constatar isso sobre a Companhia de Jesus, que eu admiro profundamente”, disse Lehner. Ele também disse que os próprios jesuítas apoiavam seus esforços. “Fui educado pelos jesuítas”, disse Lehner, “escrevi a minha dissertação tendo um jesuíta como orientador e sou-lhes muito, muito grato – além de ter trabalhado durante 15 anos em uma universidade jesuíta.”
Portanto, a pesquisa e a redação deste livro foram uma provação para Lehner. “Houve muitos momentos em que eu não queria continuar”, disse.
“A Igreja, em seu estado de peregrina, tem sempre pó e sujeira nos pés”, disse Lehner, “e isso inclui também os piores crimes e pecados humanos, para que não sejamos tentados a dar uma imagem triunfalista e excessivamente gloriosa da Igreja.” Devemos “mostrar sua beleza, mas não encobrir as partes feias de sua história”.
Embora o livro de Lehner não examine detalhadamente as crises atuais, ele oferece uma lente histórica através da qual os leitores contemporâneos podem focar melhor o presente.
O caso do Pe. Marko Rupnik é um exemplo. Ex-jesuíta acusado de abusos sexuais, psicológicos e espirituais em série, Rupnik foi finalmente expulso da ordem dos jesuítas em 2023 por desobediência a seus superiores. Pelo menos um proeminente investigador jesuíta disse que as testemunhas contra Rupnik são altamente credíveis.
“O caso Rupnik poderia ter acontecido no século XVII”, disse Lehner. “Seria um exemplo clássico de como a Companhia lidou com tais casos no século XVII”, disse ele, “de modo que só isso deveria soar todos os alarmes – se pensarmos bem – sobre o que a Companhia não aprendeu suficientemente em 300 anos.”
Artista de mosaicos mundialmente famoso, cujo estúdio esteve sediado em Roma durante 30 anos, Rupnik encontrou um novo lar eclesiástico na Diocese de Koper, em sua terra natal, a Eslovênia, e até agora escapou do julgamento por seus crimes. Há até relatos de que Rupnik continua residindo em Roma como padre externo e mantendo contatos com o instituto de arte que ele fundou e dirigiu na cidade durante quase três décadas.
Como Rupnik escapou de sua depravada vida dupla durante tanto tempo e como escapou da justiça da Igreja, mesmo depois de seus crimes terem sido descobertos sob a supervisão do Papa Francisco, são algumas questões que o caso Rupnik levantou.
“Você tem um membro muito proeminente que você não quer demitir”, disse Lehner, “você sabe que há problemas e os encobre, ou as pessoas desviam o olhar.”
As vítimas, os observadores da Igreja e os próprios jesuítas concordam que muitas das questões permanecem sem respostas satisfatórias. O Papa Francisco ordenou a reabertura do caso Rupnik no fim do ano passado, mas apenas depois da indignação global incandescente pelo seu fracasso original em fazer isso, da pressão midiática contínua e da intervenção extraordinária da própria Comissão para a Proteção dos Menores solicitada pelo papa.
Lehner tem mais de um palpite sobre o padrão de comportamento exibido no caso Rupnik. Lehner tem as receitas históricas – algumas delas, pelo menos –, e estas têm amplas implicações para a crise geral de liderança na Igreja.
“A Igreja nunca deveria ter medo de abrir seus arquivos”, disse Lehner ao Crux. "Acredito firmemente nisto: ‘Só a verdade vos libertará’. É muito doloroso.”