13 Março 2024
"O que acontece em Gaza também difere do que aconteceu na Síria e na Ucrânia, claro, pelo fato de Israel não ter iniciado a guerra. Aliás, foi brutalmente atacado pelo Hamas numa carnificina de assassinatos, torturas e estupros. Qualquer governo teria reagido, e o Hamas multiplicou ao máximo o sofrimento dos civis, utilizando-os como escudos humanos", escreve Nicholas Kristof, jornalista americano, em artigo publicado por La Stampa, 10-03-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em Gaza há uma menina de dez anos muito inteligente que fala bem inglês, tem um sorriso radiante e parecia ter um futuro brilhante pela frente. Filha de um radiologista, havia sido aceita por um programa de intercâmbio internacional e deveria ter viajado em breve. Em vez disso, hoje se encontra em uma cama de hospital, com um ferimento infeccionado na coxa devido à explosão de uma bomba. Em uma foto se pode ver sua ferida aberta, do tamanho de uma bola de futebol. Falta um pedaço do fêmur. “Ela já deveria estar no Japão”, conta Samer Attar, cirurgião ortopédico que está cuidando da menina e me falou a respeito. “Em vez disso, está em uma cama de hospital e tem que decidir se quer amputar sua perna".
Conheço o Dr. Attar há cerca de dez anos, quando se voluntariou em alguns hospitais clandestinos de Aleppo, na Síria, para salvar as vítimas de bombardeios russos. Professor da Northwestern University School of Medicine, atua em locais de guerra e em zonas de crise em todo o mundo, entre as quais a Ucrânia e o Iraque, e há pouco vem operando nos hospitais de Gaza em nome de algumas organizações de médicos voluntários, como Rahma Worldwide e Ideals.
Segundo Attar, a menina deve ter o quadril amputado para se salvar. O pai, que tem dificuldade para aceitar a deterioração da vida dele e da filha, por enquanto se opõe. Ao longo dos anos, cobri muitas guerras sangrentas e falei com dureza sobre como os governos da Rússia, do Sudão e da Síria bombardeassem irresponsavelmente a população civil. Desta vez, o caso é diferente: o meu governo está envolvido no que o presidente Biden chama de “bombardeio indiscriminado”. Não é o mesmo que alvejar civis deliberadamente, como fizeram aqueles outros países: desta vez, como contribuinte, eu também estou colaborando para pagar as bombas.
O que acontece em Gaza também difere do que aconteceu na Síria e na Ucrânia, claro, pelo fato de Israel não ter iniciado a guerra. Aliás, foi brutalmente atacado pelo Hamas numa carnificina de assassinatos, torturas e estupros. Qualquer governo teria reagido, e o Hamas multiplicou ao máximo o sofrimento dos civis, utilizando-os como escudos humanos.
Em qualquer caso, a resposta militar não é uma escolha binária: existe num continuum. Traumatizado pela agressão sofrida, Israel escolheu se vingar com bombas de 907 quilos, arrasar bairros inteiros e autorizar a entrada de uma ínfima quantidade de ajudas humanitárias no território, que agora beira o abismo da carestia. Como resultado, esta não parece uma guerra contra o Hamas, mas uma guerra contra os habitantes de Gaza.
Em novembro passado, fiz uma reportagem sobre Mohammed Alshannat, um doutorando de Gaza que procurava desesperadamente manter vivas as suas crianças. Infelizmente, tenho que atualizar vocês: um de seus filhos ficou gravemente ferido. “Meu filho de treze anos foi atingido enquanto fugíamos dos bombardeios”, escreveu Alshannat numa mensagem no WhatsApp. “Tive que carregá-lo nos braços durante duas horas sob os golpes de artilharia pesada. Encontrei um médico que tinha se escondido em uma escola e que decidiu correr o risco de nos hospedar. Salvou a vida do meu filho”.
“Mais tarde a criança foi submetida a uma cirurgia complexa. Ainda não consegue andar, está muito doente e desnutrido”, escreveu Alshannat.
Depois da guerra, como conseguirão os amigos estadunidenses de Alshannat olhar na sua cara? Olhar na cara do seu filho?
Muitos estadunidenses estão indecisos sobre a guerra. Ficam em silêncio, em vez de entrar em um debate amargo e polarizador que pode até custar amizades. Ou simplesmente, desviam os olhos. O grande Elie Wiesel definiu a indiferença como “o perigo mais insidioso de todos" e destacou que "o sofrimento humano é universal e diz respeito a mulheres e homens de todo o mundo".
Os sofrimentos das crianças - metade dos habitantes de Gaza são crianças - deveriam preocupar mais do que qualquer outra coisa.
A Unicef calculou que, no caos da guerra e dos deslocamentos, há pelo menos 17 mil crianças em Gaza deixadas sozinhas ou sem os pais.
O Dr. Attar é assombrado pela lembrança de dois irmãos adolescentes devastados no corpo. Um deles sofreu a amputação de uma perna na altura do quadril e morreu na mesa de operação enquanto o anestesista chorava. O outro, que havia perdido grande parte da pele do corpo, sobreviveu uma noite e depois morrer pela manhã.
Os hospitais estão praticamente sem nenhum suprimento, disse o Dr. Attar, e os pacientes passam até semanas inteiras deitado no chão, nos corredores, tomados por dores, esperando para ser tratados. Attar continua ouvido dentro de si os gritos de uma mulher implorando para ajudar o marido, cuja feridas não haviam sido tratadas por uma semana e estavam cheias de larvas.
Alguns atribuirão a culpa de tudo isso ao Hamas: se não tivesse atacado a população civil de Israel, não teria havido nenhum bombardeio israelense. É verdade, mas parece-me que assim se evita uma responsabilidade moral. Israel e Estados Unidos têm livre arbítrio e as atrocidades sofridas pelos civis israelenses não justificam a destruição de bairros palestinos inteiros.
O presidente Biden deveria olhar para dentro de sua própria alma: critica duramente a Rússia porque bombardeia a população civil e coloca em perigo a ordem internacional regulamentada, no momento em que fornecermos as bombas que podem destruir bairros inteiros de Gaza, no momento em que damos cobertura diplomática ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu enquanto os habitantes de Gaza enfrentam a morte por dificuldades.
Biden suspendeu os financiamentos para a UNRWA, a Agência das Nações Unidas para os Refugiados palestinos do Oriente Próximo, responsáveis pela ajuda aos habitantes de Gaza, sem traçar um plano alternativo concreto para distribuir as ajudas humanitárias. Ele está certo em estar indignado, porque resulta que cerca de dez funcionários da UNRWA (que tem um efetivo de cerca de 13 mil pessoas) tenham participado diretamente nos ataques de 7 de outubro. É certamente positivo que as Nações Unidas os tenham demitido imediatamente.
Em todo caso, se a UNRWA não puder funcionar devido à interrupção dos financiamentos, as crianças de Gaza morrerão.
Seria inaceitável se alguns terroristas do Hamas tivessem se infiltrado nas fileiras de uma agência das Nações Unidas. E seria inaceitável se, devido às nossas ações - mesmo que repitamos que temos superioridade moral -, as crianças acabassem morrendo de fome.
Tomar a decisão de travar uma guerra é doloroso porque, irremediavelmente, serão os civis inocentes a sofrer. É necessário, portanto, saber avaliar cuidadosamente o ganho estratégico em relação com o custo em termos de vidas humanas desperdiçadas.
Cada um avaliará as possíveis compensações de forma diferente, mas devemos nos esforçar para resistir à tendência que leva a considerar como “outro” as pessoas de raça, fé e etnia diferentes. Quando nos encontramos envolvidos num conflito, somos levados a desumanizar o inimigo. Podemos contrariar esse impulso afirmando a nossa humanidade comum e reconhecendo que todas as vidas humanas são igualmente valiosas.
Uma dessas vidas, tão preciosa como a de qualquer criança estadunidense ou israelense, é a de uma brilhante menina de dez anos de Gaza que deveria estar planejando com entusiasmo a sua viagem ao Japão, mas em vez disso sorri corajosamente, apesar das dores insuportáveis, e terá que enfrentar uma amputação, se quiser se salvar. Nós, estadunidenses, deveríamos, em vez disso, enfrentar a nossa cumplicidade na sua tragédia e naquela de todos os habitantes de Gaza.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Nem o massacre de crianças abala o mundo e detém as bombas. Artigo de Nicholas Kristof - Instituto Humanitas Unisinos - IHU