Um mergulho nas filosofias africanas

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13 Mai 2023

“O pensamento tradicional africano, por conta do racismo cultural, não foi considerado filosofia. Até mesmo o conceito europeu de religião é difícil de ser assentado na África. Já que religião é religação e, no caso das culturas africanas, não houve rompimento com o sagrado do mesmo modo que para os cristãos. Mesmo com essa negativa europeia, existem filosofia e sagrado africanos. Visto que a relação com as divindades africanas é baseada na força vital, reforçada pela ancestralidade e as divindades”, escreve Sandro Luis Fernandes, professor de história e sociologia, em resenha do livro Filosofias africanas: uma introdução (Civilização Brasileira, 2020).

Participantes do debate da obra Filosofias africanas (Civilização Brasileira, 2020), de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, pela iniciativa "Abrindo o Livro – Negritude e novos olhares"

Na noite de quinta-feira, 11 de maio, a obra de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas foi o tema do segundo debate da iniciativa Abrindo o Livro – Negritude e novos olhares, que tem como objetivo estimular a leitura e o exercício do debate, lançando questionamentos e luzes sobre o universo das relações étnico-raciais e seus desafios transversais.

Eis a resenha.

Eu vou-me embora pra Minas Gerais agora
E vou pela estrada afora tocando meu candongueiro, oi
Eu sou de Angola, bisneto de quilombola
Não tive e não tenho escola, mas tenho meu candongueiro
No cativeiro, quando estava capiongo
Meu avô cantava jongo pra poder se segurar, oi
A escravaria, quando ouvia o candongueiro
Vinha logo pro terreiro para saracotear
(Candongueiro – Nei Lopes e Wilson Moreira, 1980)

Dois autores cariocas introduzindo às Filosofias africanas, é muito significativo. Ney Lopes, bacharel em Direito e Ciências Sociais, doutor honoris causa, cantor, escritor, compositor e estudioso de culturas africanas. Tem trabalho muito significativo em relação aos dicionários de línguas africanas e, principalmente, na compreensão da diáspora e da cultura africana no Brasil. Luiz Antonio Simas é professor, escritor, mestre em história e babalaô. Entre outros temas, dedica-se a contar histórias do povo africano no Brasil e todas as consequências da transformação do Brasil a partir da escravização dos africanos e da expansão da religiosidade.

São nascidos no Rio de Janeiro, contexto que faz muita diferença, pois essa cidade em especial, após Salvador deixar de ser a capital do Brasil no século XVIII, passou a ter um grande contingente de escravizados negros. Sejam oriundos da África e mesmo provenientes de migração dentro do próprio país. A capital fluminense concentrou a população negra vinda do Nordeste, trazendo capoeira e samba. O Rio de Janeiro se tornou a capital da colônia e passou a receber uma enorme quantidade de escravizados. O Porto de Valongo era um destaque no tráfico. Em 300 anos, da África vieram para o Brasil mais de 5.000.000 de pessoas para trabalhar de maneira forçada, primeiro na Colônia de Portugal e depois no Império brasileiro. Com a mudança do Império, houve destaque da cultura afro-brasileira na cidade maravilhosa, seja na religiosidade e nas artes, principalmente na música.

Nesse sentido, a negritude trazida pelos dois autores tem história, estudos e tradição. Os autores iniciam o livro discutindo a diferença entre a maneira de pensar dos africanos antes da colonização, afirmando que o pensamento ocidental eurocêntrico impôs de maneira violenta um padrão na forma de entender o mundo, seja filosófico, religioso ou artístico. Por isso, os autores consideram a filosofia africana também amor ao conhecimento, à sabedoria, apesar da diferença com a epistemologia europeia. Nesse sentido, é fundamental entender a oralidade, elemento sagrado e fundamental da humanidade, aliada à música, à dança e, principalmente, ao uso dos tambores.

Esse pensar africano, mesmo que não escrito, é filosofia. O saber africano tradicional denuncia o imperialismo intelectual e constrói concepções filosóficas dentro das tradições de vários grupos étnicos com muitas coisas em comum. Por exemplo, a ideia da existência de uma força vital que une os seres humanos, bem como une a natureza e o mundo não-vivo. A ideia do axé, por exemplo, muito comum entre os Iorubás, é força vital e está presente em diversas culturas africanas.

A partir disso, os autores constroem a primeira parte do livro apresentando a África unitária, apesar da diversidade, ou seja, levam a pensar a unidade na diversidade. Considerando que tudo está ligado, seja em relação ao tempo, passado, presente e futuro ou em relação ao espaço. Nesse sentido, considera-se que o universo está em expansão. Ou que nasceu a partir de uma semente que se expande.

Para a maioria das culturas africanas, é algo extremamente importante entender os seres humanos e a natureza a partir da energia vital: o Axé. Está carregado de ancestralidade e coloca a humanidade como centro de interesse dessa filosofia. A renovação desse axé se dá com a vida dos antepassados e com a valorização da comunidade, pois existe a tradição, a ancestralidade da comunidade, que reforça a relação entre a natureza e a espiritualidade. Isto consolida o jeito de pensar que é muito comum na África.

Ao citar diversos escritores, principalmente africanos, os autores exemplificam que a respeito do corpo e espírito há uma relação muito importante em algumas culturas africanas, com a dualidade e os nomes. Os nomes em algumas culturas levam em conta o amadurecimento de cada pessoa. E cada nome pode ser mudado. Temos o nome informal, o formal e o iniciático. Isto é comum na África. Portanto, nomes têm tradição, história, ancestralidade, hora, local, dia, sexo, primogenia, etc.

Outro ponto importante destacado em relação às diversas culturas africanas é a palavra. A oralidade é sagrada para a maioria das culturas africanas. Os ancestrais são levados por essa função muito importante. O sagrado passa pelo oral, pela música, pelos conselhos. A palavra contada, seja dos Griôs, homens, ou das Jeliyas, mulheres, são fundamentais para manter a relação entre sagrado, cultura ancestral e as pessoas no presente.

O pensamento tradicional africano, por conta do racismo cultural, não foi considerado filosofia. Até mesmo o conceito europeu de religião é difícil de ser assentado na África. Já que religião é religação e, no caso das culturas africanas, não houve rompimento com o sagrado do mesmo modo que para os cristãos. Mesmo com essa negativa europeia, existem filosofia e sagrado africanos. Visto que a relação com as divindades africanas é baseada na força vital, reforçada pela ancestralidade e as divindades.

O povo branco que tratou o legado africano como algo inferior não reconhece isso até hoje. Esse reconhecimento é tão difícil que, em muitos momentos, o Egito é tratado como algo embranquecido, justificando o império. Os autores reforçam que o antigo Egito, conhecido por Kemet, tem origem na região do alto Egito, onde as culturas africanas negras influenciaram até os faraós. E, atualmente, isso é importante porque há pessoas que dizem que no Egito a influência europeia é preponderante, visto sua localização no Mar Mediterrâneo, bem como a influência islâmica. Apesar de não desconsiderar isso, não podemos esquecer a forte presença africana na construção do Egito.

A partir do capítulo 9, tem início a segunda parte do livro, que apresenta detalhes culturais da unidade na diversidade. Dez povos africanos são citados. Os Iorubás, que tem como base a dualidade do sagrado e do profano, entendendo as forças antagônicas como parte do ifá, que a partir do mundo físico, chamado agbara, e o axé do mundo espiritual, compreende o poder e a força vital. Ou seja, axé, ifá e agbara fazem parte da filosofia tradicional africana. Em relação à oralidade, apresentam os odus. Tem 16 principais, mas quando se reorganizam formam até 256 combinações, e a tradição e os estudos mostram como eles devem ser lidos pelos babalaôs que são os intérpretes do ifá.

Debate da obra Filosofias africanas (Civilização Brasileira, 2020), de Nei Lopes e Luiz Antonio Simas, pela iniciativa "Abrindo o Livro – Negritude e novos olhares"

Em seguida, são apresentadas várias culturas africanas. Os Akan que tem o destaque no Kra que seria a força humana. Ela se aproxima da construção do tumi, que tem quase o mesmo significado do axé. Nessa cultura, destaca-se a simbologia Adinkra. E muito dessa Filosofia orienta que a sociedade depende dos seus membros. O povo Akan também fala da importância da comunidade.

Outro povo que apresenta o dualismo como base são os dogon. Também possuem uma astronomia avançada que orienta os rituais sagrados. Nesse dualismo, existe também os bambara, um povo que resistiu ao islã na manutenção das tradições africanas. Os bambara são conhecidos por justificarem a excisão e as circuncisões nos adolescentes.

Há os diola que trazem consigo o dualismo de forças como base para a existência humana. Os fang que apresentam uma concepção totalizante do mundo como algo importante para a vida humana. Os mandinka que tratam a comunidade como algo muito importante, mais importante que o indivíduo, e apresentam a violência, assim como a palavra, como criadoras e destruidoras. Esse povo tem as Jeliyas, mulheres contadoras de histórias, como fundamentais para a manutenção da ancestralidade e das tradições. Há também os makonde, de origem banto, que acreditam na ancestralidade fundamental na organização social. O povo igbo, um dos maiores grupos épicos atuais da África, valorizam a espiritualidade, bem como a infinitude do universo, e tem o chi como energia espiritual.

Os autores alcançam o seu objetivo: apresentar a diversidade africana e alguns povos que foram selecionados por algumas proximidades, seja geográfica, na diáspora, seja em relação a considerar a comunidade fundamental, bem como a tradição e a oralidade. No mais, abarcam o dualismo presente na construção do universo, bem como nas relações entre os seres humanos. Além do mais, nas diversas culturas apresentadas, sempre apresentam a força vital que é chamada, dependendo da cultura, de axé, eyo, mooyo ou tumi.

Como se trata de um livro introdutório, faz-se necessário a leitura e a procura de outras obras, não apenas as sugeridas pelos autores. Deve-se incluir a grande produção atual a respeito da ancestralidade africana no Brasil e as relações atuais na África.

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