Taxa de juros, autonomia do Banco Central e novo arcabouço fiscal: as relações ocultas entre mídia e instituições financeiras no cenário político nacional. Entrevista especial com Carlos Tautz

“Os bancos são apresentados na imprensa brasileira como entidades à parte da imprensa, instituições que são convidadas a participar de um programa, de um debate, uma entrevista e dar seu suporte técnico e avaliação independente. Nada mais falso; bancos não são independentes da imprensa, e imprensa e bancos se confundem”, diz o jornalista

Foto: Marcelo Camargo | Agência Brasil

Por: Patricia Fachin | 22 Março 2023

Se, de um lado, a imparcialidade da mídia no tratamento de alguns assuntos é contestável, de outro, a abordagem de temas de interesse público, como a independência ou não do Banco Central, a discussão em torno da melhor taxa de juros a ser aplicada no país ou os critérios para a criação do novo arcabouço fiscal, é confusa e camuflada a partir da participação de atores que representam um mesmo grupo econômico. Segundo o jornalista e historiador Carlos Tautz, este é o caso dos debates econômicos e das intervenções de inúmeros economistas que, embora exponham dados técnicos acerca da economia, manifestam interesses de instituições financeiras que, ao mesmo tempo, são detentoras de grupos de comunicação.

“Quando são chamados a opinar, os representantes dos bancos, em geral economistas ou agentes financeiros, são chamados a participar de debates na qualidade de técnicos e donos de um conhecimento inatacável e inquestionável. Mas as mesmas mídias, que chamam com frequência os profissionais das análises econômicas, omitem vários fatos. Por exemplo, omitem que todas as empresas de comunicação do BrasilGrupo Globo, Editora Abril, Grupo Folha, Grupo Estadão, RBS – ou já pertencem a bancos, ou seja, os bancos são os acionistas majoritários dessas empresas de comunicação, ou têm uma participação acionária muito expressiva no controle das empresas de mídia, ou ainda esses bancos são credores dessas empresas de mídia, que tomaram empréstimos impagáveis porque o faturamento dessas empresas é insuficiente para retornar esses empréstimos”, informa.

Segundo ele, a relação entre bancos e empresas de comunicação é evidente no caso do Grupo BTG Pactual, dono de várias empresas, entre elas, o site de informações financeiras Money Times. “Nem o Banco BTG nem o Money Times, entre outros, têm dependência suficiente para falar de economia como um todo ou sobre o assunto específico que vem sendo objeto de debate público, que é a independência ou autonomia do Banco Central para definir, por exemplo, as taxas de remuneração básicas da economia brasileira”, assegura.

Os bancos e as instituições financeiras, assim como as Forças Armadas, são, de acordo com Tautz, “sujeitos ocultos” que ocupam relações ambíguas com a mídia no cenário político brasileiro. “As Forças Armadas no Brasil são uma espécie de fortaleza de onde saem poucas informações. Uma espécie de fortaleza que não é invadida pela imprensa, como a imprensa invade, por exemplo, as demais instâncias do Estado brasileiro, como o Ministério da Saúde, o Ministério da Educação, a Casa Civil, a presidência da República, as estatais, a Petrobras muito especialmente, que é sempre alvo de uma cobertura raivosa dos meios de comunicação convencionais”, sublinha. Apesar de as Forças Armadas estarem na ordem do dia da imprensa durante o governo Bolsonaro, “não são publicadas informações, no debate público dos meios de comunicação, a respeito de compras bilionárias feitas de forma rotineira pelas Forças Armadas brasileiras em vários países, em volumes de dinheiro que superam, em muitas vezes, políticas públicas como o Programa Bolsa Família”, exemplifica.

Sujeitos ocultos: bancos, Forças Armadas e mídias no ambíguo cenário político brasileiro” foi o tema da videoconferência ministrada por Carlos Tautz no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em 02-03-2023, que reproduzimos a seguir no formato de entrevista.


Carlos Tautz (Foto: Arquivo Pessoal)

Carlos Tautz é jornalista e doutorando do PPG em História da Universidade Federal Fluminense – UFF. É licenciado em Comunicação Social/Jornalismo pela UFF e desde 1989 trabalha em grupos privados de comunicação, governos, organizações da sociedade civil e institutos de investigação, abrangendo as áreas da economia política, meio ambiente, relações internacionais e direitos humanos. Cobriu o ciclo das principais conferências da ONU nos anos 1990 para a revista Ecologia & Desenvolvimento e para o Jornal do Brasil.

Atua, desde 2001, como investigador em organizações da sociedade civil, entre elas, o Instituto Brasileiro de Análise Social e Econômica – Ibase e o Instituto Mais Democracia – Transparência e Controle Cidadão sobre Governos e Grupos Econômicos.

Confira a entrevista.

IHU – Em que sentido os bancos e as Forças Armadas são “sujeitos ocultos” no tratamento midiático do cenário político brasileiro?

Carlos Tautz – Alguns assuntos aparentemente estão expostos na mídia, mas, na verdade, estão ocultos. Quais assuntos são estes? Em primeiro lugar, a atuação dos bancos e, em segundo lugar, também as Forças Armadas, que, embora sejam extremamente atuantes, são muito insuficientemente cobertas pela imprensa e pela academia. A academia carece de desenvolver estudos sobre as Forças Armadas e a Defesa nacional, em especial sobre como as Forças Armadas se organizam no Brasil, institucionalmente, por dentro do Estado, agindo como um Estado dentro do Estado brasileiro.

Gostaria de fazer uma observação sobre a razão de me deter neste assunto: “mídias, bancos e Forças Armadas”. Em geral, quando esses dois assuntos – bancos e Forças Armadas – são apresentados nos veículos de comunicação, eles são sempre tratados como se fossem um assunto técnico ao qual não deveria haver oposição, uma vez que do ponto de vista técnico não haveria o que ser argumentado. Em verdade, tanto os bancos quanto as Forças Armadas são agentes sociais extremamente políticos e com um componente técnico muito pequeno.

Relação imprensa X bancos

Os bancos são apresentados na imprensa brasileira como entidades à parte da imprensa, instituições que são convidadas a participar de um programa, de um debate, uma entrevista e dar seu suporte técnico e avaliação independente. Nada mais falso; bancos não são independentes da imprensa, e imprensa e bancos se confundem. Aqui, é necessário fazer uma distinção: trato de imprensa e do que se convencionou chamar de imprensa ou grupos de comunicação convencionais e não da mídia on-line, que são outros grupos de comunicação. Meios de comunicação convencionais são rádios, televisões, jornais impressos e até mesmo sites de jornais impressos, rádios e TVs, que, embora transmitidos de modo on-line, são produzidos e operados pelas empresas de comunicação convencionais. Estamos em um período híbrido, de transição, em que, parafraseando Antonio Gramsci, o velho ainda não morreu e o novo – que são as mídias on-line – ainda não se instalaram por inteiro. Até quando isso vai durar, não sei.

Mas o fato é que quando são chamados a opinar, os representantes dos bancos, em geral economistas ou agentes financeiros, são chamados a participar de debates na qualidade de técnicos e donos de um conhecimento inatacável e inquestionável. Mas as mesmas mídias, que chamam com frequência os profissionais das análises econômicas, omitem vários fatos. Por exemplo, omitem que todas as empresas de comunicação do Brasil – Grupo Globo, Editora Abril, Grupo Folha, Grupo Estadão, RBS – ou já pertencem a bancos, ou seja, os bancos são os acionistas majoritários dessas empresas de comunicação, ou têm uma participação acionária muito expressiva no controle das empresas de mídia, ou ainda esses bancos são credores dessas empresas de mídia, que tomaram empréstimos impagáveis porque o faturamento dessas empresas é insuficiente para retornar esses empréstimos.

Não tenho dados de forma exaustiva sobre quanto cada empresa de comunicação deve aos bancos e a quais bancos; são informações bem difíceis de se conseguir. Apesar de serem supostos arautos da transparência, esses grupos midiáticos são arautos e defensores da transparência quando ela diz respeito ao poder público, mas se omitem e se calam quando se trata de cobrar transparência de grupos privados ou de vários setores da economia, em especial dos setores financeiro e bancário, que são credores das próprias empresas de comunicação.

Um segundo grupo dessas empresas de comunicação é formado por aquelas que já pertencem a bancos e publicam noticiários sobre esses mesmos bancos. Porém, como era de se esperar, não é possível que uma empresa de comunicação trate de um assunto do banco pertencendo a um banco de forma neutra, equilibrada e independente. Isso não acontece. Em regra geral, as empresas que têm grandes dívidas com bancos ou demais agentes financeiros, ou que já pertencem a bancos e demais agentes financeiros, são a mesma coisa. Vejo com muita frequência, em artigos, a referência a economistas que sempre falam do mesmo ponto de vista e são entrevistados pelos meios de comunicação. Esse é um erro elementar porque ambos, bancos e grupos de comunicação, se fundem.

Portanto, quando vemos, na televisão, no rádio ou nos jornais e sites dessas empresas de comunicação, os economistas desses bancos expressando sua opinião, por exemplo, sobre a independência do Banco Central, saibamos que eles não têm isenção ao tratar desse assunto porque bancos e empresas de comunicação se confundem.

Além disso, existem as empresas financeiras disfarçadas de empresas de comunicação. Isto é, são empresas financeiras que possuem empresas de comunicação. O caso mais emblemático dessa categoria talvez seja o Grupo Folha, formado por jornais, revistas e o site UOL, e pela empresa de pagamentos UOL, que é mais conhecida através das máquinas de cartão de crédito. É dali que sai a maior parte do faturamento do Grupo Folha; não é do jornal. Quando as empresas divulgam seus balanços, fica claro que a maior parte do lucro gerado pelos grupos vem da dimensão financeira do grupo. O jornal Folha de S.Paulo é apenas a parte pública, uma espécie de relações públicas do grupo financeiro que é de onde vem a maior parte da arrecadação e do faturamento do Grupo Folha. Esse tipo de confusão é estimulado, planejado e feito sob encomenda para que o público acredite que as opiniões dos economistas desses grupos econômicos são algo separado das opiniões dos jornais, revistas, sites de notícias e rádios. Mas, em geral, não é. Fazem parte da mesma opinião.

É por isso que quando vemos o noticiário a respeito da autonomia do Banco Central – alguns sustentam a ideia de autonomia e não de independência –, temos que ter claro que não há isenção suficiente dessas fontes para tratar desse assunto. Quando um jornal como a Folha de S.Paulo apresenta seu noticiário como uma espécie de informação inquestionável, porque um suposto equilíbrio jornalístico estaria sendo apresentado – e a Folha é uma defensora rígida desse suposto equilíbrio e isenção jornalística –, é necessário saber que, por trás da manchete, da notícia e do editorial, estão sempre expressos os interesses dos donos dessas empresas, que nos casos da Folha de S.Paulo é uma empresa financeira.

No caso dos demais grupos, inclusive do maior, que é o Grupo Globo – que tem uma dívida de alguns bilhões de reais, que alguns pesquisadores dizem que é impagável –, o que está sendo expresso nos editoriais, nas manchetes e notícias é a intenção, são os objetivos e as estratégias de agentes financeiros. Não há uma informação isenta, muito menos em relação ao mundo financeiro, que é, em si, extremamente complexo e de dificílima compreensão por parte do público em geral. Tratar do sistema financeiro brasileiro é uma tarefa muito árdua porque ele é muito complexo, como é o sistema financeiro de qualquer país. Portanto, ele é apresentado como se fosse uma espécie de mundo técnico onde nós, pobres mortais, não conseguiríamos entrar, e é explicado por técnicos que são, ao mesmo tempo, funcionários dos dois lados, da empresa financeira e da empresa de comunicação. Não há distinção entre um e outro.

Relação imprensa X Estado

Há ainda outra categoria, que no Brasil, em outros tempos, foi muito atuante, que é a categoria dos empréstimos diretos do Estado brasileiro, através das suas empresas financeiras, a determinados grupos de comunicação. Algumas empresas brasileiras se viabilizaram com empréstimos de agências estatais. Por exemplo, o grupo Diários Associados foi construído com empréstimos, nunca pagos, de várias agências brasileiras de financiamento, em especial do Banco do Brasil, que financiou projetos do grupo que existem até hoje. O exemplo mais visível do que sobrou da cadeia dos Diários Associados é o Jornal Correio Braziliense, em Brasília, que tem um alcance regional, mas já teve um enorme impacto em termos nacionais, mas não conseguiu acompanhar a evolução dos tempos em termos de indústria jornalística. Outro exemplo integrante dessa rede é o Diário de Minas.

Sujeitos ocultos: bancos, Forças Armadas e mídias no ambíguo cenário político brasileiro:

No ano passado, durante a campanha presidencial, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, que é absolutamente controlado pelo Estado, assumiu um compromisso de refinanciar a dívida do grupo de comunicação da família Collor de Mello, em Alagoas. Esse é um grupo local, que tem uma dívida de cerca de 50 milhões de reais, que, para a escala do grupo de comunicação, é uma dívida muito grande. O BNDES teria se comprometido em financiar sua parte na dívida, que seria algo em torno de 17, 18 milhões, o que daria uma sobrevida ao grupo de comunicação. Nesse caso, a contrapartida seria não em termos bancários, econômicos e financeiros, mas em termos políticos, porque o ex-presidente [Fernando] Collor de Mello, naquela oportunidade, após fechar a renegociação da dívida de seu grupo de comunicação, anunciou apoio ao então presidente Jair Bolsonaro, candidato à reeleição na época. Ou seja, houve o que os economistas chamam de trade off, uma troca: apoio político em troca de apoio financeiro. Esse tipo de relação foi muito tradicional entre as décadas de 1940 e 1970, como se viu de modo muito emblemático com o grupo Diários Associados. O controle que esses grupos de comunicação tinham sobre o mercado regional e local de notícias é conhecido como uma espécie de coronelismo eletrônico. O Estado brasileiro, portanto, sustentava o controle da opinião pública em termos regionais através desses sucessíveis financiamentos e refinanciamentos. Esta é uma categoria que prefiro não tratar porque é pequena se comparada às demais categorias.

IHU – Quais bancos têm relações financeiras com as empresas de comunicação?

Carlos Tautz – Em se tratando de bancos, um deles em especial se destaca quando o assunto é ter participação simultânea em vários setores da economia e ter participação em empresas de comunicação, que é o Grupo BTG Pactual. Este grupo é dono de várias empresas, entre elas, o site Money Times, veículo de informações financeiras. Ou seja, um grupo financeiro, dado o capital enorme que possui, compra, cria ou mantém uma empresa de informações financeiras que influencia todo o mercado. Nem o Banco BTG nem o Money Times, entre outros, têm dependência suficiente para falar de economia como um todo ou sobre o assunto específico que vem sendo objeto de debate público, que é a independência ou autonomia do Banco Central para definir, por exemplo, as taxas de remuneração básicas da economia nacional.

Entre 2003 e 2004, as associações da imprensa tradicional – Associação Nacional dos Jornais, Associação Brasileira de Rádio e TV e Associação Nacional de Editores de Revistas – tentaram, diante do fato de que seus associados estavam quebrados, que o BNDES injetasse recursos para salvar as empresas de comunicação convencionais. Na época, a dívida do grupo Globo era de quatro bilhões de reais, uma dívida impagável porque o grupo, com seu faturamento, não consegue levantar esse recurso nem no mercado nacional, muito menos no internacional. Houve até quem defendesse a ideia, como o presidente do BNDES à época, Carlos Lessa, de que o empréstimo do BNDES fosse utilizado como uma espécie de contrapartida para que as empresas do campo da comunicação passassem a ter outro tipo de comportamento em relação ao governo federal [Lula]. As empresas de comunicação, como sabemos, sempre se comportaram como se fossem uma espécie de partido político, de exército inimigo, quando o assunto era os governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores.

Carlos Lessa, que era um nacionalista e alguém que tinha visão sobre a disputa pelo poder, chegou a elaborar esse assunto, mas foi derrubado do BNDES por divergências internas sobre a taxa de juros do Banco Central e por causa de um confronto direto com seu suposto chefe, o ex-ministro da Indústria e Comércio, [Luiz Fernando] Furlan, dono da Sadia e outros grupos de alimentos. Lessa defendia que o aporte de recursos públicos, através de bancos públicos, a grupos de comunicação privados fosse utilizado como moeda de troca e barganha para que a feroz oposição dos grupos de comunicação ao governo Lula fosse amansada. Essa foi uma hipótese que correu à época, porém, não foi elaborada nenhuma proposta para que empresas de comunicação conseguissem acessar os recursos públicos. O que ocorreu depois foi a feroz oposição da mídia ao governo, com a publicação de uma sucessão de farsas, desde o Mensalão, ao Petrolão, até resultar, em 2016, no golpe à ex-presidente Dilma Rousseff.

IHU – Como é a relação da imprensa com as Forças Armadas?

Carlos Tautz – Além de não ter nenhuma notícia negativa publicada sobre os bancos na imprensa brasileira, há um segundo agente público e político que é muito pouco coberto pela imprensa em geral e pouco estudado também: as Forças Armadas. Elas voltaram a ter protagonismo público a partir do apoio explícito de seus líderes, oficiais de referência e comandantes, às propostas do ex-candidato Jair Bolsonaro, que desde 2014 faz campanha dentro dos quartéis, inclusive na Academia Militar dos Agulhas Negras, que forma os oficiais do Exército, com consentimento da cúpula militar.

Antes mesmo da definição pela candidatura de Bolsonaro, as Forças Armadas nunca deixaram de fazer política, como bem observa Manuel Domingos, professor aposentado da Universidade Federal Fluminense – UFF, um dos três decanos de estudos de Defesa e Forças Armadas no Brasil. Ele observa sempre isto: ainda que estejam fora das páginas dos jornais, as Forças Armadas nunca deixaram de fazer política e de atuar politicamente. Na verdade, temos que observar as Forças Armadas brasileiras  de outro ângulo: elas são uma espécie de cabeça de ponte de interesses da potência hegemônica global, que são os Estados Unidos. Isso tem razões históricas e não surgiu agora; é algo da ordem de 70 anos. As Forças Armadas são uma espécie de Estado dentro do Estado brasileiro.

IHU – O que isso significa?

Carlos Tautz – Faço essa afirmação porque elas têm seus próprios códigos de conduta, a sua própria justiça, o seu próprio Ministério Público, independentemente dos demais brasileiros, têm fontes de arrecadação próprias para além do erário. Por exemplo, a Marinha recebe uma quantidade não explícita de recursos pelo pagamento da ocupação dos chamados terrenos de Marinha à beira mar. O Exército coloca seu batalhão de engenharia para fazer inúmeras obras e cobra por isso. Em geral, as Forças Armadas também têm sua previdência e têm, inclusive, política-externa própria. Têm escritórios de compra de armamento pesados em Washington, sobre o qual não se tem notícias.

No debate público dos meios de comunicação, não são publicadas informações a respeito dessas compras bilionárias feitas de forma rotineira pelas Forças Armadas brasileiras em vários países, em volumes de dinheiros que superam, em muitas vezes, políticas públicas como, por exemplo, o Programa Bolsa Família.

Não se sabe exatamente quando as Forças Armadas escolhem aqueles equipamentos que vão fazer parte do seu escopo de tanques, navios e aviões. São compras que, formalmente, respondem aos critérios do Tribunal de Contas, mas, a rigor, têm pouca luz sobre esses números e se sabe muito pouco a seu respeito. A cobertura do cotidiano das grandes negociações internas das Forças Armadas, como a escolha do ex-capitão e ex-parlamentar Jair Bolsonaro para ser uma espécie de volta pública dos militares ao poder, não é objeto de matérias frequentes dos meios de comunicação. Nesse caso, isso ocorre não exatamente pelas razões pelas quais os meios de comunicação garantem a invisibilidade pública dos bancos.

Em geral, essas empresas de comunicação valem-se de informações vazadas por alguma fonte de informação dentro de uma das Forças Armadas – Marinha, Exército ou Aeronáutica. Mesmo quando há um vazamento propositado ou controlado saindo das Forças Armadas e chegando até o meio de comunicação, ainda assim o que ocorre é o tratamento de casos pontuais, como o que foi frequente durante uma época: casos de discriminação por conta da orientação sexual de militares, casos de racismo, casos de tortura dentro das Forças Armadas durante o treinamento das Forças Especiais. São sempre casos isolados e nunca são produzidas matérias que tratam das articulações de poder que as Forças Armadas exercem o tempo inteiro, mesmo quando não estão explicitamente no poder, como estiveram recentemente através dos seus comandantes nos quatro anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

A relação pouco clara e transparente entre as Forças Armadas e os meios de comunicação é uma agenda de pesquisa ainda a ser desenvolvida; existem poucos casos de investigações acadêmicas sobre o assunto. Como os pesquisadores da área ressaltam, são necessárias linhas de financiamentos longas para que se tenha um quadro minimamente confiável do conjunto das relações sociais mantidas pelas Forças Armadas no Brasil e no cenário internacional. O alinhamento automático das Forças Armadas brasileiras às posições geopolíticas do governo dos EUA é algo que passa invisível aos olhos de todo discurso público, e tem pouco interesse e dedicação das empresas de comunicação que cobrem o setor militar.

OTAN press

Na verdade, todos os movimentos geopolíticos têm pouca explicação no sentido de as empresas de comunicação explicarem o que acontece. Tomemos como exemplo as informações e notícias sobre a guerra na Ucrânia. Em geral, o noticiário dos mais importantes meios de comunicação brasileiros – particularmente os noticiários dos jornais Folha de S.Paulo e Globo News – reproduz, ipsis litteris, a posição da Organização do Tratado do Atlântico Norte – OTAN, que está diretamente envolvida na guerra da Ucrânia porque apoia, com treinamentos, equipamentos e dinheiro, o exército ucraniano na guerra contra a Rússia. No Brasil, esses meios de comunicação assumiram o discurso da OTAN e passaram a ser tratados por alguns jornalistas como “OTAN press”.

A “OTAN press”, representada por um desses grupos, no caso o jornal Folha de S.Paulo, inclusive já adiantou qual vai ser seu próximo movimento na cobertura desse jogo político internacional. Após oito anos sem correspondente na Ásia, a Folha de S.Paulo vai enviar um correspondente à região do globo cuja economia mais cresce nos últimos 20, 30 anos e cujas projeções de crescimento econômico são ainda mais vigorosas para os próximos anos, a tal ponto que essas economias, em especial a chinesa, passarão a disputar a hegemonia econômica global com os EUA.

Pois bem, a Folha de S.Paulo, ao escolher a sede onde o seu correspondente vai ficar, não escolheu Pequim, a capital da China, cuja economia mais cresce nos últimos vinte anos. A sede do correspondente do jornal Folha de S.Paulo será Taiwan, uma província da China, formalmente rebelde desde a Revolução Chinesa de 1940. Taiwan, até hoje, é uma província rebelde e não se reconhece como chinesa, embora a China os reconheça como tal, sendo a postura taiwanesa abertamente sustentada pelos EUA. Ou seja, o jornal Folha de S.Paulo, antevendo a disputa geopolítica que surgirá em breve da guerra na Ucrânia e cujas atenções irão se voltar para China e Taiwan, envia um dos seus correspondentes para uma dessas partes em disputa. Isso não está claro no noticiário.

Não me aprofundo mais no debate da cobertura pouco clara a respeito do que sejam os estudos sobre Defesa e Forças Armadas no Brasil porque este é um setor extremamente árido. No Brasil, as Forças Armadas são uma espécie de fortaleza de onde saem poucas informações. Trata-se de uma espécie de fortaleza que não é invadida pela imprensa, como a imprensa invade, por exemplo, as demais instâncias do Estado brasileiro, como o Ministério da Saúde, o Ministério da Educação, a Casa Civil, a presidência da República, as estatais, a Petrobras muito especialmente, que é sempre alvo de uma cobertura raivosa dos meios de comunicação convencionais.

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