“Francisco abriu a porta para uma verdadeira reforma da Igreja, mas não a atravessou”. Artigo de Richard Gaillardetz

Papa Francisco. (Foto: Reprodução | Vatican News)

06 Março 2023

Francisco escancarou uma porta que poderia muito bem levar a uma Igreja completamente reformada, inspirada pelo ensino conciliar, mas, na maior parte do tempo, ele tem relutado a atravessá-la por conta própria. Para que isso ocorra, suspeito eu, devemos esperar por outro bispo de Roma.

Publicamos aqui uma síntese da conferência proferida pelo teólogo estadunidense Richard Gaillardetz em Roma, ao Pontifício Instituto Teológico João Paulo II para as Ciências do Matrimônio e da Família em 21 de outubro de 2022.

Gaillardetz é professor de Teologia Sistemática no Boston College e ex-presidente da Sociedade de Teologia Católica dos Estados Unidos.

O texto foi publicado por National Catholic Reporter, 28-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O 10º aniversário da eleição do Papa Francisco oferece uma oportunidade para considerar as contribuições e os equívocos desse notável pontificado. Como uma avaliação abrangente é impossível, vou levar em consideração as contribuições deste pontificado relativas à teologia, à estrutura e ao exercício do ministério e da autoridade.

Teologia, estrutura e exercício do ministério

Desde o início de seu pontificado, Francisco enfatizou a prioridade do batismo cristão.

Em uma carta pouco comentada de 2016 ao cardeal Marc Ouellet, no cargo de presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina [disponível em português aqui], o papa afirmou que “olhar para o Povo de Deus é recordar que todos fazemos o nosso ingresso na Igreja como leigos”. Para o papa, a “laicidade” não é um termo negativo, identificando os não ordenados; pelo contrário, ela identifica o chamado missionário fundamental conferido a todos nós no batismo:

“A nossa primeira e fundamental consagração afunda as suas raízes no nosso batismo. Ninguém foi batizado padre nem bispo. Batizaram-nos leigos, e é o sinal indelével que ninguém jamais poderá apagar. Faz-nos bem recordar que a Igreja não é uma elite dos sacerdotes, dos consagrados, dos bispos, mas que todos formamos o Santo Povo fiel de Deus.”

Francisco defendeu a prioridade do batismo como um antídoto para a associação das ordens sagradas à atribuição de poder, um fator que contribui para os males do clericalismo. Em grande parte de seus escritos, o papa tem se afastado do rígido binômio leigo-clero, encorajado por seus predecessores, rumo a uma compreensão mais expansiva e relacional do ministério público na Igreja.

Essa mudança na teologia tem sido acompanhada por alguns ajustes institucionais provisórios. Francisco abriu os ministérios instituídos do leitorado e do acolitado para homens e também para mulheres, ao mesmo tempo em que estabeleceu um novo ministério instituído de catequista. Essas iniciativas papais, em grande parte ignoradas, forneceram um status mais formal e uma expressão ritual a uma série de ministérios abertos ao laicato.

O papa também determinou que irmãos religiosos não ordenados possam ser nomeados para cargos de liderança, incluindo os de provincial e até de superior geral, em comunidades que incluem padres. Se essas iniciativas papais fossem implementadas de forma plena e criativa, como ainda não foram, poderiam percorrer um longo caminho para desconstruir o restrito binarismo leigo-clero que tem prejudicado a Igreja durante séculos.

Esses louváveis desdobramentos, infelizmente, devem ser sopesados em relação à lamentável lentidão do papa em torno da questão da ordenação de mulheres ao diaconato e da ordenação de homens casados ao presbiterado, ambas solicitadas pelo Sínodo dos Bispos de 2019 para a região amazônica composta por nove nações. Até o momento, esses pedidos têm sido ignorados pelo papa.

Em outro desdobramento preocupante, Francisco adotou uma justificativa teológica profundamente problemática para um sacerdócio exclusivamente masculino, apelando para a teoria da complementaridade de gênero de Hans Urs von Balthasar e para sua afirmação de que existem princípios eclesiais marianos e petrinos distintos em ação na Igreja.

O princípio mariano refere-se à receptividade ativa característica de toda a Igreja, enquanto o princípio petrino é exercido pelos líderes ordenados da Igreja. O papa não explicou adequadamente, no entanto, por que toda a Igreja pode encarnar o princípio mariano, mas apenas os homens podem exercer o princípio petrino. Aqui encontramos um dos exemplos mais lamentáveis de continuidade com seus antecessores.

Teologia, estrutura e exercício da autoridade

A sinodalidade tem sido o principal leitmotiv deste papado. Francisco semeou o nosso imaginário eclesial com uma comovente retórica teológica que coloca em primeiro plano o diálogo, o acompanhamento e a cultura do encontro.

A atenção do papa à reforma concreta das estruturas eclesiásticas tem sido irregular, mas não desprovida de promessas. Ele fez um uso muito maior dos Sínodos dos Bispos do que seus antecessores pós-conciliares. Ele reconfigurou a preparação e a condução desses Sínodos, expandindo consideravelmente a participação. Ele aprimorou os processos de consulta e criou um espaço para o debate honesto e até para discordância entre os participantes sinodais.

Talvez o esforço mais tangível na reforma das estruturas de autoridade seja evidente na tão esperada constituição dedicada à reforma da Cúria, Praedicate Evangelium, que finalmente apareceu em 2022.

É muito cedo para saber qual será a eficácia dessas reformas, mas esse documento, se for bem implementado, pode fazer muito para desmantelar aquele que durante séculos foi um papado fundamentalmente monárquico. O mais notável é a afirmação do papa de que o poder de governo pode ser exercido pelos leigos em virtude de uma missão canônica. Agora, além de serem membros dos dicastérios da Cúria, os leigos podem realmente liderá-los.

Francisco deixou claro que, se a autoridade autêntica da Igreja deve ser um serviço genuíno e não um fardo, as estruturas e o exercício da autoridade devem passar por uma pronunciada “descentralização” (Evangelii gaudium, n. 16). Embora eu simpatize com sua intenção mais ampla, a expressão “descentralização” não é totalmente útil; ela não faz justiça à complexa interação entre as dimensões local e universal da vida da Igreja. Embora ele geralmente tenha evitado o termo em si mesmo, estou convencido de que a expressão “subsidiariedade” articula melhor a compreensão distinta e o exercício distinto da autoridade eclesial por parte do próprio papa.

A maioria dos católicos está mais familiarizada com o princípio de subsidiariedade, tal como tem sido empregado no ensino social católico. No entanto, quando aplicado à Igreja, o princípio pode ser transposto da seguinte forma: a principal responsabilidade pela realização da vocação cristã individual e pelo cumprimento da missão das entidades eclesiais locais cabe a esses próprios indivíduos e entidades locais. Somente quando a realização desses objetivos parecer inatingível no nível inferior e/ou um assunto local ameaçar a fé e a unidade da Igreja universal é que deve haver uma intervenção dos níveis mais altos da autoridade da Igreja.

Nos pontificados de João Paulo II e também de Bento XVI houve alguma relutância em aplicar esse princípio à vida da Igreja; o então cardeal Joseph Ratzinger alertou para os perigos de um reducionismo sociológico. Francamente, a preocupação não parece bem fundamentada. A Igreja é uma realidade humana e também divina. Na realidade, ela nunca deve ser reduzida a um construto sociológico, mas a Igreja também não pode ser isenta dos princípios sociológicos que descrevem todas as instituições humanas.

A principal característica da subsidiariedade eclesial preserva a relativa autonomia da vida eclesial e da tomada de decisões nos níveis local e regional. Essa característica do princípio combina bem com a preocupação do papa com a “descentralização”; de fato, o respeito pela integridade da Igreja local marcou grande parte desse pontificado. Considere-se a promulgação da carta apostólica Magnum principium pelo papa, que devolveu a responsabilidade primária pela tradução de textos litúrgicos às Conferências Episcopais, como pretendia o Vaticano II.

No entanto, também vimos casos em que o papa agiu de acordo com a característica secundária do princípio de subsidiariedade, o direito da autoridade superior de intervir diante da incapacidade local ou a fim de preservar a unidade de fé e a comunhão. Aqui podemos considerar a suspensão por parte do papa das ordenações na diocese francesa de Fréjus-Toulon ou suas recentes intervenções dirigidas ao Opus Dei, aos Cavaleiros de Malta e ao Mosteiro de Bose, diante da significativa disfunção eclesiástica. O exercício da autoridade desse papa jesuíta exemplificou uma aplicação eclesial equilibrada da subsidiariedade; ele respeita a autonomia local, mas não tem medo de intervir onde o bem de toda a Igreja o exige.

A crítica mais severa dirigida a esse papado diz respeito a perceptíveis falhas em relação à sua autoridade de ensino papal. Francisco dificilmente é um liberal em questões de doutrina. Em seu livro A Church of the Poor”, de 2016, o teólogo Clemens Sedmak afirmou, ao contrário, que o que vemos nesse papa latino-americano é uma “ortodoxia alegre”. Embora tenha havido casos em que Francisco contribuiu para um desenvolvimento genuíno da doutrina da Igreja, como com o tratamento dado à possibilidade de Comunhão eucarística para algumas pessoas em relacionamentos “irregulares”, Francisco de forma alguma repudiou o magistério da Igreja.

O papa realmente acredita que as doutrinas não devem ser tratadas como fins em si mesmas; elas nos servem quando nos levam a uma relação vivificante com Cristo. O Evangelho não precisa “ser transmitido sempre com determinadas fórmulas pré-estabelecidas ou com palavras concretas que exprimam um conteúdo absolutamente invariável” (Evangelii gaudium, n. 129).

Francisco começou a cumprir o chamado de João XXIII, há mais de 60 anos, a um magistério genuinamente pastoral. Embora a integridade do Evangelho certamente seja preservada com autoridade na tradição dogmática essencial da Igreja, em uma Igreja sinodal ela é mais frequentemente mantida viva e enriquecida nas expressões simples que o Evangelho encontra na fé vivida dos fiéis comuns, o que a tradição tem chamado de sensus fidelium.

Apesar de uma mudança dramática nos anos que restam para esse papado, a história provavelmente verá o pontificado de Francisco mais como transitório do que como inovador.

Inegavelmente, Francisco tem oferecido uma recepção nova, cheia de frescor e abrangente do magistério do Vaticano II. Seus apelos retóricos à prioridade do batismo e da Igreja como um hospital de campanha, seu repúdio ao clericalismo, seus muitos apelos por um exercício da autoridade mais inspirado no Evangelho – tudo isso tem sido acompanhado por gestos provocativos, mas amplamente simbólicos, e por tentativas de ajustes estruturais.

Francisco escancarou uma porta que poderia muito bem levar a uma Igreja completamente reformada, inspirada pelo ensino conciliar, mas, na maior parte do tempo, ele tem relutado a atravessá-la por conta própria. Para que isso ocorra, suspeito eu, devemos esperar por outro bispo de Roma.

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