“Foi ele (Bolsonaro) que matou”, denuncia Davi Kopenawa

Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real

26 Janeiro 2023

Para o maior líder do povo Yanomami, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é o grande responsável pelo agravamento da tragédia humanitária que atinge o seu povo e ele deve ser preso pelo crime de genocídio.

A reportagem é de Felipe Medeiros, publicada por Amazônia Real, 24-01-2023.

O maior líder do povo Yanomami, Davi Kopenawa, de 66 anos, atendeu à equipe da Amazônia Real para uma entrevista exclusiva na segunda-feira (23). Com a agenda cheia de compromissos e reuniões com outras lideranças e apoiadores das pautas do povo da floresta, ele reservou cerca de 40 minutos para uma conversa franca e direta. O xamã Yanomami revelou estar irritado e triste por ter de tratar dos problemas por ele denunciados há décadas. Àquela altura do dia, o mundo voltava os olhos para o seu povo, com ofertas de socorro emergencial, visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e até uma tentativa política de encontrar culpados para a tragédia humanitária, há tempos denunciada pelos Yanomami. Mas para Davi não há dúvidas: o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) é responsável pelo genocídio do seu povo.

“Quem matou o meu parente, meus irmãos, minha família, foi o [ex-]presidente Jair Bolsonaro. Nos quatro anos que ele ficou junto com os garimpeiros levou a doença, coronavírus, malária, gripe, disenteria, verminose e outras doenças. Foi ele que matou. Ele matou e foi embora. Se não tivesse matado, estava aqui junto com nós”, resumiu. Davi Kopenawa, na entrevista, pediu a prisão do político que continua nos Estados Unidos desde 31 de dezembro de 2022.

Não restam dúvidas de que o governo Lula quer encontrar meios de enquadrar Bolsonaro por algum crime, preferencialmente algum que o tire do jogo político. O crime de genocício e omissão de socorro para o povo Yanomami é um deles.

É na Terra Indígena Yanomami (TIY) o único caso de genocídio julgado no Brasil pelos assassinatos de 16 indígenas por garimpeiros, em 1993. Antes, em 1990, o governo de Fernando Collor demarcou o território e delegou ações para retirar 40 mil garimpeiros. A TIY foi homologada com 9,4 milhões de hectares, em 1992, com limites entre os estados do Amazonas e Roraima com a Venezuela. Mas a tragédia do massacre nunca foi superada pelo povo.

Com a entrada de Jair Bolsonaro na Presidência da República em 2019, iniciou na terra indígena uma nova corrida ao ouro e cassiterita (estanho) com aval de ações pró-garimpo pelo governo da extrema-direita. Estima-se que de 20 a 30 mil garimpeiros invadiram o território, que tem uma população de 30.400 indígenas e 386 comunidades.

Com a liberação do garimpo na terra indígena veio o pior: os narcotraficantes passaram a lavar dinheiro do tráfico com a venda do ouro na TI Yanomami. Os criminosos, segundo a Hutukara, levam além de doenças, drogas, álcool e armas para as comunidades.

Para o presidente da Hutukara Associação Yanomami está mais que provado que Bolsonaro é o culpado pela expansão do garimpo ilegal na Amazônia. Davi Kopenawa chama de “ouro do sangue Yanomami” a exploração predatória do minério em sua terra indígena.

Davi Kopenawa Yanomami (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)

Lula, na visita a Roraima no último sábado (21), prometeu novamente tirar os garimpeiros das áreas indígenas e, em particular, da TI Yanomami. O documento com as ações para a desintrusão deve ser apresentado em 45 dias. Autoridades e órgãos que se mantiveram em silêncio nos últimos quatro anos, sob os governos de Bolsonaro (federal) e Antonio Denarium (estadual), demonstram agora interesse em enfrentar a tragédia humanitária. Mas o pedido de socorro não é recente, segundo a própria Hutukara.

“Há quase quatro anos a Hutukara vem fazendo campanha Fora Garimpo, Fora Covid. Chamamos a atenção do Estado brasileiro e, principalmente, da sociedade brasileira, chamamos a atenção do mundo inteiro. O governo passado [do Bolsonaro] sequer nos atendeu em Brasília. Então, essa é uma situação que está acontecendo e nós já avisamos há muito tempo. Então nós fizemos o nosso trabalho de documentar, fizemos relatório, as mortes estavam crescendo em 2019”, disse Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami, que estava presente na entrevista com seu pai, Davi Kopenawa.

Estratégia de enfraquecimento

Dário Yanomami, vice-presidente da Hutukara (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)

Para Dário, houve uma estratégia deliberada por Bolsonaro para enfraquecer a saúde dos indígenas, seja desmantelando a rede de saúde pública, aparelhando os órgãos de assistência e fiscalização, facilitando e estimulando o ingresso de não-indígenas nos territórios, levando mais doenças para dentro das aldeias. E, afirma ele, houve ainda liberações de decretos de exploração de garimpo ilegal, de mineração e também de exploração de madeiras nas terras indígenas.

“Ele [Bolsonaro] apoiou empresários, compradores de ouro, compradores de exportação de madeira e soja. São os ricos que apoiou para comprar mais maquinários, mais mercúrio, apoiou facções, crime organizado. Empurrou todos para enfraquecer a situação do povo Yanomami, dos povos indígenas.”

A organização indígena tem um dossiê com todos os documentos enviados ao governo federal e outras autoridades para evitar as mortes dos Yanomami. O Ministério Público Federal (MPF) se manifestou publicamente na noite de segunda-feira (23).

“A grave situação de saúde e segurança alimentar sofrida pelos povos Yanomami resulta da omissão do Estado brasileiro em assegurar a proteção de suas terras”, diz trecho da nota pública. Diante de outro momento político no Brasil, o MPF cita ainda no documento, abertamente, que fez cobranças ao governo federal entre 2019 e 2022. A instituição acrescenta que “as providências adotadas pelo governo federal foram limitadas”.

A Amazônia Real vem narrando o drama do povo Yanomami, que a cada história seguia contornos dramáticos. A saída de indígenas das comunidades em direção às ruas da capital em busca de alimentos e tratamentos de saúde era uma dessas situações degradantes e de insegurança. Em novembro de 2022, uma indígena Yanomami foi assassinada com dois tiros na cabeça. O crime segue sem solução. Meses antes, em abril, uma menina do mesmo povo foi estuprada e morta por garimpeiros dentro do território Yanomami.

Além de contaminarem os rios com o mercúrio despejado nas águas durante a extração criminosa do ouro, o que provoca a morte de peixes, a mata com plantas frutíferas e os animais que vivem nesses habitats desaparecem com a derrubada da floresta amazônica.

“Os garimpeiros que usam nossas índias estão doentes e você sabe que o garimpeiro carrega a doença no corpo dele, gonorreia, aids e outras doenças que o pessoal morre na cidade. Isso aconteceu e está acontecendo até hoje”, denuncia Davi.

Leis pró-garimpo

Corrutela de garimpo no rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/HAY)

Enquanto ONGs e outras instituições se organizam para arrecadar alimentos para enviar às comunidades indígenas mais afetadas pela desnutrição extrema, agravada com as infecções tratáveis, políticos locais que fecharam os olhos nos últimos anos, fogem da responsabilização. O governador Denarium (PP) é um bolsonarista declarado e apoiador de garimpeiros que chegou a criar e sancionar leis, com o apoio dos deputados estaduais, que beneficiam os criminosos.

No texto mais recente, de julho do ano passado, ficou proibida a destruição de máquinas e outros equipamentos de garimpeiros apreendidos em operações e fiscalizações. O MPF avaliou como inconstitucional a Lei Estadual 1701/2022 “na medida em que tenta esvaziar os instrumentos de fiscalização ambiental previstos em legislação federal”.

O senador Mecias de Jesus (Republicanos) apoiador de Bolsonaro e aliado da senadora eleita Damares Alves (Republicanos) e do ex-vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos) indicou os três últimos coordenadores do Dsei Yanomami. A última indicação foi Ramsés Almeida da Silva, ex-vereador de Mucajaí (RR) filiado ao partido Republicanos que é presidido no estado por Mecias.

Ramsés teve uma gestão marcada por omissão à saúde indígena. Ele recebeu uma carta da Hutukara relatando o agravamento na TIY, mas nada fez para solucionar o problema.

“Os relatos nos trazem situações dramáticas e parecidas de diferentes regiões da TI Yanomami. Não é novidade que a situação de saúde nos últimos anos foi ficando mais precária. As lideranças se perguntam quais foram as medidas tomadas pelo Dsei-Y, pois as queixas manifestam situações análogas àquelas denunciadas em 2021. Nos últimos 3 anos a situação de saúde mostra o descaso e o abandono por parte do poder público”.

Aumento de doenças, falta de remédios, de profissionais e assistência para retirada de indígenas enfermos também estão no documento. “Nesses últimos 9 meses, nos postos de saúde que estão em nossa terra, não vimos Albendazol, um medicamento barato e básico para tratamento de verminoses, neste Dsei que possui menos de 10% das comunidades com acesso à água potável por poços artesianos e outros sistemas de acesso à água. Isso, constatamos em Maturacá, no Marauiá e em muitas outras regiões”, afirma o documento.

Maturacá e Maraiuá são regiões do território Yanomami que ficam no Amazonas, na região do Alto Rio Negro, onde o garimpo ilegal é inexistente. Em julho do ano passado, o líder Zé Gadilha Yanomami, que integra a Associação Yanomami Kurikama, liderou um protesto contra Ramsés Almeida, coordenador do Dsei-Y, órgão do Ministério da Saúde. Ele denunciou mortes de crianças por falta de medicamentos e desnutrição. “Queremos uma coordenação organizada, chega da gente morrer em área (nos postos de saúde). A desnutrição está muito alta! Queremos o acompanhamento de nutricionista. A Sesai recebe muito dinheiro, cadê o investimento?”

Recursos desviados

Vacinação dos Yanomami (Foto: Dsei Y)

O uso dos povos originários para fins políticos é denunciado por profissionais da saúde que passaram pelo distrito sanitário. “Não faltam recursos no Dsei-Y, faltam pessoas capacitadas com conhecimento logísticos e da própria Amazônia”, disse um trabalhador da saúde que passou 11 anos no órgão. “Ocorre um desmonte no Dsei-Y, os próprios trabalhadores da saúde não têm condições de trabalhar, por falta de equipamentos, remédios e assistência logística como voos de retirada. Falta gestão e seriedade. Fazer saúde é sério e deve-se pensar com coletividade”, diz Tony Gino Rodrigues, técnico em enfermagem.

Em novembro, a Polícia Federal deflagrou a operação Yoasi contra a fraude na compra de remédios destinados ao Dsei-Y. Segundo as investigações, mais de 10 mil crianças ficaram sem medicamentos. Os apontados como responsáveis são os dois ex-coordenadores do distrito sanitário, Rômulo Pinheiro e Ramsés Almeida, ambos indicados pelo senador Mecias de Jesus.

Investigado pela Polícia Federal por acusação de desvio de verbas para medicamentos, Ramsés Almeida foi exonerado pelo governo Bolsonaro em novembro de 2022, mas o Ministério da Saúde não decretou a intervenção no Dsei-Y, contrariando recomendação do MPF.

Dário Kopenawa afirma que o povo Yanomami é capaz de trabalhar em cooperação com os órgãos oficiais, lembrando que na época da CCPY [Comissão pela Criação do Parque Yanomami] foram alocados quase 70 profissionais. “Zerou a malária e aumentou a população de 15, 16, 17 mil. Aumentou porque uma equipe estava trabalhando e várias instituições não-governamentais apoiaram naquela crise sanitária”, afirma.

Para o presidente da Hutukara, mesmo após a retomada de órgãos como a Funasa (agora incorporada ao Ministério da Saúde) e os distritos sanitários voltados para os povos indígenas, a ingerência externa acabou por deteriorar a assistência. “Cada vez estava piorando. Dentro do distrito tinham interferências de políticos locais como senadores, deputados federais, estava tendo desvio de recursos”, diz.

Crianças e idosos afetados

Manifestantes aguardam a chegada do presidente Lula na Casai de Boa Vista (Foto: Felipe Medeiros/Amazônia Real)

Crianças e idosos são os mais afetados pelas doenças na TI Yanomami, por causa do sistema imunológico ainda em desenvolvimento ou em fragilidade. Conforme o vice-presidente da Hutukara, Dário Kopenawa, a escassez dos recursos naturais da floresta deixam o seu povo mais vulnerável e suscetível às doenças.

“Eu poderia falar onde não tem garimpo, que é no estado do Amazonas. Lá as crianças estão saudáveis, tem comida, tem banana, tem macaxeira, tem frutas e, os pais, as mães estão se alimentando junto dos seus filhos”, afirma o líder indígena Davi Kopenawa, que culpa o garimpo ilegal pelo esgotamento dos recursos naturais em Roraima.

Diante das imagens que chocaram o mundo com crianças e idosos, ONGs e instituições se organizam para doar alimentos. “A minha opinião é diferente. Isso pode ajudar um pouco, mas não é efetiva para salvar a população. Essas cestas básicas não vão ajudar. Cesta básica é só para fome, duas ou três semanas e depois acaba. O que vai ajudar é uma desintrusão do garimpo ilegal. Esse é o ponto mais importante para salvar a população Yanomami. Para salvar as crianças tem que retirar os garimpeiros”, disse Dário. “O garimpo estragou nossa saúde, então o governo tem o dever e a responsabilidade de cuidar das crianças que estão precisando”.

Mesmo que seja possível retirar todos os invasores, as lideranças dizem que é preciso ampliar a assistência de qualidade, com remédios e equipamentos, profissionais capacitados em combater doenças na população indígena.

O presidente Lula durante visita à Casai em Boa Vista (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

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