O espírito e os povos indígenas

Xamanismo | Foto: Divulgação / Amazônia Latitude

21 Dezembro 2021

 

"Urge aprendermos a usar novos níveis epistemológicos de compreensão da realidade para vivenciarmos as riquezas do Espírito, a exemplo dos povos indígenas. Para eles, é quase imperceptível a linha que distingue o natural do sobrenatural. Precisamos descobrir mais a dimensão holística de nossa existência humana e usá-la com honestidade e responsabilidade. Se o racionalismo nos ensinou o princípio de identidade, com o seu dogmático Terceiro Excluído, agora, com as espiritualidades originárias, somos convidados a descobrir o Terceiro Incluído, que só é perceptível pela dimensão mística", escrevem Eloir Inácio de Oliveira e Aloir Pacini

Eloir Inácio de Oliveira é padre salesiano, mestre em Antropologia pela PUC/SP, colaborador do CIMI/MT; trabalha com o Povo Xavante.

Aloir Pacini é antropólogo pela UFRJ (Museu Nacional e UFRGS), membro do Observatório Sócio Ambiental Dom Luciano Mendes de Almeida (OLMA), de Equipo de Reflexión sobre Culturas y Religiones Indígenas de la CPAL y RSAI, colabora com o CIMI/MT, com os Chiquitanos e outras comunidade tradicionais.

 

Eis o artigo. 


No início de 2020, a Articulação Ecumênica Latino Americana de Pastoral Indigenista (AELAPI) promoveu o seu IX Encontro Continental de Teologia Indígena, com o tema: “A Ação do Espírito nos Povos Indígenas”. Em dezembro desse ano de 2021, foi impressa a edição em Língua Portuguesa do mesmo. Além do livro impresso, o exemplar completo se encontra à disposição de todos no site do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

 

O objetivo desse artigo é, não tanto mostrar o seu rico conteúdo, mas o de tecer algumas reflexões e aprendizados sobre a Teologia Indígena e a presença do Espírito nas culturas originárias; e, a partir desses, denunciar processos e suscitar encaminhamentos concretos que sonhamos ver acontecerem em nossas comunidades. O Espírito é força vital, criadora, alentadora e transformadora. Os povos indígenas o sentem e o encontram existencialmente na diversidade dos seus saberes ancestrais e nos ritos que ainda mantêm, na difícil dinâmica de desconstrução-reconstrução-ressignificação que o mundo ocidental lhes impõe. Ficou muito claro que esse Espírito foi quem os conduziu no doloroso processo dominador do colonialismo e os fazem fortes, ainda hoje, nas lutas por respeito, direitos, territórios.

 

Atualmente, uma grande parcela das Igrejas (a caminhada da Teologia Indígena é e deve ser ecumênica), inclusive das suas hierarquias, está disposta a se abrir, a acolher e a apoiar o sentido do sagrado manifestado em tão diferentes formas pelo vasto território de nossa Abya Yala. Tal apoio também ficou evidente no VII Simpósio Virtual de Teologia Indígena, promovido de 21 a 25/09/2020, pelo CELAM.

 

Para isso, é necessário, num movimento do micro para o macro, contagiar as Igrejas e as sociedades, tanto as originárias quanto as urbanas do chamado “mundo branco” com a expressão cada vez mais teimosa: Teologia Indígena! Mesmo que o sonho de todos nós, a inclusão oficial desta expressão na doutrina da Igreja Católica, ainda não tenha acontecido. Teologia Indígena já é mais do que uma expressão: é uma realidade, porque nunca deixou de existir. As violências da colonização, mesmo as cristãs, não foram capazes de silenciá-la no âmago das pessoas e das comunidades.

 

O tema do encontro foi sobre a ação do Espírito na vida dos Povos Indígenas. A partilha da realidade vivenciada em cada povo é diversa, singular e original. Porém, com elementos comuns que nos surpreendem a cada relato e que movem o nosso pensamento para o Espírito Santo do Cristianismo, que esteve sobre Jesus de Nazaré, o Homem-Deus que se encarnou e se inculturou na sociedade judaica e nas outras culturas vizinhas, do seu tempo. Constatamos, num consenso inspirado que se trata do mesmo Espírito Santo que atuou na vida de Jesus e continua atuando na vida dos povos indígenas, com expressões diferenciadas. Desde a criação do mundo, seja na perspectiva bíblica ou nas narrações míticas indígenas e, principalmente, em Pentecostes, esse Espírito Santo de Deus foi derramado sobre todas as culturas. Não para nivelá-las, mas para fortalecê-las em sua diversidade perante o mundo e ser instrumento de conversão integral a um mundo de fraternidade plena.

 

Em nossos dias, quando nos referimos ao Espírito Santo, mesmo durante nossas orações cristãs, o fazemos ainda de um modo contagiado pelo racionalismo. Urge aprendermos a usar novos níveis epistemológicos de compreensão da realidade para vivenciarmos as riquezas do Espírito, a exemplo dos povos indígenas. Para eles, é quase imperceptível a linha que distingue o natural do sobrenatural. Precisamos descobrir mais a dimensão holística de nossa existência humana e usá-la com honestidade e responsabilidade. Se o racionalismo nos ensinou o princípio de identidade, com o seu dogmático Terceiro Excluído, agora, com as espiritualidades originárias, somos convidados a descobrir o Terceiro Incluído, que só é perceptível pela dimensão mística. Autores como Ken Wilber, Bassarab Nicolescu e Arthur Lovejoy aprofundaram esta questão de modo científico e com a riqueza da transdisciplinaridade.

 

É interessante notar que alguns filósofos, do passado e, também, atuais, usaram, provavelmente sem intenção específica, expressões que remetem ao que os povos indígenas costumam relacionar com o Espírito. E isto pode nos ajudar no enfrentamento das mesmas situações históricas hodiernas por eles enfrentadas.

 

Assim, vemos Karl Marx, em 1848, no seu Manifesto Comunista, dizer que “tudo que era sólido e estável se desmancha no AR” [1] (ou “se ESFUMA”, conforme outras traduções). Ele se referia ao poder da burguesia capitalista que avançava sobre todos e tudo e destruía valores, laços e direitos da sociedade do seu tempo, e nada mais se sustentava. Mencionou a palavra “ar”, que é um dos principais símbolos do Espírito; também para o cristianismo.

 

Concordamos com sua afirmação, mas ressaltamos que as coisas sólidas, que, para ele, se desmanchavam no ar, passaram a ocupar o espaço cósmico, o lugar do Espírito, no sentido judaico da Ruah. Com a força do mesmo Espírito, que nos dá esperança, acreditamos que o “sólido e estável” dos povos originários não se desmancharam jamais. Porque não fizeram a dicotomia entre ser humano e natureza. Portanto, será preciso nos elevarmos, nos voltarmos para dimensões superiores, como a fumaça usada pelos pajés que se “esfuma” pelo ar, e aí encontraremos sentido e força para continuarmos lutando contra as tantas burguesias que nos atingem.

 

Na vasta obra de Zygmunt Bauman, filósofo polonês, encontramos as expressões “modernidade líquida”, “amor líquido”, “tempos líquidos”, “relações líquidas” [2] e outras que evocam o elemento ÁGUA quase no mesmo sentido usado por Marx com a palavra “ar” ou “fumaça”. Ele usou essa palavra para explicar a chamada pós-modernidade, um estágio além da modernidade, na qual as verdades, as certezas, as instituições, as sociedades e as culturas se desestruturavam, dando lugar a um mundo de rápidas mudanças, de incertezas, de liberdades que levavam ao individualismo e onde nada se sustentava.

 

Concordamos com ele que isso aconteceu em nossas sociedades e em algumas culturas com o avanço do capitalismo. Mas, com as culturas originárias, encontramos justamente na ÁGUA e na LIQUIDEZ (não a monetária) as fontes da espiritualidade, da criação do mundo, do movimento transformador, a exemplo do Povo Guarani e outros. O elemento água está presente praticamente em todos os relatos de criação das sociedades indígenas. O próprio Bauman, em determinados momentos de sua vida, admitiu que a liquidez das sociedades poderia desencadear o surgimento de algo novo e imprevisível, apesar de demonstrar um certo pessimismo com o que poderia advir.

 

Então, numa junção audaciosa do pensamento de Bauman com as teologias indígenas, sonhamos e lutamos por um mundo novo, após a destruição das incertezas e perigos trazidos pelo capitalismo. Pois, este, tão carregado de contradições internas e movido a constantes crises, não tem mais sustentação. O seu fim está próximo, como afirma perigosamente David Harvey [3]. Em seu lugar, somos chamados a recuperar o sentido genuíno e espiritual da água, também um dos principais símbolos do Espírito Santo: “Um dos soldados lhe perfurou o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água” (Jo 19,34). Para os cristãos, o sangue simboliza o amor de Jesus, que, reclinando a cabeça, entregou o seu Espírito. A água simboliza justamente o Espírito, derramado sobre as pessoas que aceitam a proposta de caminhar com Ele.

 

Também o filósofo contemporâneo Byung-Chul Han [4], sul-coreano, faz uso de outro elemento cósmico que representa o Espírito para os povos indígenas. Este elemento é a LUZ ou claridade, como podemos ver no livro sagrado Popol Wuj, dos Mayas. Byung-Chul Han, em seu livro “A Sociedade da Transparência”, critica a negação do mistério, do segredo e da alteridade na nossa atual sociedade digital. O excesso de transparência provoca o nivelamento capitalista e faz desaparecer o negativo. Vivemos, segundo ele, num mundo da positividade, que deixa o ser humano incompleto, pois até mesmo o Eu Pessoal exige o confronto com o seu inconsciente para se motivar e se afirmar. A transparência da sociedade virtual nega a política, uma das tarefas inerentes e inseparáveis da vida humana. Nega o passado, os ancestrais e deixa o ser humano num presente sem sentido, levando-o a repetição de modismos em vista do consumismo. Tudo se resume em dar “likes” ou “deslikes”, gerando pessoas que só se baseiam em seus gostos imediatos. A grandiosa quantidade de informações não leva a nenhuma verdade, porque justamente lhes faltam a direção e o sentido e “não eliminam a fundamental imprecisão do todo”.

 

Vemos, então, com esse autor honesto e preciso em analisar o nosso mundo atual, que a transparência ou excesso de luz provocados pelo desenvolvimento tecnológico se opõe ao significado profundo e espiritual que os povos originários sempre conservaram. Mesmo estando presentes e interagindo com os modernos meios de comunicação, sabem preservar seus segredos e mistérios que geram o sagrado, um mundo desconhecido que é preciso sempre buscar, que os levam a sonhar, a serem poéticos e proféticos, num equilíbrio entre positividade e negatividade. O Espírito se lhes revela como claridade e luz e os incentivam e fortalecem diante das trevas advindas das injustiças e violências históricas e concretas. Precisamos rejeitar o excesso de transparência que o mundo virtual nos apresenta. Kundera [5] nos diz que ver significa o equilíbrio entre duas cegueiras: a da escuridão total e a do excesso de luz que também cega, tal qual olhar diretamente para o sol. Precisamos enxergar a claridade como o oposto das trevas, para não simplesmente ignorá-las ou negá-las com conformismo, individualismo e fuga da luta.

 

Citamos os pensamentos desses filósofos por nos apontarem grandes problemas da humanidade usando expressões cosmológicas familiares aos povos indígenas. Ar, para indicar desestruturação; água, para indicar incerteza; luz, para indicar excesso de transparência. Mas, reforçamos que os povos originários veem nestes elementos justamente o contrário dos problemas elencados. Ar é símbolo do movimento, do sopro vital. Água é símbolo da vida, da purificação e está presente em toda a natureza. E luz simboliza a possibilidade de ver o que é material e o que é sagrado. Todos esses elementos cósmicos são simbologia forte do Espírito que renova o mundo a partir dos mais simples. E é com Ele que caminhamos para a superação de tantos males.

 

Tecer considerações sobre o Espírito significa também sermos profetas e estarmos prontos a denunciar o mau uso dessa expressão sagrada. E, aqui, não podemos ser dúbios ou coniventes pelo silêncio diante do mal que vemos. Atualmente, os movimentos neopentecostais, evangélicos e católicos, estão massacrando a compreensão sobre o Espírito Santo, com suas interpretações carregadas de deturpação.

 

Falando explicitamente da Igreja Católica, no Brasil, é deplorável ver movimentos invocarem tanto o Espírito Santo e, ao mesmo tempo, pactuarem com poderes que aumentam as desigualdades sociais e as injustiças. A maioria é composta por pessoas apoiadoras das medidas neoliberais que retiram direitos dos trabalhadores, que discriminam as minorias e que tramam para transformar os bens da natureza em “commodities”.

 

Assim é que vemos CANÇÕES mantidas pelo marketing se colocarem de modo aparente como portadoras do Espí rito. Canções que insistem em se autoproclamar NOVAS, mas em vez de promover os ritmos brasileiros, preferem os norte-americanos; cantos que sempre invocam o Espírito Santo em primeira pessoa, numa atitude religiosa sentimentalista e individualista; nunca pronunciam as palavras povo, comunidade, justiça, pobreza. Suas pregações nunca apontam as origens sociológicas, políticas e econômicas da pobreza e das desigualdades, mas convidam a se embeber num transe estéril. Sua comunicação é falseada e conivente com os poderes [6].

 

O encontro das teologias deve se dar na democracia: o Ocidente não é paradigma. As dinâmicas sociais surgidas entre modelos sagrados indígenas e modelos católicos trazem perigos. Será o primeiro a existir dentro do segundo ou vice-versa? O atual contexto evidencia uma imposição cultural velada do segundo para com o primeiro, a começar pelo domínio dos territórios chegando ao domínio das mentes. Se o capitalismo foi tão eficaz em se moldar aos diversos contextos, por que não “converter” os povos indígenas? Isso não se dá sem a dominação do sagrado. Não restam dúvidas de que os povos originários se encontram numa conjuntura de grandes encruzilhadas, diante das quais devem ter forte contato com seus Espíritos para decidirem.

 

Contudo, felizmente, somos movidos pela virtude teologal da Esperança, e sentimos que os povos originários, portadores do verdadeiro Espírito, sob diversas formas e ritos também o são. Movido pelo Espírito Santo, que nunca abandonou a sua Igreja, tal qual São João Evangelista no seu Apocalipse, o Papa Francisco tem falado à sua Igreja e a convidado a ouvir a voz do Espírito. A partir da Carta Encíclica Laudato Sì', Francisco nos convida a desfazermos a ruptura existente entre pessoa humana e natureza. Os povos indígenas nunca fizeram tal ruptura e, por isso, hoje são chamados a nos ensinar que também somos terra, água, ar, minerais: “Então Deus modelou o homem com o pó da terra, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o homem tornou-se um ser vivente” (Gn 2,7).

 

Com a força do Espírito que “faz novas todas as coisas”, continuamos junto aos povos indígenas, construindo “novo céu e nova terra” em cada memorial, ritual, cantos, danças, purificações, refeições sagradas, nascimentos, funerais, lutas, denúncias, tristezas e alegrias.

 

Viva a diversidade cultural movida pela força do Espírito!

 

Notas

 

[1] MARX, Karl – Manifesto Comunista. Fonte digital: aqui, 1999, pág. 12.

[2] Principalmente em: Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman, 2001, Rio de Janeiro, Ed. Zahar; e Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos, Zygmunt Bauman, 2004, rio de Janeiro, Ed. Zahar.

[3] HARVEY, David – 17 contradições e o fim do capitalismo. 2016, São Paulo, Boitempo.

[4] HAN, Byung-Chul – La sociedade de la transparência. 2013, pág. 23, Barcelona, Herder Editorial.

[5] KUNDERA, Milan – A Insustentável Leveza do Ser. 1984. Essa ideia é atribuída por Kundera à personagem Sabina, pintora de quadros, para quem “viver significa ver”.

[6] Veja aqui.

 

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