A novidade sinodal do nascimento de um Programa Universitário da Amazônia

Vivemos um momento crucial em que é imperativo encorajar uma reconciliação profunda do espírito humano. Somos chamados a tecer “uma aliança entre os habitantes da Terra e a casa comum, à qual devemos cuidado e respeito.

Encontro da Fundação do PUAM. Quito, Equador, 2022 | Foto: divulgação

17 Janeiro 2023

"A experiência do discípulo e da igreja missionária no território geográfico, ecossistêmico, espiritual e sociocultural pan-Amazônico representa caminhos eclesiais sem precedentes no compromisso com as periferias. O papel da Igreja tem sido, no mínimo e apesar das suas muitas limitações e erros graves, decisivo em muitos aspectos para este território. Embora a presença eclesial tenha sido significativa em muitos casos, tem sido também uma presença absolutamente fragmentada neste imenso território. Hoje, o desafio é tão complexo e tão urgente, devido às inúmeras ameaças à vida dos povos e ao ecossistema amazônico, que é essencial assumir uma perspectiva pastoral territorial", escreve em artigo Mauricio López Oropeza, diretor do Programa Universitário da Amazônia – PUAM.

Eis o artigo.

Vivemos um momento crucial em que é imperativo encorajar uma reconciliação profunda do espírito humano. Somos chamados a tecer “uma aliança entre os habitantes da Terra e a casa comum, à qual devemos cuidado e respeito. Uma aliança que traz paz, justiça e aceitação entre todos os povos da família humana, assim como o diálogo entre religiões”. [1]

O Concílio Vaticano II estabeleceu, entre muitos outros caminhos de reforma, a afirmação da necessidade da Igreja de responder aos graves sinais dos tempos que afligem a humanidade, pois nada verdadeiramente humano é alheio a Deus. Neste contexto, a educação em geral e todos os muitos organismos da Igreja Católica que trabalham para este objetivo são meios indispensáveis para reconstruir o tecido social e para proclamar o caminho para outro mundo possível. Um mundo onde há espaço para diferentes perspectivas e identidades, onde a diversidade é uma expressão viva da face pluriforme do próprio Deus, e como mecanismo de oposição aos múltiplos projetos de morte diária que pesam sobre tantos irmãos e irmãs do nosso tempo.

Neste contexto, o ensino superior, especialmente o que deve ser chamado católico, precisa superar qualquer atitude de privilégio ou exclusão, a fim de ouvir as vozes claras do povo, que deve ser o seu primeiro e mais importante interlocutor, direta ou indiretamente, e que a função educacional seja uma ponte para que eles, especialmente os mais vulneráveis, possam ter vida e vida em abundância.

Um processo de ensino superior amazônico a partir do Sínodo especial neste território

O Documento Final, fruto de um longo discernimento eclesial e com uma ampla escuta do território amazônico (87.000 pessoas nas diferentes modalidades conduzidas pela Rede Eclesial Pan-AmazônicaREPAM), exprime a decisão da criação de uma proposta universitária para a Amazônia:

“No. 114. Propomos que seja criada uma Universidade Católica Amazónica baseada em investigação interdisciplinar (incluindo estudos de campo), inculturação e diálogo intercultural; que a teologia inculturada inclua formação conjunta para ministérios leigos e formação sacerdotal, baseada principalmente na Sagrada Escritura. As atividades de investigação, educação e extensão devem incluir programas de estudos ambientais (conhecimentos teóricos estabelecidos na sabedoria dos povos que vivem na região amazónica) e estudos étnicos (descrição das diferentes línguas, etc.). A formação de professores, o ensino e a produção de material didático devem respeitar os costumes e tradições dos povos indígenas, desenvolvendo material didático inculturado e realizando atividades de extensão em diferentes países e regiões. Pedimos às universidades católicas da América Latina que ajudem na criação da Universidade Católica Amazônica e que acompanhem o seu desenvolvimento”.

Audiência temática sobre povos indígenas amazônicos da Rede Eclesial Pan-amazônica diante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Washington, 2017.

A experiência do discípulo e da igreja missionária no território geográfico, ecossistêmico, espiritual e sociocultural pan-Amazônico representa caminhos eclesiais sem precedentes no compromisso com as periferias. O papel da Igreja tem sido, no mínimo e apesar das suas muitas limitações e erros graves, decisivo em muitos aspectos para este território. Embora a presença eclesial tenha sido significativa em muitos casos, tem sido também uma presença absolutamente fragmentada neste imenso território. Hoje, o desafio é tão complexo e tão urgente, devido às inúmeras ameaças à vida dos povos e ao ecossistema amazônico, que é essencial assumir uma perspectiva pastoral territorial.

A Igreja na Pan-Amazônia, nas suas diversas expressões, deve permitir que os diversos sujeitos do território se juntem com suas próprias experiências e em unidade, sem pretenderem ser uniformes. Ser um servidor que promove e encoraja respostas e abordagens concretas às periferias para a sua promoção. Assumir uma vocação de ouvir as pessoas do território e conhecer seus sonhos, gritos e horizontes, indo para além da autorreferência como igreja. Promover uma perspectiva missionária de uma igreja presente no território, capaz de se inculturar e interculturar na realidade. E assumir um papel profético de proclamação e denúncia perante os sinais da morte que pesam sobre a Amazônia e os seus povos, recebendo e sustentando o testemunho de mulheres e homens mártires e profetas da igreja e do território.

A importância do território amazônico para a vida do planeta

O rio Amazonas joga 15-20% da água doce total do planeta no Oceano Atlântico todos os anos. A Amazônia é, portanto, essencial para a distribuição da precipitação noutras regiões da América do Sul e contribui para os grandes movimentos de ar à volta do planeta. É uma fonte de vida para a natureza, e para as culturas de milhares de comunidades indígenas, camponesas, afrodescendentes, ribeirinhas e urbanas.

O território da Amazônia compreende partes do Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, numa área de 7,8 milhões de quilômetros quadrados, no coração da América do Sul. As florestas amazônicas cobrem aproximadamente 5 milhões de km2, o que representa algo como 40% da área de floresta tropical global.

Na Amazônia, a vida está insertada, ligada e integrada no território, que como espaço físico vital e nutritivo é a possibilidade, o sustento e o limite da vida. “A Amazônia, também chamada Pan-Amazônia, é um vasto território com uma população estimada em 33.600.000 habitantes, dos quais entre 2 e 2,5 milhões são indígenas. A região amazônica é essencial para a distribuição das precipitações nas regiões sul-americanas e contribui para os grandes movimentos aéreos em todo o planeta; é atualmente a segunda área mais vulnerável do mundo em relação às alterações climáticas devido à ação humana direta”. [2] A região amazônica é uma realidade multiétnica e multicultural.

A busca dos povos indígenas amazônicos por uma vida em abundância exprime-se naquilo que concebem como “bem viver”, “trata-se de viver em harmonia consigo próprio, com a natureza, com os seres humanos e com o ser supremo”. [3]

A vida na Amazônia é ameaçada pela destruição e exploração ambiental, pela violação sistemática dos direitos humanos da população. Em particular, a violação dos direitos dos povos indígenas, tais como o direito ao território, à autodeterminação, à demarcação das suas terras, e à consulta e consentimento prévios.

De acordo com as múltiplas consultas realizadas em muitas regiões amazônicas, as comunidades consideram que a vida na Amazônia está ameaçada sobretudo por:

“(a) criminalização e assassinato de líderes e defensores do território; (b) apropriação e privatização de recursos naturais, como a própria água; (c) concessões legais de exploração madeireira e a entrada de empresas madeireiras ilegais; (d) caça e pesca predatórias, principalmente em rios; (e) megaprojetos: centrais hidrelétricas, concessões florestais, exploração florestal para a produção de monoculturas, estradas e estradas de ferro, projetos mineiros e petrolíferos; (f) poluição causada pela indústria extrativa, que causa problemas e doenças, especialmente para crianças e jovens; (g) tráfico de droga; (h) Os consequentes problemas sociais associados a estas ameaças como o alcoolismo, a violência contra as mulheres, o trabalho sexual, o tráfico de seres humanos, a perda da sua cultura e identidade originais (língua, práticas espirituais e costumes), e todas as condições de pobreza a que os povos da Amazônia estão condenados”. [4]

As alterações climáticas, o desmatamento, os incêndios e as mudanças no uso da terra estão a conduzir a Amazônia para um ponto sem retorno, pondo em risco os ecossistemas e exercendo pressão sobre as comunidades e culturas locais.

Escuta ao território indígena do Sínodo Amazônico. Lethem, Guiana, 2019.

Desafios para a saúde: A região amazônica contém hoje a mais importante diversidade de flora e fauna do mundo, e a sua população indígena possui um sentido holístico de vida não contaminado por um materialismo economista. A Amazônia é um território saudável na sua longa e frutuosa história, embora não tenha havido falta de doença.

Desafios para a educação: A educação na Amazônia não significa impor modelos culturais, filosofias, teologias, liturgias e costumes estrangeiros. “Portanto, é necessária uma educação que ensine a pensar criticamente e que ofereça um caminho de amadurecimento em valores, uma educação aberta à interculturalidade” (EG 64).

Desafios da identidade dos povos e para uma Ecologia Integral: A visão de mundo dos povos indígenas amazônicos inclui o apelo a libertar-se de uma visão fragmentária da realidade, que não é capaz de perceber as múltiplas ligações, inter-relações e interdependências. A educação numa ecologia integral assume todas as relações constitutivas dos indivíduos e dos povos. Uma educação baseada apenas em soluções técnicas para problemas ambientais complexos esconde “os problemas reais e mais profundos do sistema mundial” (LS 111). [5]

A proposta do Programa Universitário da Amazônia dos sonhos do Papa Francisco: A missão territorial da Igreja na Amazônia hoje é sustentada pelos 4 Sonhos que o Papa Francisco apresentou na Querida Amazonia. São um mandato claro para compreender a natureza e a missão deste Programa Universitário da Amazônia – PUAM:

Em termos das características de um programa universitário, o enfoque no diálogo intercultural, a valorização das identidades e conhecimentos territoriais, e o desejo de servir a realidade particular dos povos e comunidades ajudam-nos a romper com a ideia tradicional de modelos universitários mais clássicos do Ocidente.

Este programa nasce com sua necessária autonomia, com uma relação orgânica com a Conferência Eclesial AmazônicaCEAMA, e em profunda comunhão com a REPAM. Trata-se, tal como expresso pelo nosso querido cardeal Cláudio Hummes (que recordamos com profundo afeto agora que foi à casa do Pai-Mãe Deus), de um tripé de presenças eclesiais que aborda as perspectivas das urgências territoriais e do acompanhamento da luta e defesa dos povos e comunidades (REPAM), do institucionalismo e perspectiva do serviço eclesial inculturado com uma visão de longo prazo (CEAMA), e dos serviços interculturais de educação superior para as comunidades e povos (PUAM). Para levar adiante este PUAM, sua identidade e funcionamento terão lugar graças à Pontifícia Universidade Católica do EquadorPUCE, e em profunda colaboração com a AUSJAL, uma associação que tem acompanhado este processo desde o início.

O PUAM assume uma pedagogia libertadora, itinerante, popular e dinâmica que se baseia numa escuta próxima, permanente e ativa e com os temas prioritários identificados. Desta forma, a oferta educacional poderá acrescentar processos e experiências existentes e, assim, responder mais eficazmente às necessidades e urgências identificadas pelos territórios, a fim de desenvolver propostas emergentes e transformadoras.

É do interesse do PUAM gerar uma coconstrução de conteúdos juntamente com as experiências existentes, com os caminhos do Sínodo Amazônico (com o REPAM e o CEAMA) e a partir de conhecimentos ancestrais, inculturados e interculturais para tecer com os temas prioritários e constituir polos universitários – modelos territoriais (Centros Comunitários de Educação – CCE) que facilitem o acesso aos seus programas nas diferentes partes da região Pan-Amazônica.

Para tal, serão concebidos modelos de educação popular mista, tanto virtuais, presenciais como com o apoio de ferramentas offline (para lugares sem ou com difícil acesso à internet), que facilitam a aprendizagem colaborativa e uma abordagem multiplicadora e transformadora, com a perspectiva da educação nas e das margens (Jesuit Worldwide Learning). O PUAM promoverá conhecimentos escaláveis, transferíveis, sustentáveis e resilientes que contribuam para a transformação social, cultural, política, ecológica, econômica e eclesial na Pan-Amazônia.

Será dada especial atenção às periferias existenciais, culturais, geográficas e socioeconômicas, com o intuito de construir pontes entre as margens e os programas universitários, bem como de ativar alianças e redes com instâncias acadêmicas, pastorais e/ou sociais da Igreja ou civis, a fim de atender aos gritos do território e dos seus povos.

Entre o público-alvo, é sublinhada a necessidade de acompanhar e reforçar as contribuições de, entre e para as mulheres como formadoras e conhecedoras da cultura, a fim de unir maiores esforços face aos vários tipos de violência que diariamente colocam suas vidas em risco; os povos indígenas das suas identidades e cosmovisões, bem como os povos camponeses, periferias urbanas, jovens e outros grupos vulneráveis.

Notas

Referências 

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