Eleições 2022. Caminhos, limites e possibilidades políticas para os próximos anos. Entrevista especial com Bernardo Ricupero e Giuseppe Cocco

A seguir, os pesquisadores comentam os principais resultados das eleições deste ano

Foto: Reprodução

Por: Edição Patricia Fachin | 10 Outubro 2022

 

O resultado do primeiro turno das eleições, considerando a composição do Congresso Nacional e os governadores eleitos, mostra “que o bolsonarismo, para além de Bolsonaro, está fortemente enraizado no Brasil”, diz o sociólogo Bernardo Ricupero no debate promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última quinta-feira, 06-10-2022, sobre os caminhos, limites e possibilidades políticas para os próximos anos. Segundo Ricupero, “o que mais surpreendeu” em termos regionais “foi o resultado do Sudeste”, onde Bolsonaro obteve uma diferença de 5% dos votos. “Além disso”, acrescenta, “surpreendeu o fato de que Bolsonaro ganhou no Rio de Janeiro com quase 11% de diferença em relação ao Lula. Mesmo em Minas, onde Lula ganhou, a diferença foi bem menor em favor do Lula; algo em torno de 5%”.

 

O cientista político Giuseppe Cocco, que há duas décadas acompanha a política nacional brasileira à luz das transformações globais no mundo do trabalho, destaca dois componentes fundamentais do processo eleitoral. O primeiro deles é o voto contra. “A polarização produziu um campo que é atravessado por nuances, mas, fundamentalmente, muitas pessoas votaram contra Bolsonaro e muitas votaram contra Lula. Um ponto determinante da eleição é essa polarização que continua a funcionar”.

 

O segundo determinante, pontua, diz respeito ao voto dos pobres. “O voto dos pobres também está dividido. Ele não está dividido em dois campos. Ele é atravessado porque o campo da mobilização produtiva dos pobres, por fora da relação salarial nas grandes metrópoles brasileiras, implica uma modulação contínua de fragmentos que se agenciam e desagenciam”.

 

A seguir, publicamos a exposição dos dois palestrantes no formato de entrevista. O debate realizado na sequência, a partir de 1h 2min,  está disponível aqui

 

Confira as entrevistas.

 

Bernardo Ricupero possui graduação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP, tendo realizado pós-doutorado pelo Colégio do México. É professor da USP, trabalha com ênfase em História do Pensamento Político, atuando em temas como pensamento político brasileiro, pensamento político latino-americano, marxismo, nacionalismo e romantismo.

 


Bernardo Ricupero

Foto: Reprodução YouTube

 

 

IHU – Como avalia o resultado do primeiro turno das eleições deste ano?

 

Bernardo Ricupero – Eu, como praticamente todos, fiquei atônito com os resultados do primeiro turno das eleições de 2 de outubro. Os resultados foram surpreendentes. Diria que provavelmente tão surpreendentes só foram os resultados do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018. No caso de 2018, também ficamos atônitos com o fato de que Bolsonaro quase ganhou as eleições no primeiro turno, com cerca de 46% dos votos e, na onda bolsonarista, foram eleitos diversos governadores, como [João] Doria, [Romeu] Zema.

 

Em 2022, também foi surpreendente pensar que, na eleição para o Senado, foram eleitos ex-ministros de Bolsonaro, como Damares [Alves], Marcos Pontes, Ricardo Salles, do Meio Ambiente, o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que foi o segundo deputado mais votado depois de tudo que aconteceu na pandemia, e o vice-presidente, [Hamilton] Mourão.

 

 

IHU – O que mais surpreendeu nos resultados?

 

Bernardo Ricupero – Provavelmente, se formos pensar nos resultados das eleições, o que mais surpreendeu foi o resultado do Sudeste, considerando aquilo que as pesquisas eleitorais indicavam pouco antes da realização do primeiro turno. No Sudeste, pesquisas como a do Datafolha sugeriam uma diferença de até 7% a favor do Lula, mas Bolsonaro ganhou no Sudeste com uma diferença de 5%. Além disso, surpreendeu o fato de que Bolsonaro ganhou no Rio de Janeiro com quase 11% de diferença em relação ao Lula. Mesmo em Minas, onde Lula ganhou, a diferença foi bem menor em favor do Lula; algo em torno de 5%.

 

 

Retrospectiva

 

Praticamente desde 2006 é possível, se olharmos o mapa eleitoral, observar uma certa continuidade, pensando a relação do PT com os seus adversários. E, mais do que isso, é importante pensar 2006 como marco porque essa data, como disse André Singer, estabelece uma mudança no próprio eleitorado do PT – levando em conta que as eleições aconteceram depois do escândalo do mensalão. O eleitorado de classe média, ou o que se chamava de setores organizados da sociedade, afastou-se gradualmente dos candidatos do PT e o partido passou a ter um apoio forte entre o subproletariado, como o denomina Singer. Também é interessante, pensando em termos regionais, ver certa continuidade.

 

Aquilo que chama mais a atenção, pensando nas eleições de 2006, 2010, 2014 e 2018, do ponto de vista dos candidatos presidenciais do PT e das candidaturas que se colocaram contra o PT, é que, desde 2006, o partido ganha no Nordeste e ganha, com menos força, na região Norte. Os adversários do PT, desde 2006, ganham no Centro-Oeste e no Sul – com exceção de 2010, quando a Dilma ganhou em todas as regiões do Brasil e também quando o candidato do PSDB foi o mais bem votado nas regiões do Centro-Oeste e Sul. Nesse sentido, podemos interpretar o Sudeste como um espaço de disputa. É interessante que em 2006, 2010 e 2014, o PT ganhou no Sudeste, mas, em 2018, não. Por sua vez, São Paulo, no Sudeste, aparece como uma exceção em 2006, 2010, 2014 e 2018, quando o PT perdeu no estado, assim como teve variações neste quadro no Rio Grande do Sul.

 

É interessante que isto também aconteceu na eleição de 2022: Lula ganhou no Nordeste, mas com uma diferença menor no Norte, perdeu no Centro-Oeste, no Sul e, no Sudeste, com uma diferença menor.

 

IHU – O que isso indica sobre o Brasil?

 

Bernardo Ricupero – A questão é como interpretar esses resultados a partir de uma visão difusa sobre o Brasil. É interessante que há algum tempo aparece, para além das análises acadêmicas, no senso comum a ideia de que os adversários do PT ganhariam no Brasil moderno enquanto o PT ganharia no Brasil arcaico. Isso, no fundo, reproduz a imagem de “dois Brasis”.

 

Brasil arcaico versus Brasil moderno

 

Essa visão de oposição já foi muito criticada e o grande marco desse posicionamento é o ensaio do sociólogo Chico de Oliveira, que completou cinquenta anos, intitulado “Crítica à razão dualista”. Ele defendeu que, ao invés de uma oposição entre o Brasil arcaico e o Brasil moderno, há uma relação de complementaridade entre essas duas dimensões. O que ele diz com isso é que o salário do operariado da indústria de São Paulo pode se manter baixo porque migrantes nordestinos continuam a migrar para São Paulo, ou seja, eles funcionam como um exército industrial de reserva permanente. Nesses termos, Chico argumenta que há uma acumulação primitiva estrutural no Brasil, que é diferente da análise do Marx, segundo a qual a acumulação primitiva está na gênese do capitalismo. Esse texto é de cinquenta anos atrás, mas é interessante que foi escrito no auge do milagre econômico em 1972. Entre 1971 e 1973, o Brasil crescia 12% ao ano. Desde então, o país vive uma estagnação e na última década não houve crescimento econômico.

 

Além disso, é importante pensar o que era considerado moderno na década de 1970 e o que é entendido como moderno, hoje, no país. Para o sociólogo, moderno era a indústria, numa visão tradicional do século XX. Agora, pensando este processo em um momento em que há uma reprimarização da economia brasileira, o moderno é identificado com o agribusiness, que está presente no Centro-Oeste, no Sul e no interior de São Paulo. Se pensarmos o moderno como o agribusiness, não é difícil ver que ele não é um parente tão distante daquilo que Caio Prado Júnior chamou, nos anos 1940, de “a grande exploração agrária”.

 

Em alguma medida, podemos dizer que foi essa exploração agrária que constituiu o Brasil e ela foi moderna em termos de reunir, em grandes unidades, escravos que produziam, sem nenhuma consideração com o meio ambiente, meios demandados pelo mercado externo. Se pensarmos, hoje, o moderno do agribusiness, em condições de trabalho e desconsideração do meio ambiente, há diversos pontos que podem ser aproximados ao moderno entendido no sentido de grande exploração.

 

Com isso, quero argumentar e sugerir que existe uma divisão geográfica e regional, pelo menos de 2006 até a eleição recente, no país. Mas aquilo que se tira dessa divisão talvez não seja tão simples em termos de moderno e arcaico. Outra questão que, de alguma maneira, nos leva a refletir sobre o sentido especial desse primeiro turno é o fato de que Lula ganhou em diversas capitais. Isso contrasta especialmente com o que aconteceu nas últimas eleições de 2018. Em 2018, [Fernando] Haddad, o candidato do PT, só ganhou em capitais do Nordeste – e não ganhou em todas. Agora, Lula ganhou em São Paulo, em Porto Alegre, em Florianópolis, em Recife e em Salvador. Ou seja, se em 1972 o moderno era visto no sentido urbano, de alguma forma agora o resultado das eleições mostra que o quadro é mais complicado.

 

 

IHU – O que o resultado das eleições mostra sobre o bolsonarismo no país?

 

Bernardo Ricupero – Sem dúvida, o que essas eleições mostram, em primeiro lugar, é que o bolsonarismo, para além de Bolsonaro, está fortemente enraizado no Brasil. Não me parece que isso ocorre ao acaso. Poderíamos pensar que tem a ver, em alguma medida, com a história do país, que se formou na Colônia, passando necessidades, e com o fato de boa parte da população ter sido trazida como escrava da África, mas também não se deve ler esse resultado simplesmente nessa chave mais pessimista.

 

Diria que, em boa medida, podemos identificar a busca daqueles que querem um projeto alternativo nas votações que Lula obteve no Nordeste e no Norte e nas periferias das grandes cidades. Mas as visões simplistas, especialmente sobre o Brasil, que também vão aparecer e têm aparecido recorrentemente quando se fala das eleições, indicam que a situação é mais complicada. Se há, na verdade, uma imbricação entre moderno e arcaico que nos marca desde o início da nossa história, talvez não seja como Chico de Oliveira pensou há cinquenta anos, porque o país mudou. Na verdade, aquilo que muitas vezes pode parecer moderno, não é; é arcaico. Talvez o contrário também ocorra.

 

***

 

Giuseppe Cocco é graduado em Ciência Política pela Université de Paris VIII e doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e editor das revistas Lugar Comum e Multitudes. Entre outros livros, publicou: New Neoliberalism and the Other: Biopower, Antropophagy and Living Money (Lanham: Lexington Books, 2018), em parceria com Bruno Cava. O último livro que publicou intitula-se Entre cinismo e fascismo (Autografia: Rio de Janeiro, 2019).

 

Giuseppe Cocco

Foto: Acervo IHU

 

IHU – O que o resultado das eleições mostra sobre o Brasil?

 

Giuseppe Cocco – A sensação e a percepção que todo mundo teve domingo à noite foi a de que algo aconteceu. Estamos falando de um fenômeno eleitoral que não tinha sido monitorado devidamente a partir das intuições que, aparentemente, têm dificuldades de detectar o que está acontecendo na tradução eleitoral das transformações sociopolíticas brasileiras.

 

Vale a pena analisar esse espanto acerca do resultado das eleições em uma dimensão de debate estrutural. Desse ponto de vista, em primeiro lugar, estamos diante de um esgotamento de todas as categorias que usamos, em particular dessas que Bernardo Ricupero menciona acerca do dualismo entre o arcaico e o moderno.

 

Se há algo de positivo nessa eleição, é o fato de que temos um desafio, na universidade, no debate político e teórico, de entender como a proposta que deveria ser progressista ganhou nas áreas mais arcaicas e vice-versa. Ou a proposta não é tão progressista assim, ou a linha de clivagem entre o que é arcaico e o que é moderno não é mais a mesma. Isso não significa que tudo seja igual, mas não funciona mais nem a proposta progressista na sua qualificação, nem a tradicional clivagem que separa a realidade social política do Nordeste e a periferia de São Paulo. Tem alguma coisa que não funciona.

 

Ao mesmo tempo, quando falamos do fascismo ou do bolsonarismo, ou de uma nova extrema-direita, temos que entender se é o arcaico que está voltando ou, ao contrário, se isso é – como foram o nazismo e o fascismo – algo que entra pela extrema-direita, pela radicalização, mas que não é arcaico e consegue inovar politicamente, do ponto de vista da comunicação, e criar novos problemas.

 

 

Inserção do Brasil na globalização

 

Minha aposta é que estamos em plena dinâmica de uma clivagem em que não há mais o arcaico e o moderno, o emergente e o dependente. Estamos dentro de uma dinâmica do modo de inserção do Brasil na globalização, a qual tem uma série de contradições que, nos últimos anos, foram se tornando ainda mais complexas. Coloco essas contradições em uma dialética entre o que seria a brasilianização do mundo e o devir-Brasil do mundo e o devir-mundo do Brasil. Estamos nessa contradição. Então, o fenômeno do bolsonarismo – que o primeiro turno das eleições de 2022 mostra que não vai desaparecer amanhã, mas isso não significa que esteja enraizado no país – é um fenômeno brasileiro, de brasilianização do mundo, e, ao mesmo tempo, global.

 

Essa dimensão constitutiva que juntaria os termos arcaico, progressista, moderno, nos leva a algumas questões: O que são os índios? Modernos ou arcaicos? A floresta é um resíduo da falta de desenvolvimento ou é um recurso para algo que não é mais o desenvolvimento que levava do arcaico ao moderno?

 

Podemos pensar essa dialética do devir-Brasil no mundo como algo positivo. Essas eleições foram observadas no mundo todo com muita esperança por uma série de fatores que dizem respeito à questão do clima e do meio ambiente. Mas essa dialética funciona em três níveis: o Brasil, a dimensão global e a questão do trabalho.

 

 

IHU – Pode explicar esses três níveis?

 

Giuseppe Cocco – Vou começar com a questão global. O que está acontecendo no Brasil não acontece só aqui. Aconteceu na Itália, com o partido pós-fascista, neofascista, com Giorgia Meloni, que será primeira-ministra italiana e é herdeira de [Benito] Mussolini. Aconteceu na Suécia e quase aconteceu na França, mas [Emmanuel] Macron conseguiu derrotar Marine Le Pen no segundo turno. Além da dinâmica nos EUA.

 

A dinâmica da emergência de um populismo de direita ou de um novo fascismo – depende de como o chamamos –, assim como ocorreu na década de 1930, tem uma diferença geopolítica, que se chama Moscou, com uma dinâmica de guerra e de agressão de alta intensidade. O fascismo já se tornou guerra e aqui temos uma situação na qual a clivagem entre progressismo e conservadorismo não funciona bem para entender essa ameaça à medida que, no progressismo – basta ver o que Lula disse – e no bolsonarismo, o pessoal é simpático à Rússia.

 

Essa crise global que se apresenta como guerra de alta intensidade, com chantagem de uma guerra nuclear em um contexto de crise climática, mostra que o crash das civilizações corre o risco de ser uma crise geral da civilização e, portanto, o esgotamento da governança neoliberal no mundo. Contrariamente ao que pensávamos, a situação atual não se abre na dinâmica do comum, do progresso, mas em um horizonte de caos, que precisamos enfrentar. Não é que o neoliberalismo esteja se tornando fascista, como muitos diziam na esquerda. O neoliberalismo não consegue mais governar. É só ver as alianças feitas: os economistas do Plano Real estão apoiando a candidatura do Lula.

 

 

Brasil

 

A segunda questão é relativa ao Brasil. Não dá para explicar o que aconteceu no Brasil em 2022 sem falar da polarização que começou no âmbito global e foi bombeada e fomentada desde 2014, depois de junho de 2013. São oito anos de polarização doida. Quando falamos da eleição de 2018, é bom lembrar que a polarização que se tentou fazer no primeiro e no segundo turno foi com uma chapa que, nas eleições atuais, não foi repetida. Lula estava na prisão naquela época e não estava em uma posição confortável do ponto de vista político, independentemente do que se pensa sobre esse episódio. A chapa, em 2018, foi composta por uma figura política importante, porém, uma figura do Sudeste, tendo como vice uma candidata de um pequeno partido de esquerda.

 

Então, vejam bem: Lula, que é bem mais popular que Haddad, depois de uma gestão Bolsonaro, se apresenta com [Geraldo] Alckmin. Essa polarização tem uma dinâmica global, da qual não conseguimos fugir, porém, nem sempre tem os mesmos resultados eleitorais em todos os países. Algumas escolhas políticas permitiram a eleição de [Gabriel] Boric, no Chile, e levaram Macron a derrotar Le Pen. Portanto, não tem nenhum determinismo envolvido nas eleições, mas temos que pensar em termos estruturais e conjunturais no sentido de como a política é feita.

 

Inicialmente, em 2018, todo mundo achava que o resultado seria positivo do ponto de vista do campo dito progressista, do lulismo, do PT, mas acabou dando no fascismo, no bolsonarismo, que entendeu perfeitamente, até mais do que o lulismo, como tudo isso funciona. Como o bolsonarismo é um fascismo, ele fez tudo funcionar pelo avesso. A crítica à globalização virou um dos terrenos fundamentais do bolsonarismo, assim como as guerras culturais que aconteceram antes de 2018.

 

Quando passamos do global ao Brasil, podemos dizer que a globalização é o elemento importante não da dimensão estrutural, mas de como tudo isso pode se traduzir do ponto de vista eleitoral e institucional para manter, ou não, o quadro democrático dentro do qual podemos travar essa luta.

 

Por enquanto, temos essa dinâmica global e não sabemos direito se o fascismo é um efeito do crash da civilização ou se é uma das causas. Essa incerteza entre saber se se trata de causa ou efeito é um indicador do perigo pelo qual estamos passando porque isso imobiliza e torna muito difíceis a luta e a análise políticas. Nesse contexto, chegamos à questão do trabalho.

 

 

Trabalho

 

Houve um tempo em que discutíamos o trabalho na esquerda e também falávamos de classe, mas muitas vezes isso foi substituído pelo debate sobre dependência e emergência das economias ou sobre o arcaico e o moderno. Todo debate sobre desenvolvimento passa ao largo de uma questão fundamental, que é a transformação do trabalho não como transformação do seu conteúdo educacional, cultural, mas do ponto de vista do seu modo de mobilização. Veja que a Rússia, derrotada na guerra pelos ucranianos, precisou fazer uma mobilização. E aí vemos o que é mobilização, ou seja, como se colocam as pessoas para fazer alguma coisa – que, no caso da Rússia, significa combater os vizinhos. Putin está tentando transformar, de maneira desesperada, os territórios que nem sequer ele controla militarmente em território russo para dizer que os russos vão morrer pela pátria e não pela ocupação de um país.

 

Mas, quando falamos de trabalho, o trabalho também tem dinâmicas de mobilização. A grande transformação do trabalho aconteceu a partir da década de 1970 e cada vez mais o trabalho tende a ser mobilizado por fora da relação salarial. Então, em um país como o Brasil, economia emergente, mas não periférica, existem massas de pobres concentradas nas grandes metrópoles. Elas esperavam por um roteiro de integração e homogeneização prévia que transformasse, segundo as categorias marxistas tradicionais – mobilizadas por André Singer e citadas pelo Bernardo Ricupero –, o subproletariado em proletariado, e o exército industrial de reserva em um exército que fosse mobilizado em nome do desenvolvimento, como Putin está fazendo agora para tentar mandar na Ucrânia. Ele recruta jovens que andam por Moscou: eles passam a usar coletes, a carregar um fuzil e devem se organizar em uma massa homogênea em pelotões – se Moscou tivesse mais fábricas, seria mais fácil Putin organizar o exército.

 

Então, o roteiro do crescimento era para dizer que precisamos transformar todos esses pobres subproletariados em proletários e os proletários em operários e os operários, por sua vez, alimentariam o ciclo progressista. Essa era a visão. Só que o capitalismo global coloca, hoje, esse tipo de trabalho na China – é a China a responsável pela deflação do salário brasileiro e não a massa interna –, como vimos durante a pandemia, com a produção de máscaras, aspiradores e insumos para a produção das vacinas.

 

Isso é assim porque o trabalho industrial, na China, continua a ser mobilizado de maneira assalariada e disciplinada pelo Partido Comunista Chinês. A China é um tipo de sociedade que tem um pacto entre crescimento e assalariamento generalizado. No Brasil, não é assim porque aqui a situação se tornou conflituosa a partir da experiência do sindicalismo, do PT e da Central Única dos Trabalhadores – CUT em São Paulo. Então, aqui, a dinâmica de mobilização do trabalho já passa por dinâmicas logísticas por fora da relação salarial e, portanto, há essa situação de brasilianização ou devir-Brasil. Quer dizer, os pobres se tornam produtivos e continuam a ser pobres. Essa é a questão porque tudo isso passa por fora da relação salarial, de modo a fragmentar sistematicamente as relações de trabalho. Essa é a nova base do capitalismo, chamada de plataforma, uberização, de capitalismo cognitivo.

 

Do ponto de vista da dinâmica do trabalho, os pobres não têm mais um roteiro de integração assalariada e, portanto, de exploração e, ao mesmo tempo, de conquista de direitos trabalhistas. Em geral, o trabalho é precarizado e os trabalhadores se tornam pobres, precarizados. É aqui que estamos: a brasilianização, quer dizer, a precariedade e a informalidade do trabalho no Brasil, não são mais fruto da urgência de modernização e progresso, mas vêm pelo progresso e se integra às pessoas, oferecendo telefone celular, crédito e, eventualmente, distribuição de renda, circulação e mobilidade nas metrópoles. Isso faz com que se crie uma situação de subproletariado ou exército industrial de reserva que, na realidade, não é nem subproletariado nem exército industrial de reserva, mas bacias de trabalho metropolitano totalmente integradas, conectadas e fragmentadas.

 

Essa fragmentação, às vezes, como aconteceu em junho de 2013, no Brasil, ou em 2019, no Chile, é capaz de se recompor a partir de questões fundamentais que não são salariais, mas são questões de mobilidade. Nos dois casos, no Brasil e no Chile, grandes movimentos apareceram a partir da questão da mobilidade.

 

 

Leia mais