A derrota de 7x1, o despertar do bufão da extrema-direita e a emergência da virada com afetos positivos. Entrevista especial com Paolo Demuru

Pelas lentes da sociossemiótica, professor analisa como o populismo de hoje se ergue através de ícones mobilizadores de afetos daqueles desgostosos com outra realidade mais horizontalizada

Foto: Reprodução | Redes Sociais

Por: João Vitor Santos | 23 Setembro 2022

 

“É aquele que tradicionalmente se preocupa em fazer os outros rirem, através de comportamentos, gestos, uso de linguagem extremamente desengonçado, tem uma carga de autenticidade que parece emergir de todas essas dimensões da comunicação”. A definição trazida pelo semioticista Paolo Demuru diz respeito ao clássico bufão. Mas poderia muito bem falar de um dos líderes populistas de extrema-direita que conhecemos no século XXI. Isso porque, através de análises baseadas na sociossemiótica, ele constitui esses líderes políticos que emergem em nosso tempo, e que atualizam as lógicas populistas via dinâmica das redes, no ícone do bufão. Afinal, o político populista sempre existiu, mas nem sempre se transvestiu em bufão. “Os líderes populistas contemporâneos são muito mais bufonescos que os antigos”, aponta, em entrevista concedida num bate-papo através da plataforma Teams.

 

Ao longo da entrevista, Demuru aprofunda esse conceito, aproximando das ideias de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, compreendendo esse sujeito bufonesco, e outros ícones que tais líderes também podem assumir, como produtos de significantes vazios. O caminho reflexivo é longo, mas o professor observa que os líderes populistas de extrema-direita conquistam o poder justamente negando a política. E mais: identificando muito bem as dinâmicas das redes sociais e catalisando uma espécie de rancor e decepção com o momento pós-crescimento econômico. “Houve um desprezo absoluto, inclusive pela classe intelectual que orientava a classe política da esquerda italiana, que fez com que se esquecessem quais eram as diretrizes midiáticas e o campo de jogo da disputa política. Acontece que Berlusconi sabia qual era o campo onde o jogo estava sendo disputado e os outros não”, alerta a partir do caso italiano.

 

No caso brasileiro, os movimentos são parecidos. Se tem uma elite enraizada no Brasil colonial que passa a se sentir prejudicada quanto a tal espírito de horizontalização, que mirava diminuir as desigualdades e que foi proposta por governos mais à esquerda, a situação segue ocorrendo mesmo sob ameaça de uma crise econômica. No entanto, Demuru propõe ir além e não buscar explicações só do campo histórico ou econômico. Ele chama atenção para o que denomina afetos negativos, aquele sentimento que é despertado quando as elites percebem que vão perder seu lugar na pirâmide social. E isso vinha ocorrendo desde que “aeroporto ficou parecido com rodoviária”.

 

Para o semioticista, a significância vazia desses líderes bufonescos acontece no instante em que afetos negativos são mobilizados, uma espécie de rancor que vem sendo alimentado desde o início dos anos 2000. Porém, no Brasil, explode com a derrota da Seleção brasileira de futebol por 7x1. “Vejo que aquele 7x1 foi tão traumático e tão não elaborado que aquelas paixões que o discurso sobre futebol no Brasil conseguiu até aquele momento, 2013-2014, sublimar, caem por terra”, aponta. Logo, “aquelas paixões não foram mais capazes de ser sublimadas no campo futebolístico e transbordaram para o campo do discurso político. E foi o discurso político que lhe deu vazão e uma nova forma”. O resultado é um vazio logo percebido pelo bufão que, com seu jeitão boquirroto e suposta autenticidade, surge como alguém que vai negar e mudar tudo isso. “Bolsonaro ocupou essa posição, caracterizada por uma falta de guia. E ele construiu essa liderança que daria ao Brasil uma nova maravilha, um novo esplendor, que faria o Brasil verde-amarelo vencer”, pontua.

 

A entrevista com o professor, há poucas semanas das eleições presidenciais no Brasil, provoca a refletir não apenas sobre como se dá a ascensão do conservadorismo de extrema-direita. Permite, ainda, pensar em como o campo progressista foi negando e incompreendendo fenômenos da sociedade do século XXI que geraram afetos negativos. “Precisamos de afetos positivos, afetos que possam substituir aqueles, negativos, que se tornaram dominantes hoje. Deveríamos nos propor a construir essa virada afetiva. Mas isso não significa ficar apenas em um discurso ‘paz e amor’, nem, pior ainda, fugir da disputa ou dar a outra face a tapa quando nos atacam. É preciso saber jogar com astúcia”, indica.

 

Paolo Demuru

Foto: Arquivo Pessoal



Paolo Demuru, italiano da Sardenha, é doutor em Semiótica pela Universidade de Bologna e em Semiótica e Linguística Geral pela Universidade de São Paulo – USP. É professor titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Midiática da Universidade Paulista e pesquisador do Centro de Pesquisas Sociossemióticas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. É autor do livro “Essere in gioco: calcio e cultura tra Brasile e Italia” (Bononia University Press, 2014). Agora, juntamente com Yvana Fechine, está lançando “Um bufão no poder: ensaios sociossemióticos” (Confraria do Vento, 2022).

 

A entrevista foi originalmente publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos - IHU, 21-09-2022.

 

Confira a entrevista.

 

IHU – Quem são os “bufões da política”? Como essa figura ilustra a ascensão de líder populistas e de extrema-direita?

 

Paolo Demuru – A figura dos bufões na política não é nova, não é algo tão recente na história da comunicação política, mesmo do século XX. Houve muitos bufões na política e podemos pensar em alguns exemplos históricos, como Jean-Marie Le Pen e Coluche, na França, mas, além dos nomes, é importante destacar que o traço distintivo principal que caracteriza os bufões, tanto os antigos quanto os novos, é a negação ética e estética da política tradicionalmente entendida, aquela, por assim dizer, de “terno e gravata”.

 

 

São figuras que estiveram quase sempre à margem da cena política, e graças a esse estilo se tornaram mais centrais, capturando mais a atenção. E, para isso, quebram os protocolos da política tradicional com diversos recursos semióticos, por exemplo, com a linguagem verbal, a linguagem corporal e outros. Aliás, esse de fato é nosso foco, em nosso livro intitulado “Um bufão no poder: ensaios sociossemióticos”. Nele, analisamos justamente o papel da linguagem e do discurso na construção dessas figuras.

 

Um bufão no poder: ensaios sociossemióticos (Confraria do Vento, 2022), de Demuru em parceria com professora Yvana Fechine.

A obra pode ser baixada gratuitamente aqui

Imagem: divulgação

 

Pensando em outros exemplos, no caso da política italiana houve o Silvio Berlusconi, que foi, talvez, um dos pais do populismo midiático contemporâneo porque soube se aproveitar muito bem do cenário televisivo de seu tempo. Era, inclusive, dono de um grande império de TVs.

 

 

IHU – Podemos pensar o bufão na política como um sujeito que quebra a liturgia do cargo?

 

Paolo Demuru – Absolutamente, o ponto principal é esse. Há diversos modos de quebrar essa liturgia, há outros papéis, como o de homem comum (do qual podemos discutir melhor adiante), que também fazem essa quebra de protocolo, da liturgia política contemporânea assim como a entendemos, ou assim como fomos acostumados a percebê-la. Ora, espera-se, normalmente, que um político se vista de uma determinada maneira, que tenha uma linguagem corporal e não outra, ou seja, que aja conforme todo imaginário que vem à nossa cabeça quando pensamos num político e num sujeito midiático. E os bufões quebram exatamente essas lógicas.

 

Os bufões, mais do que os homens comuns, quebram essas liturgias de uma maneira muito explícita e direta. Um exemplo muito recente é um chefe de Estado como Jair Bolsonaro gritar “imbrochável!” no meio das comemorações do 7 de Setembro. Essa é uma maneira de quebrar qualquer protocolo que se espera de uma ocasião como essa através da linguagem. Na linguagem verbal, percebe-se um ponto muito claro e até recorrente em diversos políticos. Além do episódio do grito “imbrochável!”, Bolsonaro também ficou conhecido pelas diversas afirmações um pouco escabrosas, como a ocasião do “golden shower” [o presidente compartilhou um vídeo em que homossexuais, numa prática sexual, urinavam sobre si], piadas completamente fora de lugar, uso de palavrões, tons altos, etc.

 

 

A linguagem verbal é uma forma, a linguagem corporal é outra. Lembro de um caso que ficou conhecido, ainda não tinha internet, mas a TV captou. Em 2002, na ocasião de um encontro entre os ministros das relações exteriores da União Europeia, na Espanha, Berlusconi fez o sinal de chifres com os dedos da mão. Esse é um gesto que quebra também a liturgia que se espera de um encontro institucional solene, com vários ministros e chefes de Estado.

 

Na ocasião, durante foto oficial com chefes de Estado, Berlusconi “brinca colocando chifres” no ombro de uma das autoridades| Foto: Reproducao_La Terra dei cachi

 

Outra forma de marcar esse discurso é vestir camisetas de times de futebol, como Bolsonaro faz também, assim como Matteo Salvini e tantos outros fazem. Esses recursos que engendram diversas linguagens, como a verbal, corporal e de vestimenta pode se dar inclusive sobre os objetos, como no caso da caneta Bic.

 

 

Boris Johnson também é outro grande e rente bufão da política, apesar de oscilar um pouco mais. Mas realmente ele ficou conhecido, desde que era prefeito de Londres, como um grande bufão. Por exemplo, desceu de tirolesa preso pelas costas e com um capacete. Essas são formas que mobilizam linguagens diversas para quebrar essas liturgias da política contemporânea.

 

 

É como dizia um de nossos autores de referência, que é um dos pais da sociossemiótica e que fez o prefácio de nosso livro, Eric Landowski: “Os bufões são, em certo sentido, quase que como os punks da política”. Ou seja, quebrando toda essa liturgia, eles agem quase que como se não devessem nada a ninguém. E isso pega porque convence de sua suposta autenticidade. E é importante que fique claro: a autenticidade se constrói de várias formas, através de vários recursos de linguagem e discursos, e com intensidades diversas. No caso do bufão, trata-se de uma autenticidade que “irrompe”.

 

Para Eric Landowski, os bufões são como os punks na política | Foto: Flickr CC

 

O bufão, então, é uma figura que irrompe na cena e, como se diz em português coloquial, “bota para quebrar”. Mas, o que se reforça sempre é o caráter antipolítico de seus gestos e identidade. Nesse sentido, os bufões são os antipolíticos por excelência. O fato curioso é que vivemos uma época em que os bufões da política chegaram e estão no poder. Surge, então, uma pergunta, à qual procuramos responder no livro: uma vez que chega ao poder, como o bufão consegue ser ao mesmo tempo um bufão e um presidente? Como se mantém vivo esse paradoxo?

 

IHU – Aqui no sul do Brasil, usamos a expressão boquirroto. Seria essa a figura do bufão? E por que vocês buscam na figura do bufão uma metáfora para esses políticos populistas de extrema-direita? Veja, percebe-se vocês usam outra figura como o bobo da corte, por exemplo.

 

Paolo Demuru – Interessante essa expressão “boquirroto”, como você coloca. Mas o bufão é exatamente aquele que tradicionalmente se preocupa em fazer os outros rirem, através de comportamentos, gestos, uso de linguagem extremamente desengonçado. O bufão tem uma carga de autenticidade que parece emergir de todas essas dimensões da comunicação.

 

Você citou o bobo da corte, e o próprio Lula falou de Bolsonaro enquanto um bobo da corte, mas o bufão é um pouco mais do que isso. É essa figura clássica, quase arquetípica, que não deve nada a ninguém e age e se expressa de um jeito dessacralizante. O bufão é aquele que quebra o sacro, quebra as liturgias, e ocupa o cenário da comunicação política para subverter suas estruturas e códigos sedimentados.

 

 

IHU – O senhor falou que o bufão se vale de uma ideia de autenticidade. Essa ideia pode também ser lida como uma concepção de liberdade? E em que medida essa liberdade pode explicar a quebra que faz da harmonia entre os poderes institucionais, pensado especificamente no caso brasileiro?

 

Paolo Demuru – Sim, exatamente isso. É um jogo muito complicado e, às vezes, perverso porque se liga a outra característica típica do populismo contemporâneo de extrema-direita, que é a ambiguidade, a vagueza, o “desmentir-se” constantemente. Nada vale, tudo pode ser possível dentro do universo comunicativo de um líder da extrema-direita. Ele pode dizer uma coisa agora e pode dizer exatamente o contrário daqui a duas horas.

 

Isso tem a ver com uma certa quebra de limites institucionais do bufão porque, inclusive, pode ser acionado para dizer que aquela quebra, aquela ultrapassagem desses limites, como os ataques violentos ao Supremo Tribunal Federal, não tem muita importância porque “estava brincando”. Ele diz “não é exatamente isso, vocês exageraram”.

 

 

É exatamente o que Bolsonaro disse outro dia na entrevista ao Jornal Nacional, da Rede Globo. Questionaram ele por ter falado que se viraria jacaré quando tomasse a vacina contra a Covid-19 e ele se defendeu alegando que era uma figura de linguagem; me parece que até disse “uma figura da literatura brasileira”. Quando tudo pode ser reduzido a uma figura de linguagem, tudo pode ser lido no sentido figurado, então tudo vale. Até a quebra desses limites se torna mais aceitável, porque as pessoas podem olhar e dizer: “Ah, mas ele é assim, ele é autêntico, estava brincando”.

 

A grande questão da comunicação bufonesca reside exatamente aqui. Lembremos do quanto Trump fomentou o ataque ao congresso americano em 6 de janeiro de 2021, quase como se fosse um jogo, uma encenação, uma performance teatral. Existem umas dimensões lúdicas e “encantadoras” do extremismo de direta contemporânea que é preciso considerar, e que os bufões da política alimentam com suas declarações e com esse trânsito perpétuo entre ficção e realidade, embora, diante do fato violento consumado, neguem qualquer responsabilidade ou envolvimento. Eles oscilam entre esses pontos estratégicos, recursos retóricos, podendo ocupar posições que são extremamente contraditórias, dizendo coisas como: “Ah, vocês não me entenderam. Não era para fazer isso, era só uma brincadeira”. Assim, estão sempre certos.

 

 

IHU – É como se agissem e, ao mesmo tempo, se eximissem e, ainda, fossem absolvidos. Correto?

 

Paolo Demuru – Exato. É como se o bufão dissesse: “Estou fazendo essa quebra agora, mas dentro do meu quadro, de minha proposta tanto política quanto comunicativa (as duas coisas são incindíveis claramente) eu estou certo, estou seguindo meu caminho, os eleitores sabem que não estou mentindo, eu sou assim, autêntico”. Bolsonaro até falou outro dia numa rede social, respondendo ao ataque à jornalista Vera Magalhães no debate da Bandeirantes: “Eu sou assim, eu falo desse jeito”. Ele sempre se justifica dessa maneira, trazendo à tona sua suposta autenticidade e esse seu ímpeto que o faz parecer verdadeiro.

 

 

IHU – Vocês analisam a política através do bufão, mas usam como instrumento a sociossemiótica. No que consiste essa sociossemiótica e como, a partir dela, é possível ler a conjuntura atual?

 

Paolo Demuru – Acho que a semiótica sempre foi uma sociossemiótica. A questão do prefixo “sócio” surge, na década de 1970, para marcar um posicionamento de campo em relação às outras pesquisas que estavam se desenvolvendo dentro da esfera dos estudos semióticos, que se ocupavam mais de analisar as estruturas internas aos textos literários, por exemplo, ou cinematográficos. Enquanto a sociossemiótica focava mais na relação entre os discursos e as linguagens que circulam dentro de uma determinada comunidade político-social, e sobre as interações entre os sujeitos que a compõem.

 

O que a sociossemiótica mobiliza são alguns instrumentos da semiótica originária, de origem francesa de inspiração em Algirdas Julius Greimas, que são aos poucos desdobrados para trazer, para dentro da teoria, coisas que Greimas não havia aprofundado naqueles anos. É o caso, por exemplo, da dimensão sensível, emocional, passional e emotiva do discurso e dos processos de interação e comunicação.

 

O linguista francês Greimas (1917-1992) é um dos autores que inspiram a sociossemiótica

Foto: greimas.com

 

O que a sociossemiótica faz e que a semiótica também sempre fez é se preocupar com os processos de produção de sentido. Ou seja, como nós, enquanto seres humanos, atribuímos sentido ao mundo. E, antes de tudo, tanto a sociossemótica como a semiótica clássica são “teorias da relação”. Quando dou um curso básico de semiótica, uma das primeiras coisas que gostaria que todos aprendessem é como colocar elementos em relação. E esses elementos que você pode colocar em relação podem ser diversos. O objetivo é colocá-los assim para ver como podem criam sentido.

 

Por trás de qualquer sentido, ou mesmo de qualquer identidade, há sempre uma relação. Por exemplo, só podemos entender o bufão e o papel dele na cena política contemporânea se o correlacionarmos ao que é entendido como o político tradicional. Sem esse tipo de oposição, que é puramente semiótica, porque estamos falando de processos de produção de sentido, não poderíamos compreender tão a fundo qual o papel e o espírito do bufão enquanto figura clássica do purismo digital do século XXI.

 

Expressões e conteúdo

 

O que fazemos, também, é colocar sempre em relação expressões e conteúdos. Quando digo expressões, me refiro a elementos que são concretamente manifestos, visíveis, perceptíveis com os nossos sentidos. Por exemplo, só consigo entender o sentido do bufão porque ele produz determinadas expressões que fazem referências ou mobilizam a linguagem corporal, às quais são associados, dentro de um dado universo sociocultural, conteúdos precisos. É o caso do gesto de fazer chifres com os dedos da mão de Berlusconi que falei antes, ou ainda o vestir uma camisa falsa do Palmeiras em uma reunião oficial, como faz Bolsonaro, que substanciam um conteúdo de autenticidade. Diria que, enquanto semioticistas, mas também como seres humanos, estamos sempre produzindo e observando relações entre expressões e conteúdos.

 

Além disso, a sociossemiótica contemporânea se ocupa com – e aborda os – diferentes regimes de interação que estão mobilizados e sobre os quais se inscreve o processo de comunicação entre os sujeitos sociais, sejam eles indivíduos, sejam grupos, regimes que têm lógicas diversas, como a manipulação, a programação ou o ajustamento, que chama mais em causa a dimensão sensível da interação entre sujeitos.

 

IHU – Podemos pensar em uma carga sociológica maior nessa perspectiva de semiótica?

 

Paolo Demuru – Sim, estamos falando de relações que são de caráter social e, claro, cultural. Por exemplo, podemos pensar um modelo de cultura nacional – a despeito de o conceito de cultura ser algo extremamente complicado – que é estereotipado. No meu doutorado, estudei como se construiu, ao longo do século XX, o estereótipo do caráter nacional brasileiro, o da malandragem, do jeitinho, e o comparei com a chamada “arte di arrangiarsi” italiana, que é, literalmente, a “arte de se virar”, uma espécie de jeitinho que também desde o começo do século XX, na Itália, surge como traço distintivo do caráter nacional.

 

Tese de doutorado de Demuru deu origem ao livro “Essere in gioco: calcio e cultura tra Brasile e Italia” (Bononia University Press, 2014),

“Esteja no jogo: futebol e cultura entre Brasil e Itália”, em tradução livre

Imagem: divulgação

 

 

E fiz isso através de uma visada semiótica, mostrando como esse discurso criou uma realidade que não existia e a fez ser percebida como natural, pois os estereótipos fazem perceber algo como natural quando, na verdade, é sempre fruto de um processo de construção discursiva. Percebi que isso era feito aos poucos através da correlação de diferentes discursos como os discursos sobre futebol no Brasil e também na Itália, que foi um elemento crucial. Mas, também, houve o discurso cinematográfico, o discurso jornalístico e até as próprias ciências humanas e sociais, como a obra de Gilberto Freyre no Brasil.

 

 

“Rede-socialismo”

 

Na questão política contemporânea, podemos considerar – e essa é uma das questões que mais nos interessam – também o populismo digital enquanto resultado de uma específica linguagem e de específicas práticas discursivas. Essa é uma tese que eu estou desenvolvendo junto com Franciscu Sedda, professor da Universidade de Cagliari, na Sardenha, que aborda a atual comunicação populista como uma consequência direta da linguagem e das práticas discursivas das redes sociais. Até mesmo brincamos com um termo que, em português, costumo traduzir como “rede-socialismo”, porque o populismo contemporâneo é uma exasperação, isto é, um “ismo”, da linguagem das redes sociais.

 

 

IHU – No que esse populismo do século XXI, seja à esquerda, seja à direita e extrema-direita, se difere dos populismos do passado?

 

Paolo Demuru – Isso é um debate muito em pauta hoje. Creio que o populismo digital contemporâneo, principalmente o da extrema-direita, e aqui se trata de uma questão de conjuntura porque o que avançou de fato foi o populismo de direita, guarda algumas táticas dos populismos originários. É o caso, por exemplo, da liderança carismática. Acho que esse é o traço que todos os estudiosos, principalmente da ciência política e sociais, tendem a evidenciar.

 

O papel e a efetivação de uma figura carismática, como foi [Juan Domingo] Perón [ex-presidente da Argentina], [Getúlio] Vargas e até o Lula (que ainda segue sendo), Bolsonaro e o próprio Mussolini, tem uma grande divisão que é sempre a oposição de fundo destacada por todos os estudiosos. Trata-se da oposição entre o povo e as elites. Isso se mantém, e há muitos estudos que buscam articular essas convergências entre os populismos históricos, principalmente na América Latina, e os contemporâneos.

 

Agora, do ponto de vista sociossemiótico, destaco, além dessas questões estruturais relativas ao funcionamento global da narrativa populista, alguns elementos que dizem mais respeito à linguagem. Por exemplo, a insistência (que é também um traço comum com os populismos originários) no uso, como dizia Ernesto Laclau, de “significantes vazios”, como as palavras “povo”, elites, sistema, etc. Isso já existia nas épocas de Perón, Vargas e do fascismo italiano. Por isso, o que me interessa, mais do que as definições em si, são essas pontes.

 

 

Quando falamos em povo, por exemplo, esse conceito pode assumir diversas conotações, inclusive segundo o contexto no qual você enuncia a palavra. E dentro de “povo” pode caber tudo e qualquer coisa. A questão é como você define, preenche e articula o significante “povo”.

 

Dentro do campo da extrema-direita, tende-se a deixar essa definição da forma mais ambígua possível. Enquanto do lado das esquerdas há um processo de articulação mais clara, dentro da categoria geral de “povo”, de demandas e sujeitos diversos que não perdem sua identidade. É o que está sendo feito no campo da esquerda brasileira, por figuras como Guilherme Boulos, cujo discurso tenta juntar, numa única cadeia discursiva, as demandas dos trabalhadores sem-teto, da comunidade LGBTQI, as questões raciais, etc., inserindo-as dentro de um universo narrativo global que constrói o “povo” como uma rede, uma trama de conexões entre partes diversas que, com suas identidades específicas que se articulam-se entre si, dão um sentido outro à totalidade que as engloba.

 

 

Agora, quais são as outras coisas que diferem entre os populismos antigos e contemporâneos? Trouxemos, já no começo de nossa conversa e até aqui, um traço que é bastante diferente nos populismos clássicos, que é o uso mais explícito do estilo do bufão. Os líderes populistas contemporâneos são muito mais bufonescos que os antigos, usam muito mais o turpilóquio, ou o boquirroto como falamos. Os líderes populistas mais antigos podiam até quebrar essas liturgias em determinados momentos, mas essa não era a dominante. Você não via Vargas de chinelos e moletom. Poderia até ver, mas de vez em quando.

 

No seu período de exílio, entre seus governos, Vargas era fotografado na fazenda Itu, em São Borja, no Rio Grande do Sul, em cenas cotidianas. Para Demuru, um recuso usado com muito menos frequência por líderes populistas do passado

Foto: Pedro Flores (1950) | Acervo Unicamp

 

Isso hoje se dá com mais frequência, e principalmente por causa do ambiente midiático onde acontece o debate político: as redes sociais digitais, cujo traço dominante é a exposição da vida íntima e cotidiana das pessoas. As redes obrigaram os políticos a se mostrarem em sua “nudez”, escancarando, nem mais, nem menos, as suas intimidades, buscando uma conexão direta com o público. Bem entendido, isso era também um traço dos populismos do século XX e de sua relação com a mídia da época. Pensemos, por exemplo, em como estes usaram o rádio para construir um vínculo íntimo com o “povo”. Mas este é um traço que retorna hoje de modo mais forte, atualizando-se de maneira mais efetiva e evidente.

 

 

Uma coisa que também analisei bastante é como a comida é retratada hoje, e esse é um traço típico das redes sociais: aliás, há movimentos que dizem respeito a questões estéticas ou de como fotografar um determinado prato. Os políticos populistas, então, também vão atrás desses recursos que são parte das práticas discursivas das redes sociais e, assim, reatualizam certos traços como a intimidade, a autenticidade e trazem alguns novos traços como mais marcantes, bem como no caso da comunicação bufonesca.

 

Durante a campanha presidencial, a imagem de Bolsonaro com camiseta de time de futebol e comendo pão com leite condensado foi muito comentada Foto: reprodução Twitter

 

IHU – Como o bufão, o homem comum e o messias são evocados nas construções das relações entre líderes populistas do século XXI e seus apoiadores?

 

Paolo Demuru – Primeiramente, é importante dizer que essas categorizações são fruto de uma perspectiva propriamente semiótica, porque são papéis e posições que podem ser ocupadas dependendo do contexto político em que o líder político se encontra. E elas podem ser acionadas em momentos diversos e de maneiras diversas para suprir e dar voz a demandas diferentes. Isso é interessante porque traz à tona outra peculiaridade do ponto de vista semiótico, um ponto de vista pelo qual toda identidade – seja a de uma palavra, seja a de um sujeito – é sempre topológica e relacional. Ou seja, toda identidade definida a partir da posição de que o sujeito ou quaisquer outro elemento linguístico ou semiótico ocupa em determinado contexto – me refiro, claro, ao contexto sócio-histórico, mas também a contextos menores, como um debate na Globo ou uma live do Facebook – e das relações que ele tece com os outros atores que ocupam aquele espaço naquele momento. Nada é fixo, as identidades variam e são muitas as posições que podem ser mobilizadas, ocupadas dentro de um quadro.

 

Feita essa premissa, observamos que dentro do quadro da comunicação populista contemporânea não há apenas a figura do bufão. Há diversas outras figuras que são usadas para negar a política. Ora, partirmos do pressuposto que há um tema principal que domina o debate público contemporâneo, que é a da negação da política. Claro, no Brasil, assim como em tantos outros lugares, deve-se a uma questão de conjuntura, basta pensarmos no percurso que leva das Jornadas de Junho de 2013 ao impeachment de Dilma, com o avanço da Lava Jato, à prisão de Lula e à explosão de Bolsonaro. Mas, por outro lado, essa negação da política é feita também num nível mais micro, com recursos mais finos, que reforçam os movimentos aos quais assistimos no plano macro.

 

 

O homem comum

 

Nesse plano, há formas de negar a política mais ou menos fortes. Dizíamos que o bufão é uma figura que nega a política de uma maneira extremamente clara e nítida. Fica claro, ele quer isso e é seu propósito quebrar as liturgias e os protocolos estéticos e éticos da política contemporânea com seu fazer disruptivo. Agora, no caso do homem comum – e voltamos aqui às manifestações concretas, as expressões através das quais depreendemos os conteúdos da política –, se olharmos as diversas fotos postadas por Bolsonaro, Salvini, Marine Le Pen, entre outros, veremos que são fotos que retratavam esses líderes no seu cotidiano, que fazem com que quem esteja do outro lado da tela os observe dentro de suas residências deitados no sofá, de pijama, às vezes até de roupas íntimas, na praia, de sunga, tomando café da manhã com a cara completamente amassada de sono.

 

Durante suas campanhas à presidência da França, Marine Le Pen ‘viralizava’ com suas fotos de cotidiano, com um jantar informal com amigos 

Foto: reprodução Twitter

 

É o caso de Bolsonaro no hospital, pois fez uma exposição muito forte relativa à intimidade de seu corpo nas diversas vezes em que foi internado. Tudo isso cria um efeito e sentido de autenticidade. Uma autenticidade, no entanto, que é um pouco diferente daquele do bufão, principalmente em termos de intensidade. É um mecanismo de negação da política que parece dizer ao eleitorado: “Veja, não sou um político. Sou como você”. Mas o homem comum não é um bufão, ou não ainda.

 

Nas suas internações, Bolsonaro expunha sua imagem de ‘homem comum’, aquele convalescente diante de uma doença 

Foto: reprodução Instagram de Eduardo Bolsonaro

 

Assim, a representação do homem comum remete ao sujeito simples, autêntico, que se preocupa com o churrasco familiar do domingo ou, no caso da Itália de Salvini e Giorgia Meloni, come massa, faz a massa, cozinha em casa, faz uma carne à milanesa para os filhos. E o que posso acrescentar, do ponto de vista semiótico, não é apenas o que está ali figurativizado na foto, mas também o modo como a foto é feita, sua estética. Veja que essas fotos, muitas vezes, utilizam recursos para que elas pareçam simplórias. Salvini, por exemplo, usa o recurso da diagonal.

 

É um recurso que Lev Manovich, por exemplo, que estuda a foto na internet, reconheceu como um dos traços principais da fotografia postada no Instagram pela grande maioria dos usuários. Ou seja, Salvini posta fotos com ângulos diagonais, como todo mundo posta, posta foto desfocados, uma selfie meio pixelada, pois é assim que as pessoas postam, numa estética que foi frequentes vezes definida como “tosca”. Mas eu não gosto desse termo porque evidencia um aspecto que me faz pensar que, de novo, estamos mal interpretando esse fenômeno. Primeiro porque os populistas digitais sabem muito bem o que estão fazendo. Segundo porque a palavra “tosco” tem uma carga moral que, enquanto pesquisador e também como pessoa, não gosto de utilizar porque possui uma carga elevada de suprematismo: parece que, ao tachar Bolsonaro ou Salvni de toscos, estamos dizendo que todas as pessoas que postam fotos assim são toscas.

 

 

O messias

 

O papel do messias foi mobilizado por duas figuras em particular: Trump e Bolsonaro. Não por acaso Bolsonaro guarda muitas relações com o Trump. Outros líderes, inclusive Salvini, não mobilizam a religião tanto quanto esses dois. Ou seja, é uma imagem que é acionada para cativar o eleitorado religioso, evangélico, nos casos brasileiro e norte-americano, e para, antes de tudo, os líderes populistas se construírem como os únicos sujeitos capazes de:

 

1) enxergar o caos apocalíptico que estaria prestes a acabar com suas respectivas nações

 

2) enfrentar essa crise e esse caos.

 

O caos, portanto, é uma premissa de sua construção como messias. Nesse sentido, o discurso do populismo contemporâneo guarda muitas semelhanças com aquele do milenarismo neopentecostal. Os teólogos e estudiosos da história das religiões sabem muito bem que todo milenarismo vem com a ideia de um apocalipse, do fim dos tempos e que só o messias que virá e conseguirá resolver.

 

Assim, segundo essa perspectiva, temos que passar por uma época de caos, de apocalipse. E é muito curioso porque esses líderes que se dizem messias precisam, antes de qualquer coisa, criarem esse caos. São, assim, eles mesmos os primeiro grandes criadores do caos diante do qual emergem como verdadeiros messias e salvadores da pátria.

 

Esse deslocamento entre um papel e o outro – bufão, messias, homem comum – é um problema extremamente sociossemiótico, pois estamos verificando quais são as relações que estão em jogo em um dado momento e contexto e como essas relações produzem sentido. O Bolsonaro não é um Bolsonaro, na verdade, são vários Bolsonaros. É claro que ele tem traços dominantes, mas o que tentamos mostrar no livro é que, inclusive, em alguns casos, ele oscila entre papéis e posições diversas, podendo até ocupar em alguns casos – poucos – a figura do político de profissão.

 

E, ainda, o valente e viril militar

 

Interessante também pensar que outra forma de Bolsonaro negar a política, além do bufão, do homem comum e do messias, é aquela do militar. Pensemos em toda a conjuntura brasileira, 2013, impeachment, Lava Jato, Lula preso, antipetismo galopante, etc. Com tudo isso, constrói-se a ideia de que precisamos dos militares para botar ordem nesse caos.

 

Outro traço distintivo clássico do populismo é a virilidade – lembremos do “imbrochável” pronunciado em 7 de Setembro de 2022 –, que permite a Bolsonaro se situar dentro do atual contexto como um grande messias salvador da pátria. No entanto, como se trata de um fato amplamente discutido, me limito a ressaltar um aspecto menos óbvio, que podemos enxergar graças à análise sociossemiótica: o fato de que a figura do messias salvador da pátria bebe, sim, nas fontes do discurso religioso neopentecostal, mas também daquele da cultura pop, especialmente no caso de Trump, que muitas vezes se definiu tanto como o rei dos judeus, ou seja, messias, Jesus Cristo, quanto como Superman e Batman.

 

 Nas redes sociais, há dezenas de memes que comparam Trump aos super-heróis, inclusive usando a identidade visual de muitos veículos de comunicação tradicionais
Foto: reprodução redes sociais

 

Isso é muito importante, pois essas manifestações dão outras nuances. O substantivo “mito”, por exemplo, usado para referir de Bolsonaro, remete também, ao mesmo tempo, à cultura popular, ao universo da cultura memética e à lógica discursiva da lacração, típica das redes sociais. Veja que quando se comentam suas falas, lives e postagens, muitos repetem “mito!”

 

IHU – Por que, ao que parece, o populismo de direita e de extrema-direita melhor dominam essa cartilha desse discurso contemporâneo?

 

Paolo Demuru – Essa é sempre uma questão trazida à tona por diversos pesquisadores, mas, de novo, quero distinguir nosso ponto de vista que é o da sociossemiótica enquanto disciplina que observa as relações que estão por trás dos processos de produção de sentido. Vamos então a um pequeno discurso histórico que parte da Itália, mas que diz respeito também a outros países. Acontece que a Itália sempre foi um grande laboratório dos movimentos populistas, principalmente aqueles do final do século XX. Sem considerar o fascismo e nos situando apenas em tempos mais recentes, podemos ler a chegada ao poder de Berlusconi em uma chave que talvez ajude a iluminar melhor o que você afirma. Ora, diante da escalada de Berlusconi, a maior parte da esquerda italiana menosprezou, julgando-as chulas e vulgares, suas estratégias comunicativas, não compreendendo a lógica das linguagens e os cenários midiáticos daquele momento histórico.

 

Pelo fato de ser dono de um império de telecomunicação, Berlusconi dominava a fundo as técnicas e os discursos da comunicação televisiva. E soube usar a TV como ninguém antes no panorama italiano. A esquerda, até por uma certa arrogância, ficou para trás. Era como se dissesse: “Não vamos considerar isso, fazer muita propaganda na TV porque o povo não está ali, está nas fábricas, nas ruas, etc.” Tudo bem, o povo estava na rua e nas fábricas, mas como disse uma vez um massmediólogo italiano, Alberto Abruzzese: a esquerda não havia entendido que, nos anos do Berlusconi, no final dos anos noventa e início de 2000, o povo estava sobretudo diante da TV, assistindo Big Brother. A esquerda e a comunicação da esquerda não entenderam isso e por isso que Berlusconi ganhou.

 

Para Alberto Abruzzese, sociólogo das mídias, enquanto a esquerda italiana insistia que as pessoas estavam nas fábricas, na verdade elas já estavam em casa absorvidos pela produção midiática em programas como Big Brother

Foto: IULM

 

Ou seja, houve um desprezo absoluto, inclusive pela classe intelectual que orientava a classe política da esquerda italiana, que fez com que se esquecessem quais eram as diretrizes midiáticas e o campo de jogo da disputa política. Acontece que Berlusconi sabia qual era o campo onde o jogo estava sendo disputado e os outros não. Isso aconteceu também na eleição de Bolsonaro e na eleição de Trump. Ok, tem aquela velha história de que Obama foi o primeiro a usar Twitter e perceber a importância das redes, tivemos diversos trabalhos sobre o papel das redes sociais e alguns sempre partem de Obama. Mas era outro contexto. Assim como a esquerda italiana e, também, a europeia não entendeu muito bem o papel da televisão na década de 1990, acho que a esquerda internacional, e aquilo coloco a brasileira, não entendeu absolutamente qual era o campo de jogo da contenda política recente: as redes sociais.

 

 

Não necessariamente jogar o jogo, mas o conhecer

 

E, claro, sabemos que o jogo foi desleal, com disparos ilegais de mensagens no WhatsApp, etc. Mas a esquerda deixou de disputar essa partida, não entendeu que o campo da disputa política eram as redes e, depois, quando começou a enxergá-las, não entendeu quais eram, nem como usar as práticas discursivas e as linguagens dominantes delas.

 

Bem entendido, não estou dizendo que a esquerda deveria fazer tudo que a extrema-direita fez e faz na internet, mas que deveria ter entendido, antes de mais nada, que elas eram o campo de jogo da disputa política.

 

 

Acho que agora, em 2022, alguma coisa se mexeu nesse sentido. Há indícios, na campanha do Lula, e não só, de que a oposição a Bolsonaro sabe jogar melhor esse jogo. Vemos a mobilização muito mais intensa de figuras da cultura popular digital brasileira, da cultura da internet. Todo mundo está atrás de influenciadores, por exemplo, mas não é só sobre quem tem o apoio de mais influenciadores. Claro que eles dão acesso a bolhas que normalmente não atingem, mas é também crucial entender que é preciso saber usar, de modo geral, a linguagem e os discursos das redes. E, de novo, não se trata de repetir o que Bolsonaro faz, especialmente no que tange aos tons emocionais de suas campanhas on-line, sempre extremamente violentos e agressivos. Aliás, penso que a esquerda deveria conceber uma virada comunicacional-afetiva. Essa é a tese de Landowski, mas também de outros autores e autoras, como Chantal Mouffe que, em seu livro recente “Por um populismo de esquerda”, coloca que a batalha pelo campo da política se joga também no campo dos afetos.

 

Obra de Chantal Mouffe, “Por um populismo de esquerda”, em edição em português publicada em 2020

Foto: divulgação

 

A pergunta pertinente, portanto, é: que tipos de afetos você contrapõe à espiral de ódio, de provocações raivosas que dominaram e que são parte da lógica da internet?

 

IHU – Mesmo diante de rompantes que atravessam a linha do absurdo, como quando ataca mulheres ou como quando ironizava mortes durante os piores momentos da pandemia no Brasil, há apoiadores, pessoas comuns, que defendem tais posturas de Jair Bolsonaro. O que isso revela sobre a história do próprio Brasil, sobre uma elite nacional e a ideia de poder?

 

Paolo Demuru – Há diversos estudos publicados recentemente que abordam essa questão do ponto de vista histórico-político e social e, por isso, quero ressaltar aqui, mais uma vez, uma perspectiva mais propriamente sociossemiótica, que busca dialogar com essas pesquisas. Veja, por exemplo, que a questão das elites brasileiras foi tratada por muitos autores, como Marcos Nobre, Jessé de Souza, Angela Alonso, entre muitos outros. Esses apontaram que havia a necessidade, por parte das elites, de retomar o lugar de privilégio que tinha sido perdido como a chegada do PT ao poder. Mas o que me parece interessante é observar o que foi mobilizado nesse processo do ponto de vista semiótico.

 

Nesse sentido, e buscando responder à pergunta que você me fez a partir de um ponto de vista sociossemiótico, a primeira questão que acho importante abordar é a mobilização de afetos e de paixões que foi capaz de dar um substrato emotivo a essa dinâmica de reafirmação de um privilégio de classe. Semioticamente falando, isso foi feito a partir do despertar de paixões como o ódio, a raiva, o ressentimento e o desgosto com relação às classes inferiores que tinham ascendido socialmente, usadas para reforçar o discurso de distinção de classe.

 

 

Discursos que afirmam realidades e despertam paixões

 

Sim. Vejamos um paralelo histórico. Quando estudei a construção dos estereótipos da cultura brasileira, me detive em particular na passagem do modelo do branqueamento ao modelo da mestiçagem nos séculos XIX e XX. Uma de minhas hipóteses era de que, diante da abolição da escravidão – que na prática não se deu tão rapidamente e criou todos os problemas que conhecemos –, tem-se, pela primeira vez, um discurso jurídico que diz que, ao menos teoricamente, todos são iguais perante a lei. Ora, os discursos são importantes porque moldam e criam a realidade, mas também porque são usados para construir e reconstruir relações de força e estruturas de poder, e esse é meu ponto de vista aqui. Não é um caso, nesse sentido, que, logo após daquele discurso que dizia que todos os brasileiros seriam iguais perante a lei, surgiu a teoria do branqueamento fundamentada em ciências médicas daquela época e também no campo dos cuidados, do bem-estar – e o futebol entra aí, como prática de elite do início do século XX, como uma prática de distinção – que fizeram com que aquelas hierarquias que tinham sido perdidas no campo do discurso jurídico tivessem uma reafirmação no campo de outros discursos.

 

Então, havia discursos médicos que diziam que os negros eram inferiores por natureza, que eram potencialmente perigosos – veja a teoria da frenologia de Lombroso. Isso tudo servia para recriar em outros discursos realidades e hierarquias que tinham sido perdidas. Ou, melhor, que as mutações no campo jurídico colocavam em risco. O que aconteceu recentemente é algo parecido. Ouvimos discursos que mobilizaram paixões através dos quais se disputou, mais uma vez, a luta pelo privilégio, pela hierarquia social. Então, aquelas hierarquias sociais que os governos do PT tinham achatado foram disputadas em outros lugares com sujeitos que viam seus privilégios debandando – lembremo-nos de que falaram dos aeroportos que pareciam rodoviárias.

 

E aí aconteceu uma coisa que tem a ver com a questão das paixões, que é a usurpação dos símbolos nacionais a partir de junho de 2013, primeiro pelo movimento pró-impeachment de Dilma e, depois, pelo Bolsonaro. E esses símbolos nacionais mobilizaram paixões, ufanismo e orgulho nacional e o ódio contra sujeitos que começaram a ser definidos como “não brasileiros”. Houve, assim, um movimento de criação de uma divisão narrativa entre brasileiros (os cidadãos de bem) e os não brasileiros (os cidadãos de mal), e nisso a grande mídia teve um papel central.

 

Por exemplo, teve uma vez que o jornal O Globo, nas primeiras manifestações para o impeachment, colocou como manchete: “Brasileiros descem a rua contra Dilma”. Quando as militâncias do PT foram para rua para apoiar o governo, o título foi: “Amigos de Dilma e Lula descem às ruas contra Moro”. Num caso era o Brasil e no outro os amigos de Dilma e Lula. Assim, temos essa apropriação dos símbolos nacionais por parte dessa elite, inclusive midiática, que mobilizou paixões contra sujeitos que foram taxados como os piores inimigos não apenas do campo da política, mas do Brasil, verdadeiros inimigos do Brasil, antibrasileiros.

 

Por isso, Bolsonaro teve sucesso, pois aqueles inimigos foram tingidos e descritos como inimigos do Brasil. Interessante a sacada que Lula teve outro dia ao dizer que “boa era a polarização entre PT e PSDB”, porque era outro tipo de polarização. Agora, as polarizações parecem fundadas em ódios sobre quem tem o direito de se dizer brasileiro e quem, do ponto de vista destes, não tem esse direito. E esse é um problema inteiramente semiótico, pois obriga a analisar através de quais estratégias discursivas se produz esse sentido de brasilidade e não brasilidade.

 

 

O 7x1 e a política nacional

 

Seguindo na análise histórico-semiótica deste processo, tem outro ponto que vale ressaltar: a Copa de 2014, quando o Brasil perdeu de 7x1 para a Alemanha. Vejo que aquele 7x1 foi tão traumático e tão não elaborado que – e essa é minha tese semiótico-psicanalítico-social – aquelas paixões que o discurso sobre futebol no Brasil conseguiu até aquele momento, 2013-2014, sublimar, caem por terra.

 

 

Sempre ouvimos dizer que a política se tornou um jogo de futebol, mas por que se tornou futebol? Porque aquelas paixões que não foram mais capazes de ser sublimadas no campo futebolístico transbordaram para o campo do discurso político. E foi o discurso político que lhe deu vazão e uma nova forma. Então, temos aquela rivalidade de torcidas, o Brasil x não Brasil. Parece que a mídia queria que o Brasil, que tinha perdido naquela copa, ganhasse uma outra partida. Por isso, também, que quem lutava contra a Dilma se tornou o Brasil e esse Brasil, com a apropriação dos símbolos nacionais, conseguiu também sublimar essas paixões que não tinham sido sublimadas na copa. Pelo contrário, eram paixões que, com aquele 7x1, tinham sido pisoteadas e precisavam de uma revanche.

 

 

IHU – Seria como se o 7x1 e a derrota na Copa fossem um “choque de realidade”, como se fizessem com que as pessoas se dessem conta que tudo ruiu, que a economia não ia bem e que nem mais no esporte nos destacávamos. É isso?

 

Paolo Demuru – Sim. Mas quero ir um pouco mais além e evidenciar que, quando ocorre um choque de realidade tão forte, as pessoas buscam novas fantasias. É um pouco como o que aconteceu com a pandemia, pois agora se busca também uma nova maravilha. Então, lá em 2014, esse choque de realidade foi tão forte que os sentimentos aos quais deu lugar não foram social e culturalmente elaborados, e foram jogados para debaixo do tapete. E, como tudo que se joga de baixo do tapete, uma hora explode. No caso brasileiros, explodiu no campo da política. Assim, esse campo – o campo da política – se constituiu como um campo no qual o Brasil poderia finalmente se resgatar, se vingar da humilhação sofrida na copa com o 7x1. Se no futebol o Brasil havia perdido, na política podia vencer, e vencer humilhando e maltratando o adversário, como foi feito pelos movimentos verde-amarelos que manifestaram pelo impeachment de Dilma e, depois, pelo bolsonarismo.

 

Se lembrarmos, nos anos do impeachment, teve um momento em que Tite se tornou técnico da seleção de futebol e começou a ganhar vários jogos. Nessa ocasião, houve até uma pesquisa e Tite apareceu com 15% das intenções de voto. Ali, a questão dos posicionamentos semióticos do contexto, dos papéis que os sujeitos podem ocupar, ficou muito clara.

 

 

Bolsonaro ocupou essa posição, caracterizada por uma falta de guia. E ele construiu essa liderança que daria ao Brasil uma nova maravilha, um novo esplendor, que faria o Brasil verde-amarelo vencer.

 

IHU – No livro “Um bufão no poder: ensaios sociossemióticos”, vocês falam no “partido da razão” e que ele deve derrotar o bufão. Mas essa derrota é tão clara assim? E que “partido” é esse?

 

Paolo Demuru – Quando falamos em partido da razão, estamos destacando o fim pedagógico de nossa desconstrução do discurso bolsonarista. Fazemos isso principalmente no último capítulo em que analisamos a retórica bolsonarista, apontando como ela mobiliza figuras retóricas clássicas, como o argumento de autoridade ou a generalização indevida, para produzir desinformação. O que estamos querendo dizer é que precisaríamos de mais competências de intepretação e análises de textos e discursos para recuperar um pouco da razão que os populistas de hoje ofuscaram.

 

O que prevalece na comunicação populista, como falamos, é um tipo de emotividade que é como uma onda – leva tudo consigo e ofusca a visão crítica. Veja essas mensagens que dizem, por exemplo, que o PT vai fechar igrejas. Mas o PT nunca fechou igrejas, por que vão fazer isso agora? Qual seria, aliás, o interesse do PT em fechar igrejas? É assim que se perde a razão e o pulso do real: através da mobilização de paixões negativas, como o medo, nesse caso. Por isso, é preciso ir em busca da razão através da construção de competências semióticas que ajudem a ler criticamente as supostas informações que recebemos em nossos celulares.

 

 

Cenário eleitoral

 

No entanto, pensando no cenário eleitoral, é difícil vencer uma eleição com a razão, pois a política é muito mais. Não basta fornecer instrumentos para que as pessoas enxerguem os absurdos diante dos quais nos deparamos e com os quais temos que lidar diariamente.

 

Inclusive, há uma crítica que muitos fizeram e que eu também faço: quem luta contra a desinformação tanto na academia quanto no jornalismo, como as agências de checagem, não parece atingir resultados de impacto com um discurso meramente racional. Acho que o projeto da razão é um projeto de longo prazo, que parte da educação básica. Trata-se, a meu ver, desde o ensino fundamental, de oferecer instrumentos para a interpretação de textos e discursos. É isso que está, por exemplo, no projeto da Unesco sobre alfabetização midiática.

 

 

Aliás, este projeto da Unesco vê a semiótica como uma das principais disciplinas que poderia ajudar na construção da alfabetização midiática. Assim, as pessoas poderiam perceber elementos de manipulação de discursos que podem ser usados para mentir. Umberto Eco dizia que a semiótica é aquela disciplina que estuda tudo aquilo que pode ser usado para mentir. É isso, precisamos de instrumentos que nos permitam perceber como alguém pode mentir para nós.

 

Entretanto, reitero que não é só com a razão que mudamos um cenário como esse dos dias atuais, dominado pelo avanço dos populismos de direita. A razão não move, ou move somente até certo ponto. Além do campo da razão, precisamos disputar o campo dos afetos.

 

IHU – O ideal seria mirar os afetos, mas sem perder a razão em perspectiva?

 

Paolo Demuru – Exatamente. Precisamos de afetos positivos, afetos que possam substituir aqueles, negativos, que se tornaram dominantes hoje. Deveríamos nos propor a construir essa virada afetiva. Mas isso não significa ficar apenas em um discurso “paz e amor”, nem, pior ainda, fugir da disputa ou dar a outra face a tapa quando nos atacam. É preciso saber jogar com astúcia. Por exemplo, quando Lula foi atacado por Bolsonaro sobre o tema da corrupção no debate da Band, ele insistiu em uma narrativa de “positividade”, dizendo como nos anos do PT o Brasil estava muito bem, havia comida, universidades, não tinha ódio. Mas passou à impressão de fugir não apenas da pergunta, mas do combate, quando, naquele contexto específico, teria sido mais eficaz contra-atacar, quem sabe com ironia e outros recursos retóricos capazes de mobilizar afetos positivos de maneira sutil e sagaz, mas que mostrassem, ao mesmo tempo, que ele está no jogo e sabe bem contra quem está jogando.

 

 

IHU – Deseja acrescentar algo?

 

Paolo Demuru – Talvez dois pontos que deixei passar sobre o discurso bolsonarista populista de extrema-direita e que também estão no livro. O primeiro é a construção da intimidade, de um vínculo intimista, um vínculo de presença entre o populista digital e o outro que se coloca do outro lado da tela. O populismo de direita tem se apropriado muito bem dessa dimensão, dessa comunicação aparentemente “desintermediada” entre líder e eleitor. Há essa ilusão de um contato direto, que é um contato íntimo que se deve, muitas vezes, às próprias plataformas onde o jogo comunicativo acontece.

 

E outro ponto é que essa dinâmica, muitas vezes, se baseia numa comunicação de cunho sensível, e isso é bem sociossemiótico. Por isso que a razão não basta. Ou seja, no enaltecimento de uma espécie de estratégia de contágio, que pudemos até usar uma palavra: “estésico”, de estesia, que é tudo que diz respeito aos sentidos. É quase uma lógica do contato e do contágio. Por exemplo, as lives bolsonaristas seguem essas lógicas, ele se colocam como se estivessem aqui; é o que chamamos de dimensão fática da comunicação. O fato de Bolsonaro usar expressões como “eu estou aqui” ou “tá ok?”, quando quer chamar a atenção, o fato de estar sempre nas redes, com live toda quinta-feira, postando a cada cinco minutos, etc., tudo isso reafirma, até pela lógica das redes, essa dimensão fática. É uma necessidade de manter o contato constante com o outro, é preciso estar ali.

 

Além disso, quero destacar como o bolsonarismo e o populismo de direita de maneira geral colocam os seus eleitores e seguidores num estado constante de alerta. Eles têm que estar sempre prontos para o pior, aquilo que falávamos sobre o caos, da catástrofe iminente. Tudo isso tem também uma dimensão sensível porque esse estado de alerta é quase que como um estado de eletricidade, de excitação. Isso vale tanto pelas ameaças da catástrofe iminente quanto pelas ameaças que Bolsonaro faz de golpe. A gente nunca sabe se esse golpe vai ou não se realizar. Mas, cada vez mais penso que não importa o golpe em si, mas sim esse estado de excitação no qual ele coloca os seus seguidores. Porque é isso que move. Se isso existir, ele não precisa de golpe nem obscuro e nem camuflado. O importante é excitar os ânimos.

 

 

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