Educação midiática: caminho de liberdade para compreender e agir no mundo. Entrevista especial com Tessa Jolls

Para pesquisadora, é preciso internalizar esse outro tipo de letramento como forma de libertar os sujeitos, os tornar potentes nas suas escolhas e assegurar espaços que solidifiquem a democracia

Foto: PxHere

Por: Taís Seibt (entrevista e tradução) | Edição: João Vitor Santos | 28 Junho 2022

 

Durante muito tempo, alimentou-se a máxima de que é na escola que se descobre o mundo. Hoje, sabe-se que nós, enquanto sujeitos, começamos verdadeiramente a aprender desde o instante em que, ainda bebês, passamos a receber informações sobre o mundo desde nossa casa. A escola da atualidade é mais como um espaço de prática e ampliação de sociabilidade com a abertura para a possibilidade de se construir novos saberes. Logo, todos os agentes são responsáveis pela educação e formação dos sujeitos. No entanto, a chegada do século XXI e as novas tecnologias e mídias atualizam essas lógicas. Assim, conhecer, compreender e se colocar no mundo passa também pelo que tem sido chamado de educação midiática. “A educação midiática encoraja os cidadãos a serem consumidores de informação inteligentes e produtores de informação responsáveis”, acrescenta a pesquisadora do tema Tessa Jolls.

 

Essa educação não se trata apenas de ensinar a ler jornais, assistir TV ou usar as redes sociais. É, na verdade, como compreender a leitura que esses meios fazem do mundo para que possamos nós mesmos construir entendimentos próprios sobre o que nos cerca. “A educação midiática precisa fazer parte do tecido social de qualquer sociedade democrática”, explica Tessa, em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU e, produzida em parceria com o projeto Desafio Nuvem. Além disso, nesse mundo midiatizado, nós também produzimos e colocamos em circulação com grande amplitude de informações. “Com as redes sociais, somos todos produtores agora. Com melhores habilidades para processar informações e analisá-las criticamente, as pessoas se tornam melhores gerentes de risco, mais capazes de discernir sobre a mídia que usam”, acrescenta.

 

Negar a importância dessa nova forma de educação, nos dias de hoje, é negligenciar possibilidades de libertação e, nas palavras da pesquisadora, colocar em risco até mesmo a liberdade democrática. “A democracia pode ser muito corroída pela manipulação irresponsável da informação e, eventualmente, pode desmoronar. A amarga polarização do ambiente político atual é prejudicial à democracia, especialmente porque o respeito por seus pontos de vista não está sendo honrado”, avalia. Logo, promover essa educação é dever de sociedade, Estado e, também, da escola, que ainda deve ter educadores preparados para esse cenário. “Se os professores não forem reconhecidos e recompensados por ensinar educação midiática, e se a mídia não for incluída como tema central para aprendizagem e avaliação, ela será negligenciada. Há uma necessidade urgente de mudança!”, resume Tessa.

 

Tessa Jolls (Foto: Arquivo pessoal)

Tessa Jolls é presidente e CEO do Center for Media Literacy, organização sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos e especializada em educação midiática. Estadunidense, também é fundadora do Consortium for Media Literacy, uma organização sem fins lucrativos que fornece pesquisas e uma publicação mensal de boletim informativo. Seu foco principal é trabalhar em parceria para demonstrar como a alfabetização midiática funciona por meio de programas de implementação baseados na escola e na comunidade.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Como a mídia pode influenciar nossa interpretação dos acontecimentos sociais e quais os riscos dessa influência para a democracia?

 

Tessa Jolls – A mídia está enraizada na transferência de informações – e hoje em dia essa transferência é global e instantânea. Cada um de nós processa as informações individualmente, e os grupos sociais ou grupos de interesse processam as informações por meio do consenso social. Isso significa que o grupo concorda com as principais ideias comunicadas pela mídia.

 

Tomamos muitas de nossas decisões com base nas informações que temos. Avaliamos riscos, perigos, oportunidades, e então agimos ou não (não agir também é uma decisão!). É na cabine de votação que nossa própria interpretação dos eventos sociais faz a maior diferença. Cada cidadão deve decidir por si mesmo, e essas decisões individuais se somam às decisões de lideranças e políticos.

 

Se essas decisões individuais são tomadas com base em informações falsas ou comprometidas, a democracia sofre as consequências, porque as pessoas estão fazendo julgamentos e decisões sem a informação para informá-las sobre a real natureza dos riscos que estão pesando.

 

 

IHU On-Line – No seu ponto de vista, a educação midiática pode ajudar a construir verdades factuais no ambiente digital contemporâneo?

 

Tessa Jolls – Sim! A educação midiática encoraja os cidadãos a serem consumidores de informação inteligentes e produtores de informação responsáveis. Com as redes sociais, somos todos produtores agora. Com melhores habilidades para processar informações e analisá-las criticamente, as pessoas se tornam melhores gerentes de risco, mais capazes de discernir sobre a mídia que usam.

 

Elas entendem mais sobre os motivos por trás das mensagens da mídia. Também entendem mais sobre o papel da mídia em uma democracia e entendem que elas próprias têm uma responsabilidade ao se comunicar nas mídias sociais com outras pessoas. Essa compreensão mais profunda fornece uma base para se confiar ao longo da vida e também pode contribuir para uma maior demanda por informações de qualidade.

 

 

IHU On-Line – Qual o impacto potencial da educação midiática para o futuro das sociedades democráticas?

 

Tessa Jolls – A educação midiática precisa fazer parte do tecido social de qualquer sociedade democrática para que os cidadãos compreendam os riscos envolvidos e assumam suas próprias responsabilidades na manutenção de uma democracia. Frequentemente, tomamos a democracia como certa. Mas, na realidade, ela é frágil, totalmente dependente dos cidadãos para tomar decisões informadas, e cabe a cada um de nós participar e contribuir para uma sociedade democrática.

 

A educação midiática estimula as habilidades de análise e, também, a compreensão da “Espiral de Empoderamento” da conscientização, análise, reflexão e ação. Esse entendimento pode ser compartilhado por meio da educação, fortalecendo a resiliência dos cidadãos em todos os lugares.

 

 

Verdade factual

 

A verdade factual é muito importante na democracia porque gera confiança. A confiança é um dos princípios básicos da democracia – se o governo é do povo, pelo e para o povo, então a confiança é primordial porque estamos confiando nossos interesses e nosso futuro aos nossos representantes. O governo deve modelar o compartilhamento de informação factual e apartidária – se essa confiança for quebrada, o pacto entre o povo e seus representantes será quebrado porque as pessoas são o governo.

 

A democracia pode ser muito corroída pela manipulação irresponsável da informação e, eventualmente, pode desmoronar. A amarga polarização do ambiente político atual é prejudicial à democracia, acredito, especialmente porque o respeito por seus pontos de vista não está sendo honrado. O respeito um pelo outro faz parte do cuidado mútuo – não deturpamos informações para as pessoas com as quais nos importamos.

 

 

IHU On-Line – Qual a sua perspectiva sobre a relevância da liberdade de imprensa para a democracia e como liberdade de expressão se relaciona com a educação midiática?

 

Tessa Jolls – Liberdade de imprensa e de expressão são princípios essenciais da educação para a mídia. Vemos a educação midiática como uma oportunidade para: “Liberte sua mente, expresse suas opiniões!”

 

Sempre me lembro das palavras da líder do Museu da Tolerância de Los Angeles, Liebe Geft, que disse que, embora discorde totalmente de alguns pontos de vista e até mesmo de algum discurso que possa ser odioso, ela lutaria até a morte para proteger o direito de falar. Acho essa afirmação admirável.

 

 

Hoje, através da “cultura do cancelamento” e outras repressões, a liberdade de expressão está ameaçada nas universidades e outras instituições. Visões que podem ser impopulares são excluídas. Além disso, jornalistas em alguns países estão sendo presos ou ameaçados, e mesmo aqui nos EUA tem havido controvérsia sobre o apagamento de alguns pontos de vista ou mesmo eventos factuais. A educação para a mídia incentiva a liberdade de expressão e a responsabilidade de discernir e expressar a verdade.

 

 

IHU On-Line – Em sua palestra no Desafio Nuvem, você mencionou a relevância do contexto: não basta verificar os fatos, é preciso colocar a informação em perspectiva para discernir o significado corretamente. Como podemos desenvolver essa competência?

 

Tessa Jolls – Em cada processo de comunicação, as pessoas se entregam à interpretação e à construção de significado – elas trazem seus conhecimentos, suas experiências, suas atitudes e crenças, seus valores, seus processos de pensamento e seu estado emocional. A construção do sentido está dentro de cada um de nós, e isso possibilita uma infinita variedade de interpretações. Desenvolvemos as habilidades para colocar as informações em perspectiva ou contexto, entendendo mais sobre nós mesmos para que possamos entender melhor o contexto e o significado que trazemos à mensagem.

 

Esse conhecimento deve ser cultivado desde cedo — na pré-escola, pelo menos! — para que entendamos nosso relacionamento com a mídia e como a usamos para fazer julgamentos e tomar decisões. Precisamos ser capazes de ver como a mídia nos afeta e influencia nosso pensamento e emoções.

 

Podemos desenvolver essas habilidades ajudando as pessoas a entender como a mídia opera como um sistema simbólico global. Esta é uma maneira muito acadêmica de dizer que precisamos entender como a mídia funciona para que possamos nos envolver com ela de uma maneira mais qualificada e criteriosa. Precisamos ver que a mídia é construída por alguém ou é de autoria de alguém, que usa técnicas para atrair nossa atenção e influenciar nossas emoções, que outros inevitavelmente interpretarão a mensagem de maneira diferente e que todos estamos recebendo mensagens direcionadas, que nossos próprios estilos de vida, valores e pontos de vista influenciam nosso relacionamento com a mídia, e que a mídia tem fins de lucro e/ou poder.

 

Quando temos prática em entender e aplicar essas ideias às mensagens da mídia, temos melhores habilidades e, portanto, uma melhor chance de avaliar uma mensagem e julgar nossas próprias conclusões e riscos. Educação! Educação! Educação! Prática! Prática! Prática! Somos todos coaprendizes engajados mutuamente com as mensagens da mídia.

 

IHU On-Line – Sua abordagem da educação midiática enfatiza a “avaliação de risco”. Você pode explicar melhor essa abordagem?

 

Tessa Jolls – Todos nós avaliamos o risco todos os dias, tomando decisões cruciais — ou apenas decisões cotidianas como: "O que vou almoçar?" Aqui está um bom exemplo: vejo um anúncio para pedir uma pizza. Estou com fome e eu penso “ah sim, isso parece ótimo!” Mas então eu penso “eu comi pizza ontem”. Talvez eu não goste tanto. Além disso, eu estou em uma dieta baixa em carboidratos e a pizza tem massa. Além disso, a calabresa que eu gosto é muito gordurosa, e isso pode me fazer engordar. E o mesmo para minha família. Pensando bem, não vou pedir a pizza.

 

Por fim, decido “não” pedir a pizza porque acabei de comer pizza ontem e posso prejudicar minha dieta. Eu sei que seria fácil pedir e estou com fome, mas a pizza tem pão e gordura, não quero essas calorias extras, pois eu posso ganhar peso. Portanto, não vou comer a pizza. Aqui está um pequeno exemplo de como pesar o risco e podemos colocar no lugar da pizza o nosso próprio contexto ou situação.

 

Assim, no caso da pizza, o anúncio de mídia estimulou meu pensamento e emoções: eu me envolvi com o anúncio e pensei sobre ele. Mas devido às minhas próprias circunstâncias, decidi que a pizza não é adequada para mim. O “perigo” de comer pizza superava a “recompensa” da facilidade de pedir e saciar minha fome. Tomei uma decisão que acredito ser para meu próprio benefício: pesei o risco e fiz minha escolha. Com a prática ao longo do tempo, podemos tomar essas decisões muito rapidamente — e aprendemos a avaliar o risco e o contexto da tomada de decisões mais rapidamente ao longo do caminho.

 

Decisões mais complexas

 

Agora vamos olhar para uma decisão mais séria. Eu quero comprar um carro. Os carros são caros. Decido apenas com base em um artigo ou na recomendação de um amigo nas mídias sociais? Ou peso minha decisão lendo muitos artigos e avaliações, conversando com vários amigos e obtendo informações detalhadas sobre as características e o preço do carro? Pense em quantas mensagens de mídia uma pessoa poderia receber ao pesquisar tal decisão.

 

No final, toma-se uma decisão com base nas informações cumulativas disponíveis para consideração. Novamente, uma pessoa passa por um processo de conscientização, análise, reflexão e ação – a “Espiral do Empoderamento” – (baseada na obra de Paulo Freire). Novamente, ao analisar as mensagens da mídia, uma pessoa pode usar um processo de questionamento, abordando autoria, técnicas, público-alvo da mensagem, valores, estilos de vida e pontos de vista, e o propósito das mensagens (vender ou lucrar).

 

 

Esses são exemplos de avaliação de risco e de como colocar as mensagens da mídia para trabalhar no estabelecimento de nosso próprio interesse – nós somos os juízes finais! Apenas ler um fato ou muitos fatos pode não atender aos critérios que estabelecemos para nós mesmos ao avaliar as mensagens da mídia. Ao mesmo tempo, é do nosso interesse ter informações factuais de qualidade para tomar decisões, e nos beneficiamos ao aprender a identificar informações factuais e de qualidade que sejam críveis e confiáveis. Ao receber letramento midiático, melhoramos nossas habilidades em compreender a mídia em um nível mais profundo – e, portanto, como julgar informações confiáveis e de qualidade – e também aprendemos a avaliar nosso próprio risco e decisões à luz de nosso próprio interesse e de nossas comunidades.

 

 

Mais do que identificar um fato

 

Apenas identificar um fato não é suficiente – precisamos colocar todo o processo de envolvimento com a mídia em perspectiva e aprender a aplicar esse processo de maneira rápida e eficaz. A educação midiática precisa ser internalizada, para que seja uma heurística ou hábito mental que possamos aplicar instantaneamente, a qualquer hora, em qualquer lugar, a qualquer assunto ou mensagem de mídia/tecnologia.

 

IHU On-Line – De quem é a responsabilidade de ensinar educação midiática às crianças e jovens? Pais, professores, autoridades públicas, imprensa?

Tessa Jolls – Todas as alternativas! A educação midiática começa com os pais. Mesmo antes de uma criança nascer, os dados estão sendo gerados sobre essa criança. A criança está em salas com música ou vídeos e ela está absorvendo essas mídias. Uma pesquisa mostrou que os pais conversarem com as crianças desde o nascimento é uma maneira altamente eficaz de ajudá-las a entender a mídia e, com essas discussões e aprendizado, as crianças são capazes de autosselecionar e entender melhor as implicações de suas escolhas em relação à mídia.

 

Os educadores também têm a responsabilidade de ensinar as crianças sobre a mídia e sobre o papel desta na sociedade. Com esse ensino, pode haver um vocabulário comum para analisar criticamente a mídia e uma maneira de ter (espero) discussões mais respeitosas. A educação midiática incentiva o aprendizado e a expressão de ideias e emoções conceituais, e isso é algo muito importante para os jovens serem capazes de identificar e expressar. Com uma estrutura de educação midiática, as pessoas têm uma maneira internalizada de abordar a mídia e, também, uma maneira pública de explorar as mensagens dela.

 

 

As autoridades públicas precisam incentivar a educação midiática nos sistemas educacionais, tornando esse um assunto central da educação, e não periférico. A educação midiática não é atualmente valorizada, recompensada ou avaliada nos sistemas educacionais; isso deve mudar. Devemos reinventar a educação para o mundo de hoje, onde os jovens têm acesso a toda e qualquer informação na palma das mãos. Devemos ajudar os jovens a entender como processar informações e dar sentido a elas de maneira saudável e positiva.

 

Imprensa

Certamente, a imprensa deve participar da educação midiática. Ela tem um papel importante a desempenhar na educação do público – o que é essencial para o funcionamento democrático. Isso significa ser capaz de se envolver em narrativas, rastrear histórias e explicar fenômenos narrativos que estão ocorrendo todos os dias, em todo o mundo.

 

Novamente, uma história sozinha não conta a verdadeira natureza do evento ou situação – é uma série de histórias que constroem o contexto em torno de uma narrativa, que leva a uma melhor compreensão do que pode ser a verdade. Mas a imprensa precisa entender o impacto de suas narrativas e ver que ela também é afetada pela mídia que consome e produz. Isso é chamado de “efeito de terceiros”, em que acreditamos que os outros são afetados pelas mensagens da mídia, mas nós mesmos não somos.

 

 

IHU On-Line – Como professores da educação básica podem estimular a leitura crítica da mídia entre crianças e jovens na sala de aula?

 

Tessa Jolls – Primeiro, os professores precisam de desenvolvimento profissional – e isso muitas vezes não está disponível. Eles precisam ser apoiados por sua administração para ensinar educação midiática e vê-la como uma prioridade importante. Os professores precisam de estruturas e recursos para apoiá-los, mas, ao mesmo tempo, se eles realmente entendem os conceitos e questões de educação midiática, eles podem facilmente integrá-los ao ensino e torná-los uma parte consistente e sustentável de seus currículos.

 

Nós do Center for Media Literacy descobrimos que os alunos, independentemente da idade, estão dispostos, capazes e até entusiasmados com a educação midiática em suas aulas. A pedagogia da educação midiática oferece aos alunos uma maneira de explorar, discutir e engajar muitas vezes ausente nas salas de aula, onde a educação é vista como transmissão de conhecimento e informação, em vez de “descobrir” assuntos importantes para todos nós.

 

Os alunos, independentemente da idade, estão dispostos, capazes e até entusiasmados com a educação midiática em suas aulas – Tessa Jolls

 

IHU On-Line – Você gostaria de acrescentar algo?

 

Tessa Jolls – Minha maior preocupação hoje em dia é institucionalizar a educação midiática. Já estabelecemos que ela é eficaz em muitos programas individuais. Agora, é hora de incorporá-la na aprendizagem cotidiana e no tecido das culturas.

 

Isso significa que os professores devem ser treinados desde a universidade e que o desenvolvimento profissional precisa ser oferecido e reforçado por meio de abordagens sistêmicas para incentivar a educação midiática. Se os professores não forem reconhecidos e recompensados por ensiná-la, e se a mídia não for incluída como tema central para aprendizagem e avaliação, ela será negligenciada. Há uma necessidade urgente de mudança!

 

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